segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Discricionariedade Policial e a Aplicação Seletiva da Lei na Democracia

Discricionariedade Policial e a Aplicação Seletiva da Lei na Democracia[1]

Jacqueline Muniz

Grupo de Estudos Estratégicos – GEE

Universidade Candido Mendes - UCAM

Índice

Introdução. 3

Discricionariedade como Práxis Policial 4

A Aplicação Seletiva da Lei e suas falsas questões 10

Condicionantes da decisão policial de aplicação seletiva da lei 13

Decisionismo e violações do mandato policial 18

Modelos Policiais de Aplicação Seletiva da Lei 19

Implicações 23

Referências Bibliográficas 28

Resumo[2]

O exercício da discricionariedade na atuação policial em uma sociedade democrática suscita diversas questões, estimulando propostas de reformas nas polícias e, ao mesmo, causando polêmica entre estudiosos e profissionais da área. O presente artigo tem como ponto central a discussão do selective enforcement, isto é, a aplicação seletiva da lei pela polícia, a partir de um diálogo com Carl B. Klockars. Para tanto, apresenta a discricionariedade como práxis policial apreciando seus diversos aspectos. Situa as objeções que são feitas à prática do selective enforcement, analisando os fatores que condicionam a decisão policial de aplicação seletiva da lei. Por fim, descreve e analisa os modelos mais usuais adotados pelas polícias para lidar com a discricionariedade ("máscara da plena aplicação da lei", "modelo de construção de regras públicas" e "modelo profissional verdadeiro") e suas implicações.

Introdução

Como prevenir as oportunidades de violação, discriminação e favoritismo na ação da polícia? Em que medida o exercício da discricionariedade policial conduz a cristalização destas práticas abusivas? De que modo enfrentar a tênue e sutil fronteira entre o arbítrio e a arbitrariedade nas atividades policiais? Pode a polícia prescindir do recurso às decisões discricionárias? Eis aqui algumas das questões mais desafiadoras para o exercício do policiamento público em sociedades democráticas. Por um lado, elas têm motivado o desenvolvimento de diversas agendas de reforma nas polícias. Por outro, têm dividido a opinião de policiais, políticos, estudiosos e cidadãos quanto à possibilidade destas agendas responderem de forma factível e conseqüente à democratização das práticas policiais.

O problema de fundo que estimula indagações anima os debates e informa propostas de intervenção é antigo, porém continua a gerar controvérsias. Refiro-me ao entendimento do que vem a ser a discricionariedade na ação policial e, por conseguinte, a compreensão de sua pertinência e propriedade no estado democrático de direito. O propósito deste texto é, justamente, situar esta questão em um dos seus aspectos mais significativos e sensíveis: a decisão policial do selective enforcement, ou melhor, a aplicação seletiva da legislação realizada pela polícia[3]. Para tanto, tomará como fio condutor o diálogo com as considerações elaboradas por Carl B. Klockars no capítulo Selective Enforcement, do seu livro intitulado The Idea of Police[4].

Discricionariedade como Práxis Policial

Uma das visões mais problemáticas e, ao mesmo tempo, uma das mais corriqueiras que se tem sobre as instituições policiais é a de que elas "fazem cumprir a lei". Nada é mais enganoso e inconsistente com a realidade das polícias. Apesar de caracterizar-se como um consenso e revestir-se de uma roupagem legalista, esta visão oculta os elementos que conformam a polícia como um instrumento de coerção sob consentimento social subordinado ao império da lei (Bittner, 1990; Muniz e Proença Jr, 2006c). Ela mascara, particularmente, o recurso fundamental à discricionariedade nos processos de tomada de decisão[5].

De fato, a imagem corrente de que a polícia está, a todo tempo, aplicando a legislação de forma literal e automática, sobretudo nas atividades de controle do crime, compromete o entendimento da natureza da ação policial nas sociedades democráticas. Ela alimenta a fantasia de que uma 'polícia democrática', subordinada a um Estado de Direito, poderia exercer o seu mandato legal e legítimo, subtraída da capacidade de escolher, por exemplo, o curso de ação mais adequado diante de cada evento na qual é chamada a intervir. Ela fomenta, portanto, a ilusão de que uma 'polícia cidadã' corresponderia a agir em situações de emergência, em contextos que trazem elementos de incerteza, risco e perigo, ressentindo-se de algum espaço de autonomia e liberdade para decidir qual é alternativa mais apropriada de atuação[6].

Esta visão legalista fracassa em termos explicativos porque orienta-se pela proposição inobservável na vida social de que "a lei inventa o mundo". Sucumbe em termos instrumentais uma vez que não reconhece o grande espaço discricional existente na práxis policial, o qual molda a conduta profissional dos policiais mais do que as normas legais (Klockars, 1985:92). Diante da impossibilidade real de poder se antecipar a qualquer elemento de singularidade, contingência, acaso ou surpresa intrínsecos às demandas dos cidadãos, a oportunidade mesma da intervenção policial se dá exatamente pela tomada de decisões discricionárias[7]. Delas se extrai um acervo de conhecimentos, um saber prático, um fazer policial. Revela-se uma práxis que orienta a rotina policial e evidencia que o conjunto de leis existentes é uma entre outras referências relevantes a serem consideradas no processo decisório.

Estas decisões, por sua vez, resultam da convergência entre os determinantes políticos, legais, normativos e técnicos que informam o mandato policial e as exigências contextuais e idiossincráticas oriundas de cada situação particular. Delas se extrai um acervo de conhecimentos, um saber prático, uma práxis que orienta o comportamento policial, no qual o conjunto de leis existentes é uma entre outras referências relevantes a serem consideradas (Muniz, 1999).

A discricionariedade emerge assim como um aspecto essencial do trabalho policial. Na língua portuguesa o termo discricionariedade reporta-se à natureza ou à qualidade de um ato sem condições ou restrições que se exerce com discrição, isto é, que se executa com discernimento, sensatez, prudência, reserva e, até mesmo, de maneira sigilosa. Na ordem do senso comum refere-se, ao mesmo tempo, ao exercício do arbítrio e a sua conversão em ações arbitrárias, indesejáveis.

Mas como se pode definir police discretion ou a discricionariedade policial? Apesar de enfatizar a contribuição inaugural de Joseph Goldstein sobre o tema em seu artigo Police Discretion not to invoke the Criminal Process: Low Visibility Decisions in the Administration of Justice, escrito em 1960, Klockars toma de empréstimo a proposição de Davis Culp Kenneth elaborada em seu livro Discretionary Justice, publicado em 1969. Compreende que a conceituação proposta por Kenneth se sustenta por ser a mais bem conhecida e mais amplamente aceita nos círculos acadêmicos.

"A police officer or police agency may be said to exercise discretion whenever effective limits on his, her, or its power leave the officer or agency free to make choices among possible courses of action or inaction". (Kenneth, Davis Culp apud Klockars, 1985:93).[8]

Há ao menos três elementos importantes na definição acima que valem à pena serem enfatizados. O primeiro deles reporta-se ao sujeito da decisão.

A discricionariedade é apresentada como uma capacidade que é exercida tanto por policiais individualmente, quanto pela organização policial. Trata-se de um aspecto importante, ainda que pareça óbvio, porque permite compreender que o recurso à discricionariedade não se restringe às escolhas que policiais fazem nas ruas no curso do seu trabalho diário.

Assim como os agentes da ponta da linha, as agências policiais estão, diariamente, tomando importantes decisões discricionárias quando decidem aonde alocar pessoal; o que deve ser ensinado nas academias policiais; qual a prioridade no atendimento às emergências; quando recompensar ou punir policiais; como encaminhar as reclamações dos cidadãos, etc. Todas estas e muitas outras decisões da administração policial tanto afetam as atividades e atitudes dos policiais nas ruas, quanto podem interferir na qualidade de vida dos cidadãos.

O segundo aspecto da definição de Davis, tão importante quanto o primeiro, refere-se à natureza da autonomia decisória que a ação discricionária encerra. Uma decisão policial é caracterizada como discricionária quando os policiais ou a polícia detém o poder de executá-la. Isto não significa afirmar que a decisão policial discricionária não seria influenciada por outros poderes ou forças exteriores à polícia. Significa somente que, dentro dos prévios limites normativos, políticos e técnicos estabelecidos, uma decisão policial é discricionária quando se qualifica como uma espécie de "última decisão" que se sustenta e se afirma mesmo diante de oposições. Isto quer dizer que uma decisão discricionária admite a existência de cursos de ação alternativos e contrários ao escolhido, igualmente possíveis de serem adotados[9].

O terceiro aspecto é de fundamental relevância para a compreensão adequada do processo decisório policial. Ele aborda duas possibilidades lógicas de desdobramento da decisão discricionária que expressam o "agir" ou "não agir" numa determinada situação. O reconhecimento da inação como uma alternativa decisória possível e válida da polícia, permite melhor circunscrever a realidade do "decisionismo policial", sobretudo em termos de publicidade, visibilidade e oportunidade de controle (Muniz e Proença Jr, 2006c; 2006d, 2007). A partir das reflexões e descrições sobre a realidade do trabalho policial elaboradas por Joseph Goldstein (1960), Herman Goldstein (1977), Carl Klockars (1985), Egon Bittner (1990), Jerome H. Skolnick (1992), e Walker (1993)[10], pode-se constatar que no universo das práticas policiais, poucas são as decisões discricionárias que são anunciadas publicamente como resultado de uma política adotada por uma determinada organização policial.

A maioria das decisões policiais tem como encaminhamento ora "não fazer nada" em termos legais ou normativos, ora "nada fazer" como resultado de falhas ao se considerar modos alternativos de fazer alguma coisa sem à aplicação da legislação (Skolnick,1994; Muniz, 1999; Muniz e Proença Jr, 2006). Tanto num caso como noutro tem-se um tipo de inação em relação aos procedimentos formais e normativos estabelecidos. Estas decisões que resultam em alguma forma de "não agir" possuem baixa visibilidade. São por vezes intencionalmente ocultadas do público e, por conseguinte, mais difíceis de influenciar ou controlar (Goldstein,1977; Klockars, 1985). É o caso, por exemplo, da decisão policial de não deter uma pessoa. Neste tipo de decisão discricionária a oportunidade de revisão e reversão a posteriori é remota ou quase inexistente. Em verdade, ela caracteriza-se por construir uma espécie de "não-evento", de "não-fato" já que dele não resulta nenhum desdobramento burocrático, expediente formal ou resultado tangível (pessoas presas, objetos apreendidos, registros, etc.) que possam alimentar a linha de produção do sistema de justiça criminal (Muniz, 1999; Muniz e Proença Jr, 2006).

É claro que o recurso à discricionariedade e o seu emprego ordinário não são expedientes exclusivos das polícias. Ao contrário, se fazem presentes em outras atividades profissionais. Para executarem o seu trabalho, professores, advogados, engenheiros, cientistas, magistrados, bombeiros, etc., também desfrutam de uma significativa margem de liberdade decisória, cujo repertório de escolhas de cursos possíveis inclui alternativas coercitivas de ação. Médicos e enfermeiros, por exemplo, fazem uso em suas rotinas profissionais de recursos coercitivos, incluindo o uso potencial e concreto de força, para obter obediências de seus pacientes mais relutantes a certos tratamentos ou intervenções cirúrgicas reconhecidas como indispensáveis à sua saúde. Contudo, no caso destes atores, observa-se uma maior aceitação pública quanto ao uso da discricionariedade. Esta aceitação parece se ancorar no fato de que nestas profissões a utilização de recursos coercitivos é suplementar, periférica, e tende a ser menos visível, pouco explícita e mais indireta. A isto se acresce a percepção social de que o arbítrio, ou melhor, a decisão discricionária aqui estaria mais protegida de excessos e arroubos, porque seu emprego seria a expressão do bem comum e seus resultados naturalmente benéficos.

O mesmo não ocorre com o meio de força policial, cujas atividades interferem de forma direta e indireta na liberdade das pessoas. A função social da polícia de construir alternativas de obediência às leis sob consentimento, enfim, de gerar controle e coerção pactuados socialmente, suscita percepções contraditórias quanto ao seu papel (Muniz e Proença Jr, 2007). Têm-se tanto caracterizações morais da polícia com viés positivo como a "primeira linha de defesa da sociedade", quanto as que soam negativas como "o braço armado do estado que limpa a sujeira social".

A visão de que os policiais possuem bem mais poderes do que os cidadãos que policiam, permite uma leitura da discricionariedade como um expressivo acréscimo de poder policial. Num jogo de relações já pontuadas pela assimetria, este suposto "poder a mais" pode ser percebido como um sobrepeso que faria a balança pender ainda mais para o lado daqueles agentes que controlam, coagem e custodiam. Aos olhos do senso comum, a desproporção de recursos é mais palpável nas interações entre policiais e cidadãos do que nas relações de poder estabelecidas entre outros profissionais e o seu público. Diante dessa evidência é razoável supor que o decisionismo policial possa vir a ser objeto de uma espécie de desconfiança coletiva prévia. E isto de tal forma que a discricionariedade policial pode ser apreendida como algo que se suspeita por antecipação, requerendo uma vigilância redobrada dos que policiam e uma dúvida estruturante por parte dos cidadãos policiados[11].

Em parte por conta desse tipo de suspeita, muitas polícias e policiais tentam minimizar e até mesmo negar seus poderes discricionários, especialmente o selective enforcement ou a aplicação seletiva da lei. Conforme ressalta Klockars (1985:94), os políticos, por diversas motivações, tendem a seguir pelo mesmo caminho, tratando a polícia como se ela tivesse muito pouco ou quase nenhuma autonomia decisória no emprego da legislação. Os cidadãos, de um modo geral, reforçariam também este mesmo coro endossando a visão de que o papel da polícia seria mesmo "fazer cumprir a lei" tal como foi escrita. O que disso se afasta, por exemplo, o real cotidiano do trabalho policial, pode vir a ser recebido paradoxalmente com receio e, até mesmo, como um possível desvio de conduta. Mas, à primeira vista, policiais, políticos e cidadãos têm boas razões para estabelecerem uma compreensão ambígua e, em boa medida, uma leitura negativa do recurso discricionário particularmente quando ele resulta na aplicação seletiva da lei (Klockars, 1985:94,95).

A Aplicação Seletiva da Lei e suas falsas questões

Dentre as questões que estimulam o não reconhecimento da propriedade e pertinência do selective enforcement realizado pela polícia, destaca-se a proposição de "Estatutos de Plena Aplicação da Lei". É sabido que a maioria dos Estados possui algum dispositivo legal que estabelece que as polícias devam aplicar todas as leis de forma plena e integral. É óbvio que este tipo de normatividade não se mostra factível na vida real. Todavia, ela converte claramente a aplicação de todas as leis relacionadas à incolumidade e segurança das pessoas e do patrimônio, em uma efetiva obrigação ou um dever da polícia. Sob este ângulo, a aplicação seletiva da lei seria apreciada como um ato extralegal ou mais propriamente ilegal (Klockars,1985). E isto de tal maneira que toda ação policial estaria, no limite, condenada à clandestinidade e a debilidade de seus procedimentos pela necessidade operacional da violação da lei para poder cumpri-la[12]. Isto ocorre, sobretudo, no Brasil, onde o ato policial discricional tende a ser interpretado juridicamente como "prevaricação". Ou seja, a decisão policial discricionária pode ser tipificada como "um crime perpetrado por um funcionário público, e que consiste em retardar ou deixar de praticar, indebitamente, ato de ofício, ou em praticá-lo contra disposição legal expressa, para satisfação de interesse ou sentimento pessoal". Note-se que a perspectiva de um enquadramento a priori do ato discricional como uma possível "prevaricação" pode conduzir ora a paralisia decisória policial, ora a um acordo tácito na polícia de sustentação dos necessários procedimentos policiais de aplicação seletiva da lei numa ordem de total informalidade e baixa institucionalização. O que certamente amplia os níveis de incerteza, imprecisão e insegurança do policial na tomada de decisão e, por conseguinte, a imprevisibilidade dos resultados de sua ação (Muniz, 1999; Muniz e Proença Jr, 2006b). Diante de uma espécie de insegurança jurídica, os policiais, interessados em sobreviver nas suas organizações, podem sensatamente optar por alternativas de ação consideradas mais "prudentes" em relação às possíveis interpretações do texto legal. Mesmo que estas ações sejam sabidamente insuficientes e insatisfatórias para os próprios propósitos legais. Estas seriam traduzidas, por exemplo, na escolha por fazer o que se deve e menos o que se pode à luz das referências legais.

Um outro argumento aparentemente impeditivo para o reconhecimento da ação discricionária na aplicação das leis assenta-se sobre certa interpretação do princípio da "Separação dos Poderes" (Klockars, 1985). A aplicação seletiva da lei que, como vimos, inclui a decisão policial de "nada fazer" em termos legais, costuma ser interpretada ao pé da letra como uma violação do princípio constitucional da separação dos poderes. É freqüentemente apreendida como uma deliberada usurpação da competência do poder legislativo. Para os que acreditam num enquadramento purista e funcionalista da norma jurídica e dos seus propósitos na sustentação da ordem social, o recurso à discricionariedade em sua aplicação seria a priori uma perversão. Isto porque outorgaria à polícia a perigosa condição de formulador sem mandato. Porque permitia à polícia ultrapassar a sua imaginária função natural de reproduzir fielmente o que foi aprovado pelos legisladores, deixando o caminho aberto para atuações arbitrárias e discriminatórias. Nesta forma de entendimento, a aplicação seletiva da lei pela polícia é, de modo enganoso, configurada como uma anormalidade a ser combatida. Tem-se a fantasia jurídica de que o texto legal é literal, auto-evidente, exato e suficientemente pleno a ponto de prever e prover a complexidade do real. Isto, certamente, conduz à ocultação das necessárias interpretações que tornam este mesmo texto legal possível, útil e capaz de ser empreendido.

Por fim, as objeções à discricionariedade policial também encontram solo fértil na leitura simplória de que a produção de enforcement livre da tirania do governante, da opressão por policiais, e sem apropriação particularista por grupos de poder, seria sustentada por um "Governo de Leis" em oposição a um "Governo de Homens". Sob esta angulação, a aplicação seletiva da lei corresponderia, no estado democrático de direito, à indesejada prevalência das vontades particulares dos indivíduos sobre o interesse público expresso, por exemplo, nos princípios da imparcialidade, equidade e universalidade garantidos pela lei. Em outras palavras, a discricionariedade policial no uso do aparato legal levaria inevitavelmente a arbitrariedade, ao favoritismo, a segregação e a impunidade, explicitando os riscos de um governo de homens. Salta aos olhos a fragilidade desta argumentação que se encontra amparada em uma falsa questão. Os fatos históricos demonstram que um "governo de leis" não é melhor que um "governo de homens", assim como este último não é uma alternativa superior ao primeiro. Como enfatiza Klockars, nas sociedades democráticas um bom governo depende de leis e homens para sustentar o enforcement sem opressão e ingerências privadas.

Vê-se que as objeções à aplicação seletiva da lei pela polícia são insuficientes em termos de consistência, persuasão e aplicabilidade. Isto porque elas convergem para uma meta impossível de ser concretamente atingida: a supressão da discricionariedade da decisão policial, especialmente diante do emprego da norma legal, como uma saída para se conter os efeitos perversos da ação de polícia. Uma vez compreendendo o caráter irreal e ingênuo da referida meta, resta admitir que os esforços de democratização das práticas policiais e, por sua vez, as iniciativas de controle dos abusos de poder, devem reconhecer e considerar a discricionariedade como um atributo da praxis da profissão policial.

A redefinição do problema exige a identificação do seu ponto verdadeiramente controverso: a decisão policial de não prender alguém quando se tem a legitimidade, as evidências e os amparos legais para realizar a prisão. Nos próprios termos de Klockars (1985:96), "[…] the real controversy over selective enforcement is about police decisions not to arrest when they have every right and all the legal evidence necessary to do so". Este tipo de decisão, ainda que controversa, pode se mostrar a mais sensata, mais adequada e superior para a política pública de policiamento, a sustentação do consentimento social, a crença nas leis e no sistema de justiça criminal. Tal constatação convida a uma apreciação das principais variáveis que informam a decisão de "não prender", assim como outras decisões discricionárias de aplicação seletiva da lei.

Condicionantes da decisão policial de aplicação seletiva da lei

Há cinco condicionantes fundamentais que constrangem as decisões policiais quando do exercício de imposição da lei, e que contextualizam a sua aplicação seletiva (Klockars, 1985:96-104). Tem-se i) a "extrapolação da lei"; ii) o "propósito da lei", iii) as "prioridades na aplicação das leis"; iv) o "problema das leis ruins"; e v) o "poder discricionário dos cidadãos". Estas variáveis se combinam das mais variadas formas de modo a compor um quadro de ponderações para a decisão policial no tocante a aplicação da lei. De um modo geral, as leis trazem a propriedade de ultrapassar seus fins.

A extrapolação dos textos legais ou a sua expressiva latitude, caracterizada como the overreach of the law, responde a uma dupla impossibilidade diante dos casos concretos. De um lado, a impossibilidade de se antever todas as ocasiões possíveis de violação que poderiam ser contempladas por uma determinada definição legal. De outro, a impossibilidade do texto legal se antecipar a todas as isenções ou exceções possíveis extraídas dos eventos reais. Uma vez que as leis trazem a virtualidade de fiscalizar ou punir mais do que o seu próprio intento, tem-se no processo interpretativo uma busca pelo que seria o mais adequado ou razoável para uma determinada situação. Este processo se concretiza na aplicação seletiva da lei ou no selective enforcement. Conforme revela Klockars (1985:98), "[...] police exercise discretion in the selective enforcement of all of these and every other law because it is in the very nature of all law to criminalize more than it intends"[13]

Além de existir porque as leis superestimam sua extensão e intensidade, a decisão policial discricionária apresenta-se como um recurso necessário porque o propósito das leis pode, em determinadas circunstâncias, vir a ser amplamente atendido pela sua não imposição. Por meio da aplicação seletiva da lei a finalidade estabelecida no texto legal é atingida sem que a severidade ou as sanções previstas sejam efetivamente acionadas. Estas sanções podem, em certas situações, até mesmo serem caracterizadas como excessivas ou desnecessárias, vindo a comprometer os resultados esperados pela lei. Vê-se que o propósito da lei e, por conseguinte, a oportunidade do seu atendimento, apresenta-se como uma importante variável a ser ponderada na decisão policial. Neste caso fica explícito que o problema da polícia não é apenas ser capaz de identificar quando e como a não imposição da lei pode ser a melhor alternativa, mas também evitar ser enrolada pelos demandantes enquanto toma sua decisão (Klockars, 1985:100).

Em adição aos excessos da lei e a oportunidade de melhor servi-la com a sua não imposição, a decisão policial discricionária também pondera a política de policiamento e as prioridades da justiça criminal. Isto se dá principalmente em razão do caráter finito dos recursos policiais. O atendimento as prioridades estabelecidas exige distribuição e mobilização diferenciadas do efetivo policial não apenas no tempo e no espaço, mas ainda em relação às transgressões à lei consideradas mais relevantes. Neste sentido, a escolha por impor certos tipos de normas e procedimentos legais, tais como as relacionadas ao homicídio, roubo, seqüestro, drogas e estupro, significa uma menor disponibilidade de recursos para o policiamento criminal relativo a outras violações. Assim, a necessidade de conciliar as prioridades traçadas, as rotinas de atendimento e as demandas emergenciais, a polícia se beneficia da decisão discricionária de aplicação seletiva da lei, como uma forma concreta de poder responder ao seu mandato.

A quarta variável a ser considerada refere-se à existência de leis ruins ou inconsistentes (Klockars, 1985:100-101). O modo como elas são elaboradas é um dos aspectos que contextualiza sua falibilidade, incoerência e, em alguns casos, inviabilidade. Por vezes as leis criminais são concebidas e colocadas na ordem do dia ora para atender a interesses particulares, ora para responder a uma crise, escândalo ou tragédia que mobilizam o sentimento popular.

A forte repercussão nos meios de comunicação sempre aumenta a pressão sobre os legisladores para que "façam alguma coisa" o quanto antes, se possível uma resposta severa aos reclames dos formadores de opinião.

Contudo, nem sempre estas respostas normativas, construídas no calor dos acontecimentos e orientadas por ondas de apetite punitivo, atendem de forma qualificada e adequada às razões de sua elaboração. Tem-se, com isso, a fabricação de textos legais que se contradizem ou se anulam juridicamente, revelando sua fragilidade nas inúmeras ambigüidades e imprecisões identificadas. Mas é preciso ir além desta consideração inicial. Em verdade, o real descompasso entre a temporalidade dos processos e dinâmicas que conformam as transformações sociais e a temporalidade da sua tradução legal quando possível, faz com que muitos instrumentos normativos caduquem e sejam gradativamente percebidos como algo irreal, ultrapassado e inócuo.

Neste caso, a distância estrutural entre os "atos vividos" e os "fatos jurídicos" pode se tornar insustentável em termos instrumentais, caracterizando estes últimos como fósseis ou sobrevivências do passado. É fato que isto vai desacreditando determinados construtos legais e reduzindo o interesse público na sua aplicação. Tudo isto dificulta ou mesmo torna inexeqüível a aplicação de certas leis conforme foram concebidas. Como os eventos se dão na ordem do vivido, a despeito da existência ou não da melhor forma jurídica capaz de conformá-los, os profissionais do sistema de segurança pública e justiça criminal, em especial o(a) policial, tendem a buscar contornos e adaptações para sustentar os efeitos desejados das normas. Isto, evidentemente, torna-se possível pelo exercício da decisão discricionária.

A quinta e última variável que contextualiza a decisão policial de aplicação seletiva da lei é a mais importante. Refere-se à "discricionariedade dos cidadãos" (Klockars, 1985:102-103). Por um lado, ela se manifesta na decisão de acionar ou não a polícia e dar preferência a certos tipos de condução policial em detrimento de outros. Por outro, ela expressa a priorização de determinadas normas legais que devem, segundo os cidadãos, ser fiscalizadas e impostas. De fato, o arbítrio dos cidadãos, assentado em um determinado imaginário social sobre a construção da ordem, suas formas de transgressão, seus mecanismos de controle e punição, impõe vários níveis de filtragem que impactam as decisões discricionárias policiais (Muniz e Proença Jr, 2007). É o caso das pressões dos cidadãos por certas formas de policiamento ou pela imposição ou não de uma determinada lei. Isto induz a uma redefinição do trabalho policial para equacionar as exigências extraídas das demandas dos cidadãos com outras prioridades retiradas das políticas de policiamento e da justiça criminal.

Pode-se melhor compreender o nível de influência que a "discricionariedade dos cidadãos" exerce sobre o trabalho policial ao se verificar que a polícia é, em essência, um meio de força reativo[14]. Suas ações são provocadas pelos mais distintos atores sociais. Sob este ponto de vista, as organizações policiais seguem sendo reativas: seja prevenindo, dissuadindo ou reprimindo; seja realizando atividades rotineiras ou operações especiais; seja se antecipando a ou intervindo na emergência dos eventos; seja quando toma a iniciativa de agir antes, durante ou depois da ocorrência de um fato no qual entende que deve atuar.

A natureza provocada do policiamento se explicita na evidência empírica de que na grande maioria dos casos não é a polícia quem escolhe a situação que vai intervir. A decisão quanto à necessidade da participação policial é, na maior parte das vezes, tomada antes pelo cidadão solicitante. Conforme conceituou Bittner (1990: 251), a polícia é chamada naqueles tipos de eventos que os cidadãos consideram que "[...] something-that-ought-not-to-be-happening-and-about-which-somebody-had-better-do-something-now".. Isto torna a polícia em boa medida dependente da decisão discricionária dos indivíduos de comunicar ou não à autoridade policial uma situação, ainda que esta seja violenta, gere insegurança ou tenha implicações criminais (Bittner,1990, Muniz 1999, Muniz e Proença Jr, 2007).

A característica reativa da polícia reflete uma caução derivada do seu mandato no estado democrático de direito que merece ser ressaltado mais uma vez: produzir alternativas pacíficas de obediência às leis sob assentimento da sociedade, isto é, promover controle e coerção sem opressão por seus executores e a sujeição a grupos de poder ou interesses particulares (Muniz e Proença Jr, 2007). Disto se conclui que a polícia, um meio de força para propósitos civis ou da cidadania, não pode ser provocativa, impertinente, invasiva, inoportuna e inapropriada diante das liberdades e garantias individuais e coletivas. No limite, tal postura e a sua reincidência no tempo conduzem à perda gradual da legitimidade do mandato policial. Isto vai calcificando incapacidades, incompetências e anomalias até o limite da total descrença pública evidenciada na percepção coletiva da irrelevância e inutilidade do recurso policial[15].

É importante assinalar que a influência da discricionariedade dos cidadãos não se encerra quando da mobilização e empenho dos recursos policiais. Como é possível supor, ela é exercida na própria condução da ocorrência. No jogo interativo entre policiais e cidadãos, as relações existentes entre os envolvidos, suas versões, justificativas e atitudes diante da polícia são levadas em conta tanto quanto as percepções dos policiais acerca da natureza do problema em questão, suas circunstâncias, gravidade, relevância, enquadramento jurídico, etc. E não poderia ser diferente, uma vez que a construção de alternativas policiais adequadas aos casos concretos torna-se possível somente pela consideração dos seus fatores contextuais.

Num recorte sociológico, vê-se que a decisão discricionária de imposição seletiva da lei caracteriza-se como o resultado de realidades sociais em negociação, nas quais se confrontam representações, identidades, expectativas, papéis e condutas sociais. Trata-se de uma decisão constituída em uma dinâmica assimétrica que conjuga, em algum nível, o arbítrio exercido por policiais e cidadãos. Ainda que menos determinante o arbítrio dos cidadãos afeta, portanto, a decisão policial de aplicar, como aplicar ou não aplicar a lei.

A discricionariedade dos cidadãos é, pois, fundamental para melhor compreender a natureza do decisionismo policial e suas possíveis externalidades. Percebe-se com isso que as decisões policiais abusivas, violentas e desrespeitosas podem, por exemplo, encontrar estímulo e reforço entre os próprios cidadãos demandantes dos serviços policiais. Elas podem vir a ser o "resultado desejado" mesmo que não explicitado. O risco deste tipo de apoio ou demanda é mais expressivo quando a abordagem policial envolve indivíduos (cidadãos e policiais) percebidos como socialmente desiguais em virtude de suas diferenças em relação à classe social, status, gênero, raça, orientação sexual ou estilo de vida. Neste caso, a oportunidade da instrumentação dos preconceitos favorece a perversão do arbítrio policial em arbitrariedades, revelando que as intenções dos cidadãos podem ser tão intolerantes e discriminatórias quanto às dos policiais.

Decisionismo e violações do mandato policial

Foram apresentados acima os principais componentes que caracterizam a discricionariedade e sua dimensão imprescindível para o exercício da profissão policial no estado democrático de direito. Tal apreciação é suficiente para marcar o caráter ilusório e frustrante de qualquer proposta que busque aprimorar o controle da ação de polícia pela supressão do decisionismo policial, cuja expressão mais contundente é o selective enforcement. Afinal, as oportunidades de abusos de poder ou de práticas policiais arbitrárias não resultam naturalmente da existência do recurso discricionário, em especial da aplicação seletiva da lei, ainda que dele se beneficiem. As violações podem ocorrer em quaisquer contexto de decisões policiais, sejam aquelas mais imediatamente percebidas como discricionárias ou não. Para tanto, basta que as escolhas efetuadas pelos policiais estejam ancoradas em visões preconceituosas e segregadoras, sejam orientadas por políticas excludentes ou motivadas por interesses escusos de indivíduos ou grupos de policiais.

Desse modo, uma suposta retração da aplicação seletiva da lei não necessariamente se faria acompanhar de uma redução dos efeitos discriminatórios oriundos da ação policial. Pode-se supor exatamente o inverso: a imposição da lei mais estrita, automática e menos discricionária poderia também ampliar os impactos negativos da ação policial sobre as camadas sociais menos favorecidas como os pobres e afro-descendentes que demandam com maior regularidade os serviços policiais (Klockars, 1985:106). Isto porque ela se beneficiaria da natureza extrapoladora do texto legal, indo além de sua razoabilidade com o objetivo discriminatório de incriminar grupos sociais. Tudo isso revestido com uma atraente fundamentação legalista. Sob a alegação de uma imposição mais rigorosa da lei tem-se, paradoxalmente, a possibilidade de se constituir e enraizar um campo de vigilância que operaria como uma verdadeira malha fina contra os segmentos com menor capital social e político.

Modelos Policiais de Aplicação Seletiva da Lei

Uma vez assumindo que a aplicação seletiva da lei é parte indissociável do trabalho policial, torna-se possível enfrentar o problema do controle da ação policial em um recorte mais realista (Klockars, 1985: 106). Torna-se possível responder de maneira substantiva e crítica como qualificar e aprimorar o processo decisório policial? Como encorajar a polícia a fazer uso oportuno, pertinente, adequado e responsivo do recurso discricionário de aplicação seletiva da lei? Klockars identifica três modelos distintos de enfrentamento destas questões que gravitam nas discussões sobre reforma policial. Estes modelos assimilados em maior ou menor grau pelas polícias são caracterizados pelo autor como: i) "a máscara da plena aplicação da lei"; ii) "a construção de regras públicas de aplicação seletiva da lei"; e iii) "o modelo profissional (policial) verdadeiro".

O modelo de sustentação de uma fachada de plena aplicação da lei, admite que o trabalho real da polícia é altamente discricionário e apresenta como resposta mais adequada à questão "nada fazer", ou melhor, ocultar esta característica aos olhos dos cidadãos. Para os defensores da máscara do full enforcement ("a máscara da plena aplicação da lei") a revelação pública da extensão da discricionariedade policial seria contraproducente para as finalidades democráticas do policiamento. Por um lado, porque comprometeria a imagem de imparcialidade e objetividade da polícia, motivando desconfianças e ressentimentos entre os cidadãos. Por outro, porque uma política explícita de aplicação seletiva da lei tornaria a polícia um alvo fácil para grupos de interesse e, por sua vez, um instrumento aberto a toda sorte de pressões políticas e de apropriações privadas (Klockars, 1985:107).

A segunda proposta, saída das considerações de Kenneth Culp Davis, "The Public Rulemaking Model", tem como fundamento a construção de regras públicas para a aplicação seletiva da lei exercida pela polícia. Este modelo reconhece que as políticas policiais de selective enforcement estruturam a rotina policial, a despeito de serem ou não reconhecidas como políticas propriamente ditas (Klockars, 1985:108). De fato, elas atravessam o trabalho da polícia mesmo quando são concebidas e pactuadas de maneira informal e implícita. Elas orientam a rotina ainda que não sejam do pleno conhecimento do topo da administração e variem conforme as unidades operacionais e grupos de policiais.

Com base nesta constatação, Davis propõe que as políticas policiais de selective enforcement, devam se tornar públicas, configurando-se como o resultado de uma formulação a várias mãos. Em outras palavras, elas deveriam ser submetidas às críticas e recomendações dos cidadãos, políticos, setores organizados da sociedade civil, etc. Uma vez legitimada e amplamente divulgada, esta política passaria a servir como um guia institucional para a construção de decisões policiais discricionárias relativas às leis. Do ponto de vista de Davis, fazer da imposição seletiva da lei uma política pública aberta à participação e ao conhecimento do público traria três virtudes que induziriam ao seu contínuo aprimoramento.

A primeira delas é que os critérios que orientam as decisões discricionárias avançariam da base para o topo da polícia; isto é, eles ficariam menos entregues às considerações ad hoc dos policiais da ponta da linha e mais sob o controle da administração policial. A segunda é que as políticas implícitas seriam gradualmente minimizadas ou eliminadas por não serem submetidas ao escrutínio público. A terceira virtude é que as regras de selective enforcement, uma vez públicas, estariam mais sujeitas às avaliações externas, enfim, ao controle social. Em adição a estes benefícios, Davis acrescenta que um processo aberto de construção da política de aplicação seletiva da lei também educaria os cidadãos e os próprios policiais quanto à função essencial da polícia nas sociedades democráticas. Ensinaria aos policiais e cidadãos que a polícia é menos uma agência de imposição da lei e mais uma agência de regulação social, cujas decisões discricionárias constituem uma parte essencial do seu trabalho.

A terceira resposta à questão sobre como lidar com as decisões discricionárias de aplicação seletiva da lei, refere-se à constituição de um "verdadeiro modelo profissional" para as polícias que não se confunda ou se restrinja à padronização e normatização dos procedimentos policiais. A pertinência de um modelo verdadeiramente profissional, defendido por Klockars (1985:113-116), tem como alicerce o reconhecimento da polícia como uma profissão "de fato e de direito".

Assim, o acréscimo do qualificativo "verdadeiro" é de fundamental importância na argumentação do autor. Enfatiza a necessidade de ir além da estruturação da polícia como uma burocracia moderna, cujos esforços marcaram o chamado "modelo profissional" desenvolvido na segunda metade do século passado[16].

Inspirado nas descobertas de Skolnick (1969) sobre a natureza do trabalho policial e no marco teórico dos estudos de polícia estabelecido por Bittner (1990), Klockars propõe o "novo profissionalismo policial". Seu ponto principal é a caracterização da polícia como uma atividade profissional que, enquanto tal, deve desfrutar de um acervo especializado de conhecimentos, técnicas e práticas que fazem uso da reflexão científica tais como a medicina, a engenharia, o magistério, etc. Neste sentido, o aprimoramento do selective enforcement, assim como de outras questões estruturais que informam o lugar de polícia, não pode prescindir de uma abordagem que considere os saberes técnicos policiais e que, com isso, seja capaz de subsidiar a tomada qualificada de decisão (Muniz, 1999, Muniz e Proença Jr 2006c, 2007).

O recorte técnico do modelo verdadeiramente profissional permite uma abordagem da aplicação seletiva da lei que concilia, de forma crítica, as duas propostas anteriormente tratadas: a Mask of Full Enforcement e o Public Rulemaking Model. Em relação à proposta de sustentação de uma mask of full enforcement, afirma que algumas, porém não todas, as decisões de aplicação seletiva da lei, devem ser ocultadas do público. Estas decisões seriam aquelas que se configuram como reservas ou segredos profissionais que responderiam a uma necessidade técnica e prática do trabalho policial. Sob este enfoque, o anúncio público de determinadas decisões de selective enforcement poderia estimular os cidadãos a violarem determinadas leis, desacreditar a função reguladora da polícia ou mesmo ser interpretado como um endosso policial a certas práticas ilegais. Veja que a explicitação da decisão policial discricionária de não deter quem ultrapassa o limite de velocidade estabelecido pode, por exemplo, motivar a sua violação deliberada pela certeza coletiva da ausência de alguma sanção. Da mesma forma, a divulgação de que, por razões estratégicas e táticas, a polícia não irá se ocupar prioritariamente do consumo varejista de drogas, pode não só motivar a proliferação desta prática, como também aparentar conivência com atividades criminosas.

Problemas similares podem vir a ocorrer se a administração policial torna pública a decisão de "suspender a investigação" e dar outros encaminhamentos aos casos de roubo que não apresentem pelo menos um fator de resolução que permita a identificação de suspeitos e a formação da autoria em bases legais. Nestes casos, como em tantos outros do cotidiano policial, tem-se a necessidade profissional da manutenção de uma máscara de aplicação plena da lei, a qual visa atender prioridades e racionalizar os recursos de policiamento para produzir os melhores resultados[17].

Assim como o Public Rulemaking Model, a perspectiva de um "modelo verdadeiramente profissional" reconhece a existência de políticas de aplicação seletiva da lei desenvolvidas pelas polícias de maneira mais ou menos informal, e considera a necessidade de aprimorá-las e de emprestá-las algum nível de institucionalização. Contudo, como insiste Klockars, distingue-se do modelo de construção de regras públicas de aplicação seletiva da lei em alguns pontos importantes.

Ao evidenciar a impossibilidade concreta de que todas as regras de selective enforcement sejam públicas, argumenta que a formulação destas regras deve se apoiar principalmente na expertise profissional e nos resultados de pesquisas sobre as polícias. Isto significa dizer que muito do conteúdo das políticas de imposição seletiva da lei ultrapassa o escopo de intervenção e do saber especializado acessível aos cidadãos, e pode aproveitar os avanços obtidos pelo conhecimento produzido pelas polícias e pela ciência. Pode, portanto, fazer uso da capacidade acumulada de predição deste saber de modo a orientar de forma mais racional e qualificada as atividades de policiamento. Como se sabe, os estudos inaugurais feitos em 1970 sobre o impacto do patrulhamento motorizado na prevenção de crimes, sobre a influência do tempo de resposta às emergências na detenção de suspeitos e dos expedientes de investigação na elucidação de crimes, contribuíram para mudanças significativas nas rotinas policiais[18]. Embasado por estes e outros resultados, Klockars afirma que a utilização do acervo disponível de descobertas científicas e de boas práticas policiais permite a elaboração de regras policiais a partir de fundamentos e diagnósticos técnicos que independem e são anteriores à sua formulação pública.

Um outro ponto de distinção entre a perspectiva profissional encampada por Klockars e o modelo de regras públicas sugerido por Davis, refere-se ao montante de discricionariedade que seria deixado nas mãos dos policiais da ponta linha. Ambas as propostas admitem que os policiais que trabalham nas ruas necessitam dispor de algum nível de poder discricionário, no qual se inclui a aplicação seletiva da lei.

Contudo, o Public Rulemaking Model, conforme já evidenciado, pretende que a extensão deste poder seja a menor possível na base da polícia e mais ampliada entre os policiais administradores. Em contraste com esta posição o modelo verdadeiramente profissional sustenta que a natureza do trabalho policial exige que os policiais que fazem policiamento desfrutem de amplos poderes discricionários para que possam executar suas atividades de forma apropriada. Disto resulta que a oportunidade de controle no uso destes poderes feito pela administração policial resulta menos da sua extensão e mais do estabelecimento de bases técnicas tanto para a definição de critérios válidos de atuação, quanto para o processo de aprendizado continuado dos policiais (Klockars, 1985:110).

Implicações

Klockars ressalta que as três alternativas apresentadas de aprimoramento do selective enforcement trazem, ao mesmo tempo, uma visão do que seria uma "boa polícia" e uma concepção das relações de autoridade e poder que deveriam existir entre policiais e cidadãos nas sociedades democráticas. Cada modelo de aplicação seletiva da lei incorpora tanto uma perspectiva moral do lugar de polícia, quanto um entendimento político dos seus relacionamentos no estado democrático de direito. Assim, a escolha por algum modelo significa, em última instância, a adesão a uma determinada perspectiva moral e política acerca da polícia e da suas formas de atuação. Neste sentido, parece oportuno situar algumas questões associadas a estes modelos que parecem mais relevantes para o debate (moral e político) sobre os rumos da reforma policial.

À primeira vista, o modelo da 'máscara da plena aplicação da lei' parece conceder à polícia mais poder para controlar ação discricional de selective enforcement do que as outras duas propostas. Entretanto, esta promessa não se cumpre na realidade. Ao negar a existência das práticas discricionárias de imposição seletiva da lei, a administração policial limita ou mesmo impede a constituição de uma política detalhada que a permitiria, de fato, ter um efetivo controle sobre estas decisões.

Observa-se que na pretensão de proteger a polícia das influências indevidas de políticos, grupos de poder, etc., o modelo The Mask of Full Enforcement compromete o processo decisório nas atividades de policiamento colocando-o numa espécie de dimensão informal e, até mesmo, clandestina de atuação. Com isso, ironicamente, favorece a manipulação política, a negociação privada e na instrumentação de interesses particulares nos procedimentos discricionários de aplicação da lei. Pois, o vácuo deixado pela ausência de diretrizes institucionais que norteiem a tomada de decisão policial tende a expor a polícia às pressões e jogos de influência, possibilitando ingerências do topo até a base da organização policial (Muniz e Proença Jr 2006b).

O 'modelo de construção de regras públicas' aparece, inicialmente, como a proposta mais aberta e democrática, uma vez que propõe uma dinâmica pública e amplamente participativa para a formulação da política de selective enforcement. Contudo, o Public Rulemaking Model pode levar a resultados contrários, ao desconsiderar os impactos coercitivos negativos da explicitação integral da política de aplicação seletiva da lei. A ilusão da possibilidade de uma total transparência das regras de selective enforcement e de uma submissão integral destas regras à aprovação social produz efeitos perversos e críticos. Abre espaço para uma regração desigual e discriminatória do recurso discricional, sustentada por grupos sociais com maior visibilidade social, capacidade de organização e pressão políticas, desqualificando o próprio expediente participativo.

Constitui sérios obstáculos à ação discricionária orientada pelos princípios democráticos do policiamento, porque também permite o aparelhamento político, engessa o processo decisório policial, induzindo a polícia a refugar as alternativas mais qualificadas de ação que contrariem os interesses de uma maioria influente. Fragiliza a expertise e a habilidade técnica da polícia para impor ou não a lei, sobretudo em áreas controversas que oferecem resistências morais substantivas e são marcadas por fortes dissensos políticos como a violência doméstica, o uso de drogas, a prostituição, o jogo, etc. A isto se soma a meta enganosa de buscar promover o controle da ação policial pela expectativa de concentração do poder discricionário na administração policial responsável por implementar a política de selective enforcement. Aqui, o insucesso é evidente, pois o exercício do mandato policial, ou melhor, a natureza do trabalho policial no estado democrático de direito revela que o poder discricional de aplicação seletiva da lei é radicalmente descentralizado, largamente controlado pelos policiais da ponta da linha, e agudamente influenciado pela discricionariedade dos cidadãos. Isto é o mesmo que dizer que nas sociedades democráticas "[...] much of the actual work of enforcing the law or deciding not to enforce it involves acting on an intuitive grasp of situation and its participants. It may be that this crucial dimension of police discretion cannot be expressed in an administrative policy, any more than a physician's diagnostic or therapeutic discretionary judgment can be reduced to the pages of a medical text book' (Klockars, 1985:113).

O "modelo profissional verdadeiro" aposta em um processo de profissionalização da ocupação policial como uma resposta consistente à realidade do trabalho do trabalho da polícia nas sociedades democráticas. A partir de um enfoque crítico apoiado por um acervo que se pretende de base técnica e científica, The True Professional Model apresenta uma resposta que concilia as virtudes já apreciadas dos modelos anteriores. Diante da propriedade de uma política de aplicação seletiva da lei, reitera a relevância de sua existência, desde que salvaguardando as reservas ou os sigilos profissionais da publicidade e do julgamento público.

Esclarece, ainda, que a oportunidade de expedientes efetivos de controle interno das decisões policiais discricionárias deve refletir a dinâmica mesma de construção destas decisões. Neste sentido, afirma ser mais frutífero reconhecer a necessidade de amplos poderes discricionários ao nível da rua. E, com isso, investir de forma mais significativa na formação educacional dos policiais, de modo a qualificá-los continuamente para a tomada de decisão, particularmente o selective enforcement.

Os pontos mais controversos deste modelo incidem, exatamente, sobre alguns aspectos associados à elevação do perfil de entrada e de saída do processo formativo proposto para os policiais. O primeiro ponto é que as polícias, assim como as forças armadas, têm servido como um importante espaço de mobilidade e ascensão social para os segmentos sociais menos favorecidos. A possibilidade de subir o nível de educação formal dos candidatos, um requisito para a profissionalização policial, alteraria esta dinâmica, uma vez que reduziria as chances dos indivíduos com escolaridade mais baixa ingressarem na polícia. Por outro lado, a exigência de um alto perfil educacional dissociada de uma elevação do padrão salarial da polícia, tende a reduzir, no curto prazo, o universo de candidatos interessados em buscar a carreira policial.

O segundo ponto é que a constituição de um programa de ensino de alto nível para as polícias exige orçamentos mais generosos e investimentos significativos, de forma a sustentar a qualidade de um processo formativo em moldes efetivamente profissionais. Requer, por sua vez, forte empenho político e expressivo interesse social para se mobilizar os recursos, garanti-los e mesmo disputá-los com outras áreas estratégicas de maior prestígio público como a saúde, a educação, a assistência social, etc.

O último ponto a gerar controvérsias políticas refere-se ao que deva ser tomado como o currículo policial profissional. Os enfoques 'normativo-legal', 'humanista-reflexivo', 'administrativo-gerencial' e 'operativo-instrumental' costumam ser apresentados pelos seus proponentes muito mais como perspectivas concorrentes, do que como conteúdos complementares que possam compor uma estrutura formativa coerente e adequada às necessidades de uma carreira policial em todos os seus níveis. Que possam atender às exigências de um meio de força que opera como uma agência de controle e regulação social.

Como é próprio de áreas acadêmicas emergentes, e em processo de disputa e legitimação científicas, observa-se um acesso ainda restrito (aos) e uma baixa circulação dos conhecimentos produzidos no campo dos Estudos de Polícia. Isto, evidentemente, dificulta a constituição de um consenso acadêmico mínimo capaz de subsidiar o debate público sobre os rumos do profissionalismo policial, que se coloque aquém e além de modismos e propostas de ocasião. De fato, a perspectiva de se estruturar um fio condutor do processo educacional nas polícias, por meio da conciliação dos atributos universais e específicos do real trabalho policial, tem-se restringido a uma dimensão quase que integramente experimental entre nós.

Os esforços nesta direção, mesmo que potencialmente frutíferos, permanecem como realidades pontuais, fragmentárias e descontínuas, ao sabor da alternância de poder, da conveniência política dos governantes ou da agenda mais ou menos corporativa das organizações do sistema de segurança pública. Salvo as exceções, estes esforços têm encontrado fortes resistências internas e externas às polícias. Eles ainda não foram enraizados como um importante passo na ambicionada reforma policial. Enfim, ainda não foram caracterizados como parte de uma política pública de democratização da segurança. Tudo isso, é claro, compromete um enquadramento responsivo, factível e cientificamente embasado da desejada profissionalização das polícias.

A esta altura, é mais do que evidente que qualquer perspectiva que vise democratizar as práticas policiais e enfrentar as suas externalidades; ou melhor, que ambicione aprimorar o processo policial discricionário, condição para o exercício do mandato policial, não pode prescindir de uma abordagem que considere, de fato, o que a polícia foi, o que ela tem sido, o que faz, os seus atributos e a sua razão de ser nas sociedades livres. Isto significa ultrapassar o perigoso caminho do imediatismo ingênuo e do confinamento intencional a leituras do tipo circunstancial ou conjuntural. Resistir à fabricação de respostas (qualquer resposta) saídas da urgência de crises ou escândalos. Superar o conservadorismo empiricista expresso, por um lado, no percurso fácil e defensivo de seguir de uma iniciativa a outra adiando ou dispensando a reflexão. E por outro, na postura conformista de buscar preencher a ausência de instrumentos efetivos de avaliação e accountability, com o endosso a práticas e experimentos sustentado tão somente por juízos morais, crendices e convicções políticas. Isto significa, enfim, dar um passo a frente do pragmatismo irrefletido e das boas intenções, em favor de um entendimento estrutural que se beneficie da produção científica e dos saberes constituídos pelas polícias. Uma abordagem sistêmica e contextual dos problemas que seja capaz de distinguir os espantalhos, os falsos problemas das reais questões que estruturam e desafiam o provimento de segurança pública nas democracias contemporâneas.

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[1] Artigo elaborado para o Curso de Gestão Organizacional em Segurança Pública e Justiça Criminal do NEV-USP, cuja versão publicada constitui a "Aula 5: Tendências contemporâneas na área da segurança pública do projeto de Curso à distância".

[2] Artigo publicado na Revista Ultima Ratio, Ano 2, número 2, Ed. Lumen Júris, 2008, pp:97-122.

[3] Para os propósitos deste texto, a expressão Selective Enforcement empregada por Klockars (1985) é traduzida como 'imposição ou aplicação seletiva da lei'.

[4] Utiliza-se, aqui, a publicação original que data de 1985, conforme mencionado ao longo do artigo.

[5] Em seu artigo Florence Nightingale in Pursuit of Willie Sutton - A Theory of the Police, publicado originalmente em 1974, Bittner estabelece, de forma inaugural, as bases conceituais rumo a uma teoria de polícia. Inspirado nas descobertas de Skolnick sobre a relação da polícia com a lei criminal, publicadas em 1966, qualifica a 'specific nature of police competence' no contexto dos instrumentos de controle e regulação social. É esta 'competência específica', ou melhor, o mandato autorizativo do uso da força e a ameaça do seu emprego que, segundo o autor, permite compreender a discricionariedade na ação policial e, por sua vez, na aplicação da lei. Em seus próprios termos: "[...] Finally, in the majority of cases in which the law is invoked, the decision to invoke it is not based on considerations of legality. Instead, policemen use the provisions of the law as a recourse for handling problems of all sorts, of which no mention is made in the formal charge" (Bittner, 1990:246). "[…] I now wish suggest that the specific competence of the police is wholly contained in their capacity for decisive action. More specifically, that the feature of decisiveness derives from the authority to overpower opposition in the 'then-and-there' of the situation of action. The policemen, and the policemen alone, is equipped, entitled, and required to deal with every exigency in which force may have used, to meet it" (Bittner, 1990:256).

[6] As categorias 'polícia cidadã' e 'segurança cidadã' têm aparecido de forma sistemática tanto na produção científica, quanto nos textos que apresentam e apreciam políticas públicas nos países latinos. Ainda que seu conteúdo possa, num recorte conceitual mais rigoroso, soar como um 'truísmo', seu emprego pretende ressaltar as contextualizações históricas das democracias latinas emergentes e demarcar politicamente uma mudança paradigmática em favor de uma perspectiva democrática do policiamento público. Sobre as perspectivas de uma 'segurança cidadã', ver: Frühling (2001), Vanderschueren (2004) e Escobar (2005).

[7] Uma discussão acerca dos elementos que conformam a natureza do trabalho policial, sua caracterização cultural e o recurso às decisões discricionárias pode ser encontrada em Bittner (1990), Reiner (1992), Skolnick (1994), Lima (1995) e Muniz (1999).

[8] Tradução livre: "Pode-se dizer que um policial ou que a polícia usam a discricionariedade sempre que limites efetivos ao seu poder deixam o policial ou a polícia livre para fazer escolhas entre possíveis rotas de ação ou inação". (Kenneth, Davis Culp apud Klockars, 1985:93).

[9] Klockars (1985:119) cita na nota 1 do seu capítulo Selective Enforcement as considerações de Albert J. Reiss sobre a natureza da discrionariedade policial. Reiss enfatiza que uma decisão é discricional não apenas porque se tem o poder de tomá-la, mas principalmente porque este tipo de decisão não está aberta a revisão legal ou prática em tempo real. Como também salientaram e Bittner (1990), Skolnick (1994) e Muniz e Proença Jr (2006) as decisões policiais discricionárias, em sua maioria, são apenas revistas pelos próprios policiais.

[10] Uma vez considerando a data da primeira publicação, tem-se a seguinte ordem de produção científica: Joseph Goldstein (1960), Jerome H. Skolnick [1966]/(1994), Egon Bittner [1970 e 1974]/(1990) e Herman Goldstein (1977), Carl Klockars (1985) e Samuel Walker (1993). As datas originais constituem uma referência indispensável, seja porque permite acompanhar o desenvolvimento das reflexões de um autor, seja para circunscrever uma determinada área de conhecimento, o estágio e o estado de sua arte.

[11] Para uma apreciação da suspeita como um aspecto translocal da cultura policial ver: Reiner (1992), Lima (1995) e Muniz (1999).

[12] As tensões existentes entre lei e ordem expressas no trabalho policial são exploradas por Skolnick (1994), Lima (1994) e Muniz (1999).

[13] Tradução livre: "[…] polícia usa a discricionariedade na aplicação seletiva de todas essas e de algumas outras leis porque faz parte da própria natureza de todas as leis criminalizar mais do que pretendem"

[14] A essência reativa ou defensiva da polícia pode ser compreendida em termos das condicionantes políticas que conformam o seu mandato no estado democrático de direito. Neste sentido, ela não se confunde, num recorte operacional, com as estratégicas e táticas que podem expressar ora reatividade, ora proatividade em função das necessidades de policiamento. Ver Muniz e Proença Jr, 2007.

[15] Muniz e Proença Jr (2006), à luz da construção teórica de Bittner, exploram as complexas relações entre consentimento social, confiança pública na polícia e oportunidade e propriedade da ação policial.

[16] Para uma descrição dos processos de mudanças nas organizações policiais e a emergência do chamado 'modelo profissional', consulte Fyfe (1997).

[17] Note-se que o imperativo do segredo profissional pode ser observado em outras atividades de regulação, como é o caso das agências do fisco. Como ressalta Klockars (1985), estas agências divulgam uma política de full enforcement embora suas práticas de fiscalização estejam orientadas por critérios profissionais de selective enforcement que são, por razões óbvias, mantidos como segredos profissionais. Exigências análogas também se fazem presentes no exercício de outras práticas profissionais como a pesquisa científica e a medicina. Nestas áreas, parte dos procedimentos adotados e dos seus critérios de escolha não está aberta ao monitoramento da sociedade, posto que sua submissão à validação pública compromete a própria construção de resultados de interesse social.

[18] Para uma sucinta descrição das pesquisas e descobertas que, no final do século passado, redefiniram as discussões no campo dos estudos de polícia e as práticas de policiamento ver: Bayley (1994; 1998 e 2001).