segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Da Governança de Polícia à Governança Policial:
controlar para saber, saber para governar (*)[1]

Para Paulo Roberto e Alessandra

Para João Roberto e Cleyde, in memoriam

Domício Proença Júnior[2]

Jacqueline Muniz[3]

Paula Poncioni[4]

Janeiro de 2009

Abstract:

Este ensaio define e a explica como a governança de polícia se distingue da, e subordina a, governança policial. Desdobra o que sejam uma e outra, e como se relacionam. Aprecia o cerne do profissionalismo policial e como ele se insere na governança democrática. Articula como e o que seria indispensável para poder governar a polícia. Aponta como isto empodera o governo para que possa atender às expectativas da vida social democrática. Sugere rumos para o aperfeiçoamento da governança pública.

This essay defines, distinguishes and explains the governance of the police and how it subordinates police governance. It characterizes one and the other and their relationship. It adresses the role of core police professionalism to democratic governance. It identifies what is required to govern the police and how to do it. It discusses how this empowers public administration over the police and how it can be improved so that it can better meet democratic expectations.

Convite à leitura

O problema é a governança. Segurança é só sintoma. Eis um início que sumariza o que se tem no texto e que se apresenta a seguir. Corresponde ao matrimônio do que era sabido antes que o texto começasse com o que se tem ao final do processo de sua escritura.

O que era sabido: que as diversas questões diante da Segurança Pública, para reconhecer o termo constitucional brasileiro, não representam impossibilidades do ponto de vista de um conhecimento policial, ou de políticas públicas. Quem se debruce profissionalmente sobre o tema identifica um amplo acervo de conhecimentos, saberes, experiências. Apreende o tanto que se pode fazer para controlar a criminalidade, a desordem, e tudo o mais que se queira colocar na conta da ampla rubrica da Segurança Pública. E, ao fazê-lo, compreender como decompô-la analiticamente. Reconhecer que, com tudo o que a Segurança Pública pode conter, e contém, o centro da possibilidade de seu encaminhamento reside na ação da polícia. As disponibilidades, a orientação e controles do que a polícia devia e podia fazer para esta ou para aquela finalidade, desta ou daquela forma. As expectativas multisetoriais de integração no campo da Segurança Pública, qualificando os termos dos relacionamentos inter-agência, desde e em torno das agências policiais.

Era, e segue sendo, razoavelmente evidente o que se pode fazer do ponto de vista de um entendimento profissional de polícia, nesta, naquela, em tantas questões, com expectativa de sucesso. Qualquer que fosse o problema da ocasião, ele tinha solução sim. A tal ponto que se podia discutir qual alternativa de solução atenderia prioridades e disponibilidades, acima de tudo qual melhor serviria à especificidade de um determinado contexto. A conclusão, diante do cabedal de alternativas policiais, era que os obstáculos à escolha por uma solução eram propriamente, ainda que amplamente, políticos: “muita politicagem, pouca política, os problemas da polícia são” (Muniz & Proença Jr 2007d).

O que se pôde obrar para além disso foi perceber mais densamente os limites da política concreta, isto é, os limites do governo, do que quem governa podia fazer diante do governar a polícia. Delineia-se um entendimento articulado do que seja a governança da polícia. Com isto se chegou a um resultado curiosamente similar ao de Monteiro Lobato noventa anos atrás, no Problema Vital, de 1918. O diagnóstico de Lobato foi posto pela arte de Mário de Andrade na boca de Macunaíma em 1928, “pouca saúde muita saúva os males do Brasil são”, com tudo de reconhecimento, reflexividade e advertência que o dito de um anti-herói pode aportar (Miskolci 2006). Este lema servira de inspiração para o título do trabalho anterior. Mas, como no caso do Jeca Tatu, cujas inapetência e incapacidade não resultavam de uma indolência intrínseca, mas dos parasitas que o infestavam e da ausência de conhecimento e ferramentas adequados à sua saúde e à lavra em terras brasileiras, havia que se compreender os limites que quem governa confrontava ao tentar governar a polícia. Vencer o reducionismo de que governar a polícia era tão somente questão da presença de uma “vontade política”. Que insinuava as inapetência, indolência ou o pior de quem estivesse no governo quando não evidenciasse “vontade política”. Compreender o papel e os limites diante de quem governa, dos empecilhos à possibilidade de governar, apontando rumos pelos quais o governante podia empoderar-se diante da politicagem da, para governar a, polícia. Conclui-se que o nó da questão é a governança sobre a polícia. Em sua natureza, em seus mecanismos, em seus objetos: o como governar a polícia que dê substância à cobrança dos eleitores de que quem governe, governe a polícia, governe a Segurança Pública.

Convida-se à leitura deste texto compartilhando, solidariamente, algo da circunstância em que ele se apresenta. Reconhecendo a multiplicidade de registros e interesses que convergem e se embaraçam, configurando um ambiente peculiar, imobilista, ao redor dos temas da Segurança Pública. Que, mais importante, deixa fora de seu lugar central a polícia. Isto não acontece por acaso, mas depende da participação dos diversos envolvidos: para alguns conveniência, para outros conivência, ainda para outros mais inocência, ou paciência, ou incompetência. Diante de eventos, ou da irrupção de alguma percepção que cumula eventos que passaram desapercebidos até seu conjunto fazê-los ululantes ou politicamente (in)oportunos, reencenam-se posicionamentos, posturas e pronunciamentos que já se fizeram diversas vezes antes. Muito – em momentos de maior desalento ou decepção, pode se expressar em um ceticismo profundo, que se espera, passageiro, e dizer que tudo – se passa como se fosse a primeira vez. Como tudo o que se pensou, discutiu, fez, avaliou, prognosticou, não tivesse tido lugar, ou, pior, diante de tantas tragédias, como se nada tivesse significado ou importância, que não fosse digno de lembrança.

Esta imposição de uma amnésia recorrente produz uma forma de imobilismo, sentido apesar do frenesi, da espetacularidade, da estridência, da retórica vazia de pronunciamentos, promessas, gestos. Sua reprise episódica depende de que se possa fazê-los desconsiderando as respostas e perguntas que já se produziram anteriormente. Vê-se mesmo a recusa, ou o esquecimento, de rumos que poderiam produzir soluções precisamente porque poderiam produzir soluções. É este imobilismo que sugere como caminhos a timidez que reluta em propor ou o ceticismo que desacredita de tentativas. A discussão profissional de polícia, o estudo científico, a perspectiva mais cidadã da governança pública, que dependem de que o debate avance para vicejar, ficam (es)premidas diante do imobilismo que a reprise produz. Mas esta situação depende da renovação da sombra do esquecimento cada vez que a discussão comece de novo. É frágil à luz que a desnude como a maior parte do problema, que a decifre para que ela não devore.

Explicar como a governança de polícia se distingue da governança policial. Desdobrar o que sejam uma e outras, como se relacionam. Apreciar o cerne do profissionalismo policial, e como ele se insere na governança democrática. Articular como e o que seria indispensável para poder governar a polícia. Apontar como estes conhecimentos empoderam o governo para que atenda às expectativas das garantias e prerrogativas da vida social democrática. Sugerir rumos para o aperfeiçoamento da governança pública. Estes conteúdos revelam como este texto é uma contribuição que nasce do que se pode fazer a partir do estudo, do conhecimento científico. Este domicílio de origem fica ainda mais explícito quanto se considera o subtítulo, controlar para saber, saber para governar, ecos da Scientia est Potentia, saber é poder, de Bacon.

Este texto relata sucintamente o resultado de uma apreciação crítica da literatura de Estudos Policiais[5]. Compartilha determinados resultados que, ainda que possam ser propositivos em si mesmos, com a certeza qualificada que o estudo científico permite, remetem tanto às perguntas quanto às respostas que se pôde dar nesta ocasião em particular. São nas perguntas realmente relevantes que se tem o rumo do questionamento e, por sua vez, o horizonte do avanço do saber. Apresenta-se, assim, como uma saliência que resulta de estudo.Afronta a timidez polida diante do imobilismo que aceita que tudo seja sempre (re)admissível tão somente porque alguém o afirma ou deseja afirmar. Contesta o ceticismo amargo porque tem rumos a propor com embasamento e justificativas, abertas à crítica, para refutá-lo. Este rumo é assumidamente imodesto porque expressa a convicção de que se pode saber mais do que se sabe antes, que se aprende algo quando se considera o saber de outros, e que se saber melhor quando se lança mão do conhecimento e do método científico.

É oportuno lembrar ao menos dois limites que pertencem a qualquer empreendimento intelectual que dependa do pensamento crítico, da racionalidade diante da empiria, que aspire a dialogar com o acervo de conhecimento científico. O primeiro é que todo conhecimento científico é, num sentido muito direto e sensível, “datado”. Avançar a qualidade constitutiva ou aplicada do conhecimento científico depende do apoio que se pode encontrar, em termos amplos, a partir de um determinado acervo de fontes. Sem fontes não se tem nem comparabilidade de experiências nem contraste de entendimento do que o conhecimento, e também o conhecimento científico, dependem. Isto depende de temporalidades próprias. Só se pode avançar depois que se teve o tempo para qualificar o olhar que considera as fontes (e parece desnecessário argüir em mais detalhe pelo valor e pela temporalidade da educação). Custa tempo considerar o que as fontes que se pode encontrar, a que se tem acesso, têm a dizer. Existe ainda o tempo para amadurecer o que se venha a encontrar nas fontes e o que sejam as formas de uso e expressão destes achados. A maioria das fontes de que se dispõe, ou de que se gostaria de ter, resulta deste mesmo processo.

Nem a busca, nem o uso, nem o que se possa produzir com o conhecimento científico atende às expectativas de tempo real da mídia, ou do governante, e muito menos da urgência que é tão presente diante do agir policial na maior parte das vezes. O que se pode afirmar em bases científicas sempre tende a desapontar aqueles que querem uma resposta imediata, específica, um pacote de soluções para o problema que tem diante de si agora. Que se impacientam diante de qualquer custo, requisito, retardo ou qualificativo. Querem certezas absolutas gratuitas, populares e anônimas, e não é isto que se pode aportar na maioria das vezes. Isso não impede, nem deve impedir, que decidam. Mas qualifica com o que podem decidir e a qualidade de suas decisões, em ato ou a posteriori.

O segundo limite é que qualquer expressão do conhecimento científico se sabe, num sentido muito essencial, imperene e qualificado quanto a seu alcance. Mais ainda, reconhece-se como potencialmente cambiante. Assume-se como parte de um processo, sem ignorar que se podem, sim, ofertar produtos. Qualquer conhecimento científico digno deste nome se apresenta como um estágio numa obra mais ampla. Espelha o anelar do intelecto por si mesmo, por entendimento, sem embargo do uso que se possa dar a ele nesta, ou em outra, ocasião. A lealdade a esta razão de ser explica a consciência com que se reconhece o quanto depende das qualidades das fontes que alimentam a razão, do que a razão ela mesma pode ser e alcançar, e o que a razão possa erigir em empiria a partir da realidade, para validar-se em seus próprios termos.

Neste sentido, quando se põe de partida que o conhecimento científico é imperene, qualificado, potencialmente cambiante, isto não é uma tibieza no que se afirma diante de retóricas de certeza indemonstrável ou o que se queira conceder ao “argumento de autoridade”. Trata-se muito simplesmente de se saber aberto ao questionamento substantivo e à refutação empírica: pronto a corrigir-se diante da demonstração de que seus dados são falsos ou incompletos; que sua lógica tem falhas; que sua apreciação dos resultados da segunda sobre os primeiros foi incompleta.

Admitem-se alternativas, não na forma polida de uma tolerância indefinida e relacional, nem no amargor cético de que a mudança, o novo, estão condenados à recusa porque inovam ou mudam. Ao contrário, só se reconhecem alternativas em termos de ambições concorrenciais entre distintos construtos científicos. Que só se aceitam concorrentes e científicos porque que compartilham estes pontos de partida e se subordinam a estes requisitos. Pode haver mais de um construto teórico, mais de um arranjo cognitivo que relacione causas e efeitos que expliquem ou predigam resultados empíricos. É no contraste da qualidade de seus resultados que se pode vir a preferir um deles por sobre os demais. É na escolha e clareza da adesão a uma dentre estas alternativas que se encontra a ética de quem faz ciência profissionalmente.

Isso não é uma profissão de ofício gratuita ou extemporânea. Explica que se possa apontar, qualificadamente, contextualizadamente, que a vida anda mais depressa do que a agenda de pesquisa ou de escritura. Que o que seja o conhecimento científico no momento em que se exprime um resultado depende do que as fontes permitem, e do que se faz com elas. Explicita porque se obra aqui um ensaio, tão firme quanto se pode edificar, mas que vai adiante a partir das fontes. Mas não se trata apenas disso. Reconhece-se, destaca-se, a imperenidade de muito do que se pôde ter como fonte para esta discussão. Em si mesmo, esta é uma cautela usual no estudo e no uso do resultado do estudo, a postura que se devem tomar as fontes cum grano salis. Mas essa cautela do grão de sal tem mais validade do que é usual. Daí se apresentar os limites do conhecimento científico para apontar limites relevantes nas fontes de que se dispõe, que são o esteio do que quem deseje encontrará para embasar seus questionamentos e críticas ao conteúdo deste texto.

Uma parte considerável do que se pensava, receava ou ambicionava quando diversas das fontes consultadas foram escritas foi profundamente afetado pelos desdobramentos do 11 de Setembro. Seis ou sete anos não foram suficientes, em termos de fontes e rigor, para que se tenham articulado estudos do que isto pode, poderia, ou poderá trazer. Os prazos de publicação que permitem o acesso trazem ainda outro tipo de temporalidade: a passagem de manuscritos para livro, ou a aceitação de um artigo num periódico, pode demorar muitos meses, alguns anos. O papel do Estado nos arranjos de segurança, de segurança pública e de polícias estatais ficou inescapavelmente redescoberto, se é este mesmo o termo que cabe usar, diante do terrorismo. Quem pode ousar seguir afirmando que bombeiros, ou a polícia, devam ser uma agência privada pautada pelo lucro depois do que se viu nas Torres Gêmeas? Que firma teria a temeridade política e moral para determinar ou proibir mais uma subida, resgatando pessoas mesmo diante do desabamento iminente? Que firma manteria sua viabilidade financeira ou aceitaria manter seu contrato de serviços, tendo que arcar com os custos de centenas de policiais e bombeiros que, em um único dia, morreram tentando até o último minuto resgatar mais algumas vidas?

Têm-se, ainda, outra temporalidade que se confunde com as anteriores: o que a crise financeira de 2008 significa para toda uma produção marcada por debates, projetos, agendas e estudos que entendia o mundo privado como capaz de plena auto-suficiência, e o mundo do Estado como um fóssil arcaico e disfuncional de outras eras. Que explicava a falência e incompetência do Estado na administração pública (inclusive o policiamento público), vislumbrava e defendia o florescer da plenitude dos arranjos que se intimava intrinsecamente superiores de redes e de mercados (inclusive de segurança). Tudo isso sugere que alguns dos dados com que se partiu, que algumas das lógicas que se utilizou, que alguns resultados a que se chegou tenham que ser reconsiderados.

Isto serve para qualificar este convite à leitura ainda quanto à forma de ler este texto. Com rigor, sem concessões, de omnibus dubitatum, como demandava Descartes, duvidando de tudo. Com isso, pode-se oferecer, como final a este convite feito prólogo, os termos gerais que orientaram o que veio a ser o rumo do estudo. Primeiro, discutir “governança de polícia”. No que quer que isso seja no momento em que se depara com o termo, para inquirir sobre o que isso é, ou pode ser. Segundo, a partir do que seja “governança”, buscar do que se tenha de “governança” o que seja substantivo, adequado, para o tratamento da polícia, com o benefício de trajetos anteriores de estudo e pesquisa. Daí o resultado que o título deste texto comunica.

O texto encontra-se dividido em estações, por assim dizer, que pontuam um determinado trajeto. A partir de uma visão mais ampla do que seja governança para progredir, em direção ao que pode, ou que deva, ser uma governança de polícia. E diante desta o que se pode qualificar como a governança policial. Estas estações constroem a identificação dos efeitos que uma causa – um fim desejado, como governar a polícia – determinam.

**** I ****

A idéia de governança não é nova; existe em diversos idiomas pelo menos desde a Renascença. O termo surge com maior proeminência no debate político, e como decorrência, na produção acadêmica, particularmente das ciências sociais, há aproximadamente uma década, na Europa e em países como EUA e Canadá. É possível associá-lo às intensas mudanças percebidas como tendo lugar no papel e no modo de atuação do Estado (especialmente, nas sociedades democráticas ocidentais), para a regulação da economia e da sociedade. Mais ainda, governança ganhou o valor de uma divisa, de um símbolo, de uma determinada agenda política, sendo objeto de diversas formas relativamente livres de uso.

Não obstante o intenso uso do termo nestes países, e talvez porque se tem um uso tão intenso e diferenciado para este termo, há enorme dificuldade em definir o que é governança. Isto sugere que não há um corpo teórico coerente sobre o tema. Observa-se a tendência de confundir a maneira como este fenômeno operaria e poderia ser entendido teoricamente com o fenômeno empírico, ou seja, com as diferentes práticas de governança encontradas em diferentes instituições, em diferentes contextos, mesmo como agenda de transformação nas mais diversas realidades.

Assim têm-se tantas definições de governança em circulação quanto as práticas que estas mesmas definições visam dar conta. Pode-se dizer que as diversas noções de governança correspondem às descrições mesmas dos eventos, situações ou interações que visam circunscrever. Como resultado, as noções de governança compartilham uma frouxidão, uma ampla latitude e adaptabilidade, que autorizaria que se ajustassem a toda sorte de práticas em que se reconhece alguma dinâmica de comando, condução, orientação ou direcionamento de ações com objetivos ou de interesses coletivos. Governança apresentar-se-ia como pura instrumentalidade, como aquilo que está acontecendo. O que seria de fato o abandono de qualquer ambição mais conceitual e o retorno ao seu uso como no idioma, por exemplo, no inglês. Trata-se, assim, de uma categoria que convida a adjetivações ou qualificativos que possam dar conta de um campo constituído ou pensado por experiências tão singulares e específicas que sua caracterização requereria trazer para a definição traços ou aspectos do sensível, como “velha” ou “nova” governança, por exemplo.

O exame da literatura revela, primeiramente, que o termo governança é usado em diferentes campos: econômico, político, cultural, isto é, onde quer que se reconheçam esferas de tomada de decisão e articulação de interesses. Atribuem-se-lhe múltiplos significados e sentidos de acordo com os diferentes cenários ou unidades de análise em foco: Estado, mercado, corporações, comunidades. Evidencia-se, ainda, que a discussão teórica associa governança a uma extensa multiplicidade de fenômenos e modalidades de ação situadas, usualmente, no espectro delineado por dois pólos opostos: o do mercado e o da hierarquia da burocracia estatal.

De modo geral, o termo governança vincula-se ao reconhecimento de instâncias de produção de governo por diferentes atores: o Estado e suas instituições, as organizações privadas, com e sem fins lucrativos, a sociedade civil (atores coletivos e individuais); e em diversos níveis de aplicações: dentro e fora do Estado, transnacional, internacional, nacional e localmente.

Do mesmo modo, de acordo com o foco de análise adotado, são destacadas diferentes modalidades de governança: pública, privada, corporativa, comunitária e em redes. Produzem-se considerações acerca das lógicas de gestão e dos arranjos institucionais mais ou menos hierárquicos, concorrentes, participativos, solidários, com maior ou menor margem de liberdade de escolha na dimensão da política. Assim, ter-se-ia diferentes modalidades de governança que seriam concebidas como descritivas, apropriadas como tipos-ideais, mas apenas no sentido tíbio de que não se encontrariam de forma pura na realidade. Na prática, se identificam um ou mais elementos destas ou de outras modalidades de governança nas diversas propostas ou descrições de governanças concretas.

Kjaer (2004) identifica cinco perspectivas divergentes, relativamente consolidadas em termos de que se podem identificar literaturas associadas a cada uma delas. Uma a uma, definem, usualmente ab initio, ab ovo, tábula rasa e axiomaticamente, governança para descrever questões, contextos, aplicações com que se confrontam, lançando mão de adjetivações variadas para discriminar seus enquadramentos de maneira mais retórica do que rigorosa.

Pode-se verificar que muitos trabalhos compartilham a preocupação diante do relacionamento entre intervenção estatal e autonomia da sociedade, enfatizando, porém, diferentes facetas deste continuum correspondendo às dimensões enfocadas. Por exemplo, a tentativa de que se teria alternativas de governança, quase modulares, em termos de níveis de politics (política), polity (comunidade política) e policy (políticas, usualmente públicas, no sentido de diretrizes), cuja composição matricial produziria uma ampla palheta de possibilidades, de ambição exaustiva, para o enquadramento das práticas da governança, no caso, da União Européia (Treib, Bähr & Falkner 2005).

Uma questão que emerge com destaque no debate está relacionada à capacidade, aos meios e ao desempenho do Estado contemporâneo. Questiona-se se ele é capaz de formular e conduzir com efetividade metas balizadas por interesses coletivos através das, e sobretudo nas, políticas de regulação econômica e social.

Várias críticas são feitas quanto ao que se entende ser uma incapacidade do Estado de cumprir seus compromissos. Destacam-se o que seriam uma burocratização excessiva dos programas e uma centralização demasiada dos processos decisórios. Estes seriam os elementos principais que impedem formas efetivamente democráticas de controle e participação nas decisões. Que produziriam ineficiência da gestão pública de recursos e gastos, levando ao progressivo aumento de interesses corporativos na administração estatal, de tal maneira a comprometer o princípio do pluralismo. Somadas à crescente internacionalização da economia, estas romperiam a cadeia do modelo tradicional de governança centrada no Estado.

Certamente, a intervenção do Estado vêm sofrendo diversas mudanças no provimento do bem-estar econômico e social, como também na soberania e em quase todos os princípios que foram intrínsecos à ação estatal, ao longo da história. Tem sido objeto de tentativas de transformação de grande amplitude e intensidade nas últimas três décadas. O exercício de governo assentado sobre um determinado território é desafiado pela enunciação de dispositivos governamentais translocais: entidades associativas, tratados, marcos regulatórios, parlamentos, polícias transnacionais, etc.. Estes apontariam para tendências de uma perda de centralidade do Estado no âmbito doméstico ou internacional. Acordos de livre comércio e circulação de pessoas, a Zona do Euro, apresentar-se-iam como evidências de um Estado que, deslocado do centro, livre do fardo da soberania, poderia melhor explorar suas vocações liberais e empreendedoras, passando a ser um ator desinteressado do jogo de poder. Emergeria como mero regulador, ou indutor, ou articulador, ou certificador das regras desses jogos, envolvendo-se em relacionamentos diferenciados com os diversos atores, em tantas e distintas instâncias de governança quantas aconteçam numa dinâmica de redes.

Nesta literatura, enfatiza-se o declínio da primazia do Estado como a unidade central de análise, reflexo de uma desejada perda de seu protagonismo decisório da iniciativa econômica, social e política da vida nacional e internacional. Enfatizam-se, assim, a emergência de múltiplos modelos alternativos de gestão de atividades estatais em diferentes setores da vida econômica, social e política. Dá-se um realce especial ao enfraquecimento da autoridade estatal diante das forças do mercado, das organizações internacionais e dos atores transnacionais (ONGs, redes, comunidades) em questões políticas e econômicas tanto em âmbito nacional quanto internacional. Assim, um grande número de trabalhos identifica ou busca antecipar a emergência de um “novo estilo” de governança: em que novas forças sociais e mentalidades, particularmente a chamada administração dos riscos, consubstanciariam diversas experiências, parcerias e modalidades de ação no setor público.

Em certo sentido, governança aparece como estratégia complementar, ou alternativa, ao que seria entendido, ou pelo menos identificado, como o modo tradicional de governo em uma estrutura burocrática do Estado. Isto porque, para alguns, a governança é pensada a partir da centralidade do Estado. Mas onde as instituições públicas não tivessem mais o papel predominante no provimento de serviços, os setores privados, lucrativos e não lucrativos (ONGs, comunidades, redes sociais) poderiam estar encarregados dessas ações. Mesmo então, o Estado seria, em última instância, um co-produtor do bem público (Pierre & Peters, 2000). Outros se concentram no papel alternativo que setores fora do Estado desempenhariam para a governança. Outros, ainda, se reúnem em torno do que entendem sejam estruturas e organização de um novo tipo, que compartilharia com o Estado, o exercício de poder e a difusão da autoridade na gestão da segurança (Bayley & Shearing 2001; Wood & Dupont 2006).

Apesar da inexistência de um corpo teórico coerente sobre o que é, devesse ou pudesse ser, “Governança”, pode-se afirmar que há um relativo consenso de que tal coisa estaria referida a algo mais amplo que o governo, norteado pela imagem de uma gestão orientada por princípios como transparência, eqüidade, responsabilização, legalidade, e o que quer que a agenda política do momento venha a acrescentar.

Num plano ideal, o que caracterizaria governança seria a articulação de interesses e a tomada de decisão entre os múltiplos atores que atuam em cooperação, motivados pela expectativa de que essas ações conjuntas resultem na solução mais eficaz para os problemas em foco. Este modelo de gestão se distingue de outros, uma vez que as parcerias/associações de cooperação são construídas horizontalmente; que diferentes objetivos e critérios de decisão são acordados pela negociação, pelo diálogo e pela confiança; o que, supostamente, afiança o equilíbrio/simetria/equivalência na participação dos processos decisórios de todos os envolvidos. Tem-se que é principalmente pela via da negociação que se logra obter o consentimento necessário para implementar as decisões tomadas sobre os problemas a serem enfrentados. A premissa é a de que a governança, fundada sobre a participação (que implicitamente se presume ter lugar numa realidade) democrática, é capaz de estimular a adesão e, com isso, criar o consentimento necessário à implementação das decisões que, legitimadas no jogo (idem) democrático, tornar-se-iam estáveis. Deste modo, embora haja diferentes interesses e racionalidades de ação, os distintos atores que participam da governança assim definida, em função das expectativas de um resultado comum, e premidos pela cooperação que advém da complexidade do problema em questão, estabelecem uma nova forma de estruturação, organização e decisão em questões políticas e econômicas nacionais e internacionais

Diante do exposto, parece possível afirmar que a atratividade da “governança” reside na expectativa de que ela venha a oferecer respostas conceituais e modos de ação para o desempenho das múltiplas tarefas envolvidas no provimento do bem público.

Diante das expectativas de transformações no papel e no modo de atuação do Estado contemporâneo, de reconfiguração em um Estado regulador, fundamenta-se um arranjo, alternativo ou complementar, que privilegia a cooperação ao invés da hierarquia, as instituições privadas e as formas descentralizadas de gestão. Isto tem produzido efeitos profundos na maneira de se conceber o que venha a ser o controle social e, por sua vez, os processos de prevenção da violência e redução da criminalidade, especialmente nos países de democracia avançada.

Neste contexto pode se observar algumas tendências no que diz respeito à reestruturação da prestação de serviços de policiamento, com a presença de atores públicos e privados, associados ou não, em especial nas atividades relacionadas com a manutenção da ordem e da segurança públicas. Para Bayley & Shearing (1996/2006), uma tendência contemporânea importante nesta reestruturação diz respeito à alteração da lógica de gestão presente nos assuntos relacionados aos policiamentos, com claro predomínio instância privada por sobre a pública. Em países como EUA, Grã-Bretanha e Canadá esta lógica tem acarretado intensas mudanças nos serviços que provêem a segurança do público. Rumo a uma public safety, mais ampla que a public security, porque considera riscos que não remetem apenas a ações humanas, mas incluem o ambiente e os acidentes. Uma public safety mais abrangente, mais eficiente porque mais capaz de atender as demandas do público a mais baixo custo.

Todavia, nas últimas três décadas, na maior parte dos países das democracias ocidentais assistiu-se ao aumento do crime violento, bem como da sensação de medo e insegurança (objetiva e subjetiva). As instituições tradicionais de controle do crime (em especial a polícia) teriam se mostrado ineficazes, ou de toda forma insatisfatórias, para o enfrentamento da questão. Nesses países, tem-se o reconhecimento de que o crime é extenso e complexo demais para ser tratado apenas pela polícia estatal. Isto tem justificado a proliferação de agências privadas de policiamento, e ainda a busca de um papel que seria mais apropriado para a polícia estatal na redução da violência e ao controle do crime.

Em parte por conta disto, assiste-se a um intenso debate sobre políticas na área de segurança, no qual a polícia torna-se cada vez mais visível, discutida e politizada em resposta as tensões e pressões para o provimento de serviços de policiamento. Sugerem-se múltiplas iniciativas para a reforma da organização policial de maneira a torná-la mais eficiente, eficaz, efetiva e responsável no desempenho das ações para o controle do crime. Concomitantemente, amplia-se a quantidade e a autoridade de agências privadas e comunitárias para a prevenção do crime, a diminuição da criminalidade, a captura dos fora da lei, a investigação dos ilícitos, a resolução de conflitos (Bayley & Shearing 1996/2006: 586).

Nesta perspectiva, como indicam Bayley & Shearing, o policiamento teria se tornado cada vez mais plural, cada vez mais compartilhado entre agências públicas e privadas (comerciais ou comunitárias). Tal pluralização seria a evidência do enfraquecimento do monopólio estatal sobre o policiamento público e indicativo de sua superação. Estas transformações, e em especial as mudanças efetuadas nas políticas dirigidas especificamente ao controle do crime, têm ocasionado impactos significativos na organização, na filosofia, nos princípios, métodos e estilos de policiamento. Porém, mais do que isso, elas têm trazido importantes conseqüências para o acesso a segurança como um bem público, em diferentes esferas tais como equidade, direitos humanos e accountability, sem os quais se podem produzir efeitos nocivos à própria democracia (: 592).

Neste cenário, visto como incerto, as fronteiras entre os setores público e privado ganham novos contornos. A compreensão sobre governança, e em particular sobre o que seria ou deveria ser a governança da polícia pública estatal, demanda um entendimento cada vez mais consistente. Que seja capaz de dar conta dos processos políticos e sociais e seus atores, responsáveis pela emergência de questões e desafios, das condições em que são formuladas e implementadas as agendas e iniciativas para e no setor.

Quando se associa esta ambição e alcances crescentes, de complexidade cada vez mais desafiantes, com a fragilidade da estrutura do entendimento do que seja a governança, chega-se a um impasse. No oceano de alternativas pretensamente explicativas, por vezes indissociáveis de projetos políticos, mais ou menos explícitos, tem-se um amplo rol de possibilidades até mesmo inconciliáveis. Isto revela a dificuldade de se dar conta do grande número de reconfigurações recentes do policiamento e do que seja a gestão da segurança nas sociedades contemporâneas. Isto revela a dificuldade de se dar conta dos seus efeitos, alcances e limites, quando se busca fazê-los instrumentos de uma governança democrática para a polícia. Isso impõe e permite que se arbitre um ponto de partida próprio, sobre o qual se possa edificar algum rumo mais sólido e, acima de tudo, mais claro para o que seja, possa, ou deva ser tal governança, qual governança de polícia.

**** II ****

É preciso situar a questão da governança de polícia. Isso significa delinear os contornos gerais de um determinado entendimento de governança do Executivo numa democracia (Held 2006). Estes contornos são a constituição e o que sejam as demandas dos grupos sociais cujo conjunto corresponde à polity. De um lado, a anterioridade constitucional das regras do jogo, traduzidas em dispositivos legais ou normativos. De outro, os interesses presentes e mais ou menos imediatos dos atores políticos, traduzidos em negociações e acordos.

A governança na democracia navega entre estes dois limites. Um governo que viole a constituição e o que dela decorre, deliberadamente ou não, não tem mais legalidade. Um governo que ignore a demanda dos grupos sociais, ou que privilegie um determinado grupo social em detrimento dos demais, ou ainda que discrimine um grupo em relação ao demais, deliberadamente ou não, tem ameaçada ou mesmo perde a sua legitimidade. A governança democrática corresponde precisamente à forma concreta pela qual se encontra um termo satisfatório entre o que se deseja fazer e o que se pode fazer, diante da dinâmica de produção de legalidade e legitimidade.

A governança dá conta de distintas instâncias de pactuação, com diferentes temporalidades, lançando mão de instrumentalidades diferenciadas. Lida com estes elementos e constrangimentos em cada momento dado, considerando as ambições e possibilidades de governo diante das premências ou urgências do presente. A governança se faz neste emaranhado de possíveis influências, obrando simultaneamente em diversas direções, instâncias e contextos, chegando aos resultados que se revelam como possíveis. Pode se ter, assim, que uma tradução mais correta do que se passa por “governança” seja mesmo um novo olhar sobre o termo “a arte da política”. Uma e outra remetem à mesma questão: que no governo, faz-se – governança ou arte da política – o que é possível fazer.

Ao se buscar enfocar o que seja a governança em relação à polícia na democracia, tem-se como expectativa necessária que as ações governamentais seguem orientadas, e buscam permanecer contidas, pelas legalidade e legitimidade emanadas do pacto político. Em que apreciar a legalidade ou legitimidade desta ou daquela, ou de muitas das decisões para e da polícia é o que estabelece a governança sobre ela. Aqui se tem a governança de polícia propriamente dita, isto é, a arte da política no exercício do governo pelo uso da polícia para determinados fins, pautada pela produção autorizada e legal de obediência ao pacto político com determinados meios e de determinados modos.

Isso dá um conteúdo distintivo ao papel da democracia na discussão de governança em relação à polícia. A democracia é anterioridade: a condição de possibilidade para que se possa ter polícia como solução para o problema do enforcement consentido. Trata-se de uma forma se assegurar que os fins pelos quais a polícia usa de força não produzam nem a tirania do governo, nem a opressão pelos policiais, nem ainda a sua apropriação por interesses privados. A democracia é também o contexto em que se tem a decisão policial (que considera agir ou não agir, e como agir), o ambiente em que se vivifica e atualiza o conteúdo de seus fins, a prevalência de seus meios, os limites de seus modos. Trata-se de estar à altura das expectativas e da confiança do público, mais amplamente da polity, de que a polícia faz por merecer o mandato que lhe foi concedido: a produção de alternativas de obediência com respaldo da força sob consentimento diante do Império da Lei (Muniz & Proença Jr 2007a). A democracia é ainda a ambição, o objetivo pelo qual se tem e se permite que exista polícia, a razão pela qual se concede o mandato policial. Trata-se de dispor da certeza de um enforcement que permita o próprio funcionamento democrático da polity, que sustente a paz social, as leis, os direitos e garantias, e tudo mais que corresponde aos termos constitucionais pactuados.

Este entendimento da forma como a democracia é anterioridade, contexto e ambição de uma governança democrática para a polícia tem um desdobramento pouco evidente. Significa que a governança não é redutível ao cumprimento de alguma lista de boas práticas ou procedimentos (cf. Bayley & Shearing 2001). Boas práticas e procedimentos têm seu papel educando o juízo, facilitando a tomada de decisão. Informam, mas não conformam e nem substituem a escolha política no exercício de governo. Em si mesmas, uma ou mais listas podem ser uma forma pela qual uma polity, um governo, expressa o que deseja de sua polícia num determinado momento. Para este fim, elas podem ser necessárias, até convenientes. Contudo, elas não tem como ser suficientes. A decisão política, o rumo da governança, não é o resultado do somatório cumulativo da enunciação e nem mesmo da adesão ao que se apresentam como boas práticas. Ao contrário, é a decisão política, é a governança, que decide apor, manter, ou retirar de uma prática o qualificativo de “boa”.

Desta forma, o primeiro elemento, o elemento mais capital na governança é ao mesmo tempo o mais amplo. Trata-se de apreender que a governança de polícia – como categoria geral – incide simultaneamente sobre as finalidades, os meios e os modos do todo da polícia. Faz uso (e por isso independe) da exemplaridade desta ou daquela parte do rol de atividades de uma ou outra polícia. A questão central passa a ser o quanto as práticas de agentes policiais, ou mesmo o conteúdo de políticas públicas que orientam a ação da polícia são, ou não são, ou o quanto são, aderentes à democracia.

**** III ****

Aqui se impõe uma digressão quanto ao estado do campo em que este texto encontra a questão, que serve de preâmbulo para a direção que se apresenta a seguir. A forma pela qual se busca aferir a aderência de uma polícia à democracia está, em larga medida, refém da apreciação de instâncias particulares de violação. Toma-se como implícito o conteúdo substantivo, afirmativo, do que é democrático, e se perde como este “algo” democrático incide, incidiria, ou deveria incidir sobre a polícia, fundindo à indistinção os aspectos de anterioridade, contexto ou ambição da democracia dos quais se podem extrair critérios positivos.

Por um lado, tem-se a adesão à democracia medida pela freqüência ou volume de violações, com distintas chaves interpretativas: que quanto mais se tem violações registradas, mais se evidenciariam os elementos que permitem fazer uma polícia mais democrática; ou que quanto menos se tem violações registradas, mais se evidenciariam os elementos que permitem reconhecer uma polícia mais democrática; ou ainda que o quanto de violações registradas não significaria nada em si mesmo, mas dependeria de comparações entre diferentes realidades que permitem adjudicar uma hierarquia de adesão à democracia entre diferentes polícias. A isso se acrescentam diversos qualificativos, o mais premente dos quais é evidentemente que qualquer um destes critérios depende fundamentalmente de contexto, de crítica do que sejam os registros, de dinâmicas societais (Bayley 1983), ou se arriscam a ser pouco mais do que retóricas mais, ou menos, ideológicas (Manning 1992/1999), mais ou menos insensíveis para a questão da governança ela mesma (Klockars 1988/1991). De uma forma ou de outra, seriam pelas quantidade e qualidade da contestação de decisões que se percebe, ou se receia ameacem, ou que violem as garantias, os direitos, a lei. Nesta perspectiva, que tem sido senão predominante, certamente majoritária, reduz-se a questão da governança de polícia a processos de aperfeiçoamento ou de expurgo. Trata-se de uma lógica que perde de vista a capacidade de governo e que, conscientemente ou não, abdica da perspectiva de controle (Punch 1983).

Semeia-se desgovernança, colocando quem governa diante de práticas estabelecidas, boas ou más, para as quais não se tem explicação. O que a polícia faz ou deixa de fazer se aproxima de uma sucessão de fatos consumados, que só admitem a sua absorção, comemoração ou pesar. Tem-se imagens, esperanças: de que mais treinamento produz invariavelmente maior adesão à democracia, ou que a reprodução mimética de boas práticas produz um profissionalismo democrático, ou ainda que a exclusão exemplar ou periódica de um número restrito de “maçãs podres” asseguraria a democratitude da polícia.

Por outro lado, acaba-se produzindo um registro apofático, que constrói pela negação o que seria uma polícia democrática. A polícia democrática acaba sendo definida como a que não discrimina pessoas ou grupos, a que não usa de força excessiva, a que não tortura, a que não falseia informações, a que não sabota o devido processo legal, a que não serve de instrumento para a defesa de privilégios e favorecimentos (Brodeur 2005, Manning 2005). Com isso, se perde qualquer possibilidade de identificar o conteúdo afirmativo que faz com que uma polícia seja polícia aderente à democracia.

A governança de polícia vai além desta quantificação de más práticas, deste registro apofático. Identificar o quão mais ou menos ruim uma polícia é não basta para poder se apreciar o quão boa ela é ou pode, ou deve, ou se deseja que venha a ser. Isso depende de se ter critérios explícitos, transparentes, pactuados pela polity, de adesividade à democracia para o todo da polícia. Critérios que distinguem o que lhe é anterior, o que seja o seu contexto, o que pauta a ambição que a norteia. Só assim se pode aspirar a governar a, exercer a governança de, polícia. Porque só então se pode ser capaz de identificar, apreciar e escolher entre decisões e trajetos indiferentes, bons, muito bons e excelentes – e não apenas de ser capaz de marcar quando decisões e trajetos são ruins ou piores.

**** IV ****

É com o benefício do quanto de anterioridade, contexto e ambição democráticos incidem sobre o todo da polícia que se tem governança de polícia. Numa democracia, a governança de polícia pressupõe a existência de instâncias autorizativas e mecanismos de controle do governo pela polity. Estas instâncias e mecanismos configuram os espaços de construção de legitimidade e da legitimação da ação de governo e, portanto, da decisão policial. Constituem arranjos diferenciados de participação e de controle popular que se fazem presentes em maior ou menor grau na pactuação constitucional; na dinâmica contextual do relacionamento com a polícia, ou seja no cotidiano da fabricação da ordem social; na identificação e busca das ambições de cidadania. São os espaços de construção e vivificação da credibilidade da polícia diante do público (Muniz & Proença Jr 2007b).

Numa democracia, a governança de polícia pressupõe uma anterioridade constitucional e legal, isto é, presume que existam regras do jogo a serem objeto de enforcement, que são a condição de possibilidade do policiamento público estatal e, portanto, o fundamento e a razão de ser da polícia. Estas regras expressam as distintas esferas de pactuação da polity, conformando a arena política de definição, expressão e produção de legalidades, que são os termos do policiamento público estatal e, desta forma, o anteparo e a medida da polícia. Legitimidade e legalidade, ainda que distintas, são apenas duas faces de uma mesma moeda: a do consentimento social para ser governado, para ser policiado. Os termos gerais pelos quais se qualifica estas regras são tão fungíveis ao modelo de democracia quanto qualquer outro aspecto da vida social, admitindo variedade: o Rule of Law, ou a Queen’s Peace, ou a Securité Interieur, ou o Estado Democrático de Direito.

A preeminência do consentimento na democracia tem uma conseqüência suprema para o que a polícia é, e para qualquer perspectiva de sua governança. O consentimento afeta todos os termos e elementos do mandato policial e de seu exercício. É o consentimento que qualifica as relações de poder entre estado e sociedade, distinguindo a obediência ao pacto democrático da polity da tirania, o arbítrio intrínseco ao ato de governar da arbitrariedade, o policiamento público de formas de proteção. É o consentimento que valida os rumos derivados das ambições de cidadania que definem escolhas dentre os fins pelos quais se usa, deixa de usar ou passa a se usar da polícia. É o consentimento que explica e modifica as formas pelas quais meios e modos policiais são preferidos, mantidos, preteridos. É o consentimento que articula e edifica o conteúdo, a vigência, as formas de ser, de agir, e o campo das escolhas legítimas e legais na prática policial.

É com estes elementos de fundo que se pode apreciar o valor da contribuição inaugural de Laurence Lustgarten em seu The Governance of the Police (1986). Lustgarten, um jurista constitucional britânico, realizou a primeira apreciação do que seria, do que deveria ser, e do que era possível ser tal coisa como a governança de polícia. Distinguiu-se, assim de uma forte tradição jurídica, de raiz positivista, que toma o ordenamento jurídico como fundante da ordem social. Revela que o mundo da lei não é, nem pode ser, as leis do mundo.

Desnuda a natureza política das leis, esclarecendo que elas resultam de acordos e negociações. Ainda que idealmente mais refletida, com horizontes mais amplos, uma lei – de fato, uma constituição – é a instrumentalidade de um acordo, uma instrumentalidade da política. As leis podem e são mudadas em função dos embates e acordos políticos entre os interesses presentes numa polity. A aplicação da lei, a seu turno, tem a inércia interpretativa e a resiliência diante da política que a própria política lhe delegou. O que sejam as garantias fundamentais refletem apenas os termos de ambição mais longevos de um determinado pacto, numa determinada polity num determinado momento.

Assim, a perspectiva de que a lei esteja “para além da política” precisa ser qualificada. Em qualquer momento dado, afirma que as regras do jogo, o regramento legal, não está aberto à manipulação privada ou à conveniência do governo. Só desta forma se estabelecem a regularidade e a previsibilidade que a ordem política constrói e das quais depende.

Mas, de maneira essencial, a lei é um instrumento político que empresta estabilidade e institucionalidade às relações de poder. Existem, sim, hierarquia e distintas temporalidades para diferentes formas constitucionais, legais e jurídicas. Estas têm ainda regramentos que conformam o âmbito e os modos de sua instrumentalidade. Hierarquia, temporalidades e regramentos que existem para servir, e existem enquanto servirem, determinados fins politicamente determinados. Na democracia, enquanto corresponderem a determinados fins consentidos. Daí a felicidade da formulação de Lustgarten de que

A preeminência da lei não é o bem público supremo. (…) Um juiz não pode concordar com este ponto de vista, mas um policial tem que fazê-lo. O mandato do juiz deriva da lei, o do policial da polity. A imposição da lei não pode ser absoluta (1986: 22).[6]

De partida, fica simplesmente impossível ambicionar a que a lei, e por extensão a polícia, estejam, ou possam estar, de alguma forma, “acima da política”. Ou ainda, que sua materialidade não seja, ela mesma, expressão do resultado de uma determinada dinâmica política. Há mais em jogo do que a adesão formalista ao que quer que seja o conteúdo da lei, ou às interpretações de sua intenção política. A cidadania aspira a mais, de fato aspira a mais através da lei, no fazer da política. Aspira a valores, a metas mais amplas, como a liberdade ou a justiça que sustenta a igualdade em direitos.

**** V ****

É com esta perspectiva que se pode contemplar as formas pelas quais se produz a governança de polícia diante de sua razão primeira: assegurar a adesividade das práticas policiais à decisão política em termos, formas, meios e modos democráticos. Isto diz respeito, sobretudo, às práticas dos agentes policiais no contato direto com os cidadãos, que são aqueles que autorizam a existência da polícia e consentem suas práticas. Mas alcança, necessariamente, o conteúdo de todas as decisões e ações de governo que orientam a decisão, ou pautam a ação policial. Neste sentido, a governança de polícia corresponde a uma determinada esfera no exercício de governo, que aprecia o mérito das escolhas, resultados e conseqüências das decisões policiais.

O governo sobre a polícia (ou sobre qualquer outra agência pública) pode ser tomado pelo que tem em comum com as outras esferas de ação governamental, que por acaso tem como objeto a polícia. Isto admite diversos recortes, que se pautam pela perspectiva mais ampla do todo do governo. O que considera a forma de definição, execução e auditagem do orçamento. O que privilegia os requisitos de transparência. Ou o que busca erigir ferramentas de valor universal, capazes de lidar com qualquer ação de governo, em prol da comparabilidade das diferentes esferas.

Estes recortes transversais, pertinentes e úteis como podem vir a ser da perspectiva mais ampla do todo do governo, são quase certamente insuficientes para produzir governo sobre a polícia (ou qualquer outra agência pública), precisamente porque não é esta a sua finalidade. Cada um deles tem seus próprios objetivos, e daí limites no que é capaz de produzir. Com controle orçamentário sabe-se principalmente, e muitas vezes apenas, o quanto e como se gasta. Isto deixa de apreciar a qualidade decisória do que, ou em que, gastar. Com mecanismos de transparência se estabelece o quanto do que se faz se leva, e como se leva, a público, mas não se tem como saber do que se fez ou deixou de fazer. Isto deixa de apreciar a qualidade decisória do que se fez, deixou de fazer, ou decidiu-se por não fazer. Com o que quer que corresponda aos indicadores das atividades de diversas agências públicas, tem-se maneiras de comparar suas atividades, mas não de considerar estas atividades em si mesmas. Isto deixa de apreciar a qualidade decisória específica de cada uma destas atividades. Com gestão de orçamento, rotinas de transparência e aplicação de indicadores, têm-se mecanismos capazes de governar aspectos da ação de agências que servem para a perspectiva que toma o governo como um todo. Mas nenhum deles é capaz de pautar o governo sobre o que seja a qualidade decisória da ação da polícia (ou de qualquer outra agência pública). Porque desconsideram, de partida, para poderem servir aos fins que os explicam, o que é essencial, específico, diferencial, no caso, na polícia (ou em qualquer outra agência pública): o seu mandato.

Apenas a governança de polícia permite lidar com o conteúdo do exercício do mandato policial articulando fins, meios e modos. Ambiciona relacionar, como causa e efeito, ação governamental e os resultados e conseqüências policiais. Elege o que, no todo da polícia, seria necessário controlar para que se saiba o suficiente do conteúdo de sua práxis de maneira a que se possa governá-la. E isto corresponde a uma apreciação do que seja o mérito do exercício do mandato policial em seus termos concretos, considerando o contexto de cada decisão policial. Isso significa que qualquer governança de polícia expressa um juízo de razoabilidade quanto ao que se pode saber para que se possa governar, e o que se busca controlar para saber.

É retoricamente sedutor, e pode-se mesmo deixar levar pelo desfrute do querer, ou se dizer que quer, saber tudo. Daí, se anunciar, ou mesmo se ambicionar, a meta de controlar tudo. Mas isto é impossível. Pode-se, ainda, buscar o máximo de controle possível. Aí trata-se de avaliar o quanto custa este máximo de controle, tanto em termos dos recursos necessários para produzi-lo, quanto em termos das conseqüências de sua tentativa, ponderando se estes custos são aceitáveis ou sustentáveis. No caminho reverso, pode-se querer o controle que corresponda ao menor custo. Mas que pode acabar não sendo controle algum.

A questão é que o controle não está dado em si mesmo. Tem-se que decidir o que e quanto controlar à vista de determinados fins. Fica explícito que o controle que se busca ter para governar resulta do quanto se deseja saber. Existe uma dinâmica entre o quanto se busca controlar e o quanto se consegue saber, mediada pelo rendimento do que um dado controle permite saber à luz do seu custo. Para o governo de uma democracia, isso significa buscar e sustentar o consentimento público, compondo com os elementos de legalidade e legitimidade em termos do que se deseja, do que se pode, e do que de fato se busca, controlar. Cada governo, em cada momento, se confronta com as demandas cambiantes e diferenciadas dos cidadãos com relação ao que estes desejam ver, ao que toleram venha a ser, controlado. Mas existe um cerne inescapável de controle que corresponde ao que permite que o governo governe a polícia, que deriva de uma medida de razoabilidade.

**** VI ****

É importante qualificar que o que se denomina de razoabilidade não é uma retórica que justifique o que quer que se decida fazer, ou que justifique expectativas mais ou menos corporativas de um “sempre se fez assim”, ou de um “caldo de cultura” mais ou menos profissional, mais ou menos técnico, que privilegia certas escolhas em função de seus interesses ou competências. A razoabilidade expressa um processo decisório que compõe explicitamente a vontade de quem governa; os receios, preocupações e preferências dos diversos grupos de interesse na polity; e o que quer se tenha em termos de conteúdos técnicos acerca das alternativas, custos, oportunidade, benefícios, riscos, etc.. Produz um juízo e uma decisão políticas. Em termos tanto de processo quanto de resultado, o que se apresenta como razoável pode ser tão transparente, tão transiente, tão transigente quanto a polity o deseje, e a legalidade e a legitimidade o permitam.

Razoabilidade não se confunde com um puro arbítrio ou o uso do bom-senso de quem quer que esteja em posição de mando. Razoabilidade e bom senso expressam juízos valorativos, morais, que articulam saberes para produzir uma decisão. Possuem a mesma natureza, mas diferem em qualidade. Esta distinção se explica, no uso que se busca dar aqui, por dois fatores.

Em primeiro lugar, pelo contexto político em que se situa a razoabilidade. O uso da razoabilidade se associa à expectativa de responsabilização pelo como e pelo o que se decide, por seus resultados e conseqüências. Neste sentido, em comparação com a arbitrariedade, intransigente, ou com o bom-senso, que é reiterativo de uma visão de mundo, a razoabilidade transige e considera a possibilidade de ruptura. Ela resulta de um determinado cálculo político que busca produzir legitimidade suficiente para respaldar determinada decisão, em termos mais amplos, para sustentar posições de poder. Isso corresponde ao reconhecimento de que um curso de ação que se apresente como razoável se abre à possibilidade de um debate substantivo quanto aos elementos que o informam, à qualidade de sua lógica, ou à apreciação de seus sentidos e conseqüências. Dito de outra forma, a razoabilidade se subordina a uma ética de responsabilidade que serve a um determinado projeto político, em termos estritos, à materialidade do rumo que se dá ao exercício de um determinado mandato.

Em segundo lugar, a razoabilidade faz um uso diferenciado, pragmático, do acervo de saberes disponíveis. Em prol do cálculo político, a razoabilidade instrumentaliza diferentes formas de produção de verdade para orientar, ou justificar, ou qualificar a decisão. Ela configura o processo de escolha de alternativas para servir à vontade política, identificando as oportunidades em que se confronta, em que se contorna, ou em que se conforma ao que sejam as tradições de uma dada polity. Neste sentido, o que se apresenta como razoável embute sempre uma possibilidade diruptiva, o potencial de mudança em função da busca de determinados fins. Isto faz com que, em si mesma, a razoabilidade possa ter alguma componente amoral, e que possa manipular as moralidades vigentes, admitindo decisões discriminatórias, excludentes, ou preconceituosas.

Ser razoável não quer dizer, automaticamente, ser democrático. Para que a razoabilidade seja, ela mesma, aderente à democracia, tem-se por um lado o contexto político democrático, tratado logo acima. Este explica a sua subordinação a uma ética de responsabilidade politicamente situada e sancionada. Por outro lado, tem-se a relevância que um determinado tipo de saber, o conhecimento científico, pode vir a ter no processo de tomada de uma decisão que ambicione o adjetivo “razoável”. É isso que qualifica, que identifica, o caráter crítico que se associa a uma medida de razoabilidade. Tudo isso para ter o que é razoável querer controlar, para poder saber, e saber, para poder governar, no caso, a polícia.

**** VII ****

Lustgarten (1986) reconhece dois qualificativos de partida para a questão do governo da polícia. Realiza uma necessária limpeza de terreno para que se tenha uma perspectiva razoável do que seja, do que deva ser, uma governança de polícia. O primeiro deles diz respeito à compreensão do que é essencial no trabalho policial. Apoiando-se em Bittner (1970, 1974), Lustgarten remete aos dois atributos distintivos do lugar de polícia: o poder coercitivo e o uso discricionário deste poder (1986: Cap. 9, Cap. 1). O segundo deles diz respeito ao reconhecimento da natureza política da atividade policial, e do potencial emancipatório deste, como de qualquer outro, meio de força. Sem embargo das cautelas que protegem a normalidade democrática, isso se traduz em dinâmicas cotidianas de usurpação de poderes por policiais ou por organizações policiais (Lustgarten 1986: Cap. 10.).

Que a legalidade tem um papel capital na condição de possibilidade de uma governança de polícia é evidente. O que não é evidente são seus limites. Desde logo, a ilusão que a confiança cega em controles legais pode vir a produzir. Por exemplo, a recorrência da pseudo-solução de se subordinar a polícia ao judiciário, como se tal afiliação pudesse resolver a questão da governança de polícia. Tem-se aqui dois registros que afirmam um erro de partida quanto ao que seja, e o que faz, uma polícia. A crença de que o “verdadeiro trabalho da polícia é o respaldo da lei”. E o desejo, esperança, de que esta tarefa seria adequadamente priorizada e controlada se o “comando da polícia fosse do judiciário”.

A confiança cega no regramento legal e a expectativa de que se possa confinar a polícia ao respaldo da lei são simplesmente ingênuas ou, mesmo, ignorantes, da realidade do trabalho da polícia. Esquecem a natureza intrinsecamente post-facto de tudo o que se pode querer ter como sendo judiciário. E a natureza das temporalidades concorrentes do antes, do durante e do depois que estabelece os termos de uso de um meio de força, cuja razão de ser é a tempestividade. Que produz, inescapavelmente, um trabalho: o trabalho policial, que exercita seletividade no agir, nas formas de agir, e portanto, também, no que registra nos relatos em que apresenta, ou como explica, a sua discricionariedade. Isto revela que no melhor dos casos o que a lei pode produzir é um tipo de controle sobre determinados desvios. Cala, tem que calar, sobre tudo o que diz respeito ao que a polícia realiza em ato ou potência, ou decide não realizar, diante do fato presente ou de sua anterioridade: o uso do poder coercitivo para reprimir, dissuadir, e o quanto a polícia possa contribuir para prevenir.

Para Lustgarten, todas as expectativas otimistas do quanto se pode controlar com a lei e da suficiência de tais controles para uma governança democrática da polícia naufragam no rochedo da caixa preta da discricionariedade. O uso discricionário do poder coercitivo, ele mesmo, vai além e fica aquém do mundo da lei. Assenta-se, antes e necessariamente, no impositivo pragmático de ação legítima diante das leis do mundo, com tudo que estas tem de alegal, não legal, inter-legal e mesmo de tolerância diante do ilegal.

Lustgarten afirma que é preciso reconhecer que existe discricionariedade, e que ela revela o limite intransponível para qualquer tipo de controle legal. Mais ainda, para ele a discricionariedade só teria como ser enquadrada como uma “caixa-preta”. Ela se situa num determinado contexto, as condições de contorno dentro das quais se tem a polícia como solução de enforcement numa polity. Nestes termos só se pode realmente controlar o que entra e o que sai da caixa preta, não como ela lida com o que entra ou produz o que sai. Assim, só seria possível apreciar inputs (situações e prioridades diante do policial ou da polícia) e outputs (resultados e conseqüências da decisão policial de agir ou não agir, e de como agir).

Toda questão passaria a ser a rentabilidade política do que se pode saber através de alternativas de controle que aceitam a caixa preta. Estas concedem uma significativa medida de autonomia para a polícia. Lustgarten reconhece, com bom humor, que isto é conceder, em alguma medida, o status de um segredo iniciático ao que seja o processo do “fazer policial discricionário”. Lembra Bernard Shaw, em que “todo profissionalismo é uma conspiração contra os leigos”. Acredita que é possível limitar a opacidade deste “segredo profissional”, apontando que a questão não é que não se saiba, ou que não se possa saber, como se decide. A questão é apenas reconhecer que uma dada decisão assim produzida não tem como ser avaliada, e portanto, não tem como ser controlada em si mesma. Trata-se, assim, para Lustgarten, de saber o suficiente do como e do o que existe nesta esfera de discricionariedade, aceita como irredutível, para não ser enganado; para saber o que conceder, e conceder conscientemente.

É com isto em mente que Lustgarten é profundamente cético da suficiência da accountability. Uma accountability despida de um enquadramento de governança é incapaz de produzir governo ou de controlar a polícia. Esta é uma questão que ele toma como resolvida no conteúdo de uma nota de rodapé em sua primeira página:

Accountability é usada freqüentemente como um coringa. O que está realmente em pauta é o controle que diversas instituições políticas devem ter sobre a polícia. Accountability no sentido de uma explicação depois-do-fato significa a aceitação de um grau severamente limitado de controle, um ponto reconhecido pelos seus proponentes mais cândidos (1986: 1, nota 3).[7]

Se o governar a polícia for tratado apenas com o que se pode obter através de accountability, um termo que admite uma variedade de matizes, chega-se a um resultado insatisfatório e limitado. Perde-se qualquer expectativa do controle do “não agir”, do controle em temporalidades encadeadas ou no tempo presente da decisão policial e seu mérito. Perde-se ainda tudo o que não possa ser accountable em termos de um encadeamento de responsabilidades que chegue, de maneira breve e clara, a uma responsabilização individual. Nestes termos, Lustgarten tem razão: a perspectiva de “esperar para ver” da accountability compartilha diversos dos limites que o controle legal apresenta em termos de sua necessária aplicação post-facto e sua fragilidade, para ele, fatal, diante da discricionariedade.

Indo algo além de Lustgarten, há que se reconhecer muito da sedução enganosa que se encontra na confiança cega na lei quando se fala de accountability. A questão é perder de vista a instrumentalidade da accountability para a governança, emancipando-a. Inverte-se o papel de instrumento e finalidade, como se accountability bastasse, ou pudesse existir, em si mesma, produzindo a governança de que ela depende para ter sentido. É o rumo que resulta de se tomar a accountability como uma “boa prática” auto-suficiente, que pela sua rotinização produziria automaticamente governança (cf. Stone & Ward 2000, Bayley 2001). Escamoteia-se o quanto a accountability depende de decisões políticas (Goldstein 1977) da polity quanto ao o que, e como, deve ser objeto de accountability neste dado momento e nestas ou naquelas circunstâncias. Perde-se de vista que a accountability, em si mesma, é parte de um determinado processo que a demanda, e a usa, e a configura, para determinados fins: o aperfeiçoamento do mandato policial e sua aderência à democracia[8].

A fungibilidade de accounts e de accountabilities, que podem e, de fato, servem para fins distintos dos que os podem ter produzido, arrisca anestesiar os mecanismos pelos quais se busca exercer poder, governar a polícia. Quando isso acontece, o limite da caixa preta da discricionariedade é superdimensionado, ou apenas serve de biombo, para que se produza a tautologia de que a polícia faz o que faz, e “presta contas” daquilo que diz, que escolhe dizer, que faz. Isso tem o risco, ainda, de confinar o que a accountability pode produzir ao termos da lei. Impõe-se os limites do controle legal por sobre, e para dentro, da accountability, amputando-a de muito de sua força e utilidade. Mas então já se está diante de uma situação apenas aparentemente paradoxal, que é o descontrole com prestação de contas. Quando se tomam os resultados e conseqüências da decisão policial não como efeitos de uma causa que buscava um determinado fim, mas como “fatos da vida”. Reconhecida a caixa preta, supostos os inputs, a accountability pode fazer muito pouco diante dos outputs além de considerá-los bons, maus, ou indiferentes. O que, para Lustgarten, é um vazio de controle com a aparência de controle. Tem-se um governar da polícia que fica dolorosamente consciente do tanto que não governa.

A questão não é qual governança de polícia a accountability permite, mas sim, qual accountability se deve ter para que se possa ter governança de polícia. Controlar para saber, saber para explicar tanto o agir quanto o não agir, apreciando as alternativas de como, à luz do mérito dos porquês, se agiu desta ou daquela maneira. É desta forma que se pode governar a polícia para buscar a sua adesividade à democracia. Tem-se então um possível uso para a accountability – como uma ferramenta dentre outras.

É possível ir mais além de Lustgarten e argüir que não é necessário aceitar e conceder a caixa preta da discricionariedade policial. Dito de outra maneira, é possível penetrar o interior da caixa preta e identificar o problema de seu controle. Apreciar as possibilidades de controle do trabalho, articulando alternativas em termos de controles de primeira ordem (supervisão direta), de segunda ordem (normativa de resultados) e de terceira ordem (adesão profissional) utilizando a perspectiva sistêmica das relações de trabalho (Bertalanfyy 1976). Isto significa que é necessário ter um esquema analítico que esgote o que seja o conteúdo do trabalho policial, que revele em sua inteireza o interior da caixa preta, de maneira a que se possa aferir o que seja a ordem de controle que possa ser aplicada.

Bittner (1983) propõe um esquema exaustivo para o controle do trabalho policial em termos de sua legalidade e workmanship (qualidade da decisão). Em termos do controle da legalidade da ação, argumenta que a supervisão regulatória, um controle de segunda ordem, tem a questão resolvida e bem resolvida. Tudo que diga respeito à legalidade da decisão policial pode ser encaminhada e resolvida a posteriori. Seu efeito sobre o trabalho policial se dá de forma indireta, ao configurar o que seja, passe ou deixe de ser passível de sanção ou prêmio. Resolve-se o controle da legalidade, assim, com um sistema de incentivos, alimentado por accountabilities, que se acionam diante de um desvio ou de um desempenho diferenciados. Para Bittner, a maior parte do problema de lidar com a workmanship não reside na workmanship ela mesma, mas sim na tentativa de se enquadrar a workmanship em alguma forma de supervisão regulatória.

E isto, num paralelo preciso com Lustgarten (1986, que desconhecia o texto de Bittner 1983), significa rejeitar a perspectiva de que alguma supervisão ou alguma norma, que alguma accountability que dependa de uma ou de outra possam dar conta da tarefa de controle. Para Bittner (1983) é evidente que na decisão policial, discricionária, nem o exercício do “ouvido vocacional” que decide se, quando e como agir; nem do talento da “construção contingencial de uma solução ad hoc de sua própria lavra” admitem antecipação. E é desta antecipação do conteúdo da decisão diante da realidade que a norma ou a supervisão dependem. Isto condena à superficialidade, mesmo à falácia, qualquer esforço de accountability que busque apoiar-se nelas.

Para Bittner, o risco então é se recusar a reconhecer estes limites e agir como se a norma ou a supervisão fossem mais capazes do que de fato são. Isto cria a ilusão de que se controla tudo para não controlar nada, assegurando, e mesmo alimentando, a autonomia policial. Como não vê alternativa proposta a esta perspectiva, aponta que este apetite legalista e normativo está condenado ao fracasso. Mesmo a ambição de supervisão direta só produzirá a expansão de camadas de supervisão, a multiplicação de relatórios e procedimentos burocráticos, mascarando a discricionariedade, inflando o efetivo e ocupando o tempo policial sem acrescentar qualquer ganho de qualidade no controle.

Mas Bittner (1970/1990, recusa-se a atribuir à workmanship o status de uma caixa preta. Considera conhecidos dois elementos constitutivos do uso discricionário do poder coercitivo policial: o “ouvido vocacional” e a “construção contingencial ad hoc”. Não se pronuncia sobre se estes seriam, ou não, suficientes. Bittner delineia os termos que orientariam a afinação do ouvido vocacional: “algo que está acontecendo, que não devia estar acontecendo, e sobre o que alguém devia fazer alguma coisa agora” (Bittner 1974/1990: 249), um resultado de enorme coerência em que o meio de força tempestivo seja pautado pela exigência, que não se adia, que não admite retardo, emenda ou recurso. Que obriga quando não consegue persuadir. Bittner (1990), apresenta os rascunhos do que seriam as condições de contorno, os inputs e outputs da sub-caixa preta da construção contingencial ad hoc. As condições de contorno seriam a coerência da solução diante da contingência das alternativas decisórias, localmente situadas, ainda que subordinada aos termos de uma pactuação democrática mais ampla. Apresenta pelo menos um input crítico desta sub-caixa-preta: a instrumentalidade da decisão policial como o “ou senão” de uma sociedade, o seu consentimento em termos da exemplaridade, e da repetibilidade, das intervenções policiais. Identifica os termos de seus outputs: a preferência pela solução mínima que encaminha, mas não necessariamente resolve, “aquilo que não devia estar acontecendo”.

De volta a Bittner (1983), a questão é qual controle pode servir para a workmanship, nestes termos. Reconhece que apenas um controle de terceira ordem, análogo ao que se tem para padres, professores ou médicos, pode ter relevância para o controle da workmanship. Mas, para Bittner, tem-se aqui mais um horizonte de investigação do que uma solução. Para ele, fica como pergunta qual seria o conteúdo pelo qual se avaliar os termos profissionais de polícia, capazes de instruir a adesão que expressaria o cerne de um controle de terceira ordem. Porque enquanto não se tivesse como avaliar a workmanship, a rentabilidade do controle estaria sempre refém da falácia.

É possível atualizar este resultado de duas maneiras. A primeira perspectiva, francamente minoritária, é que aceitou o desafio de avaliar, e portanto de controlar, a workmanship. Aqui uma das faces da questão é como romper com a superficialidade da conformação sumária, isto é, que reduz todo o processo de avaliação de uma dada decisão policial a uma sentença cabal, “compatível” ou “incompatível”, omitindo o que quer que a explique. Aqui tem-se viva a frente de luta entre a ambição de governo da polícia e ambição de autonomia da polícia em termos de dispositivos legais que autorizam, e realidades factuais que obstacularizam, a avaliação do mérito da workmanship (Wood & MacAllister 2005). A outra face da questão é como estabelecer, de partida, os termos gerais pelos quais se enquadrar o desempenho policial na workmanship. Aqui a questão é bem outra: trata-se de alavancar o próprio conhecimento policial em termos de seu tratamento científico, definindo padrões de medida capazes de mensurar, e portanto avaliar, o conteúdo específico da workmanship (Muniz & Proença Jr 2007b). A segunda perspectiva, largamente majoritária, é que assume um olhar gerencial, com maior (Macdonald 2001) ou menor (Kelling 1996) especificidade profissional para o trabalho policial. Aceita, implícita (Reiner 2002) ou explicitamente (Goldstein 1990), a caixa preta da discricionariedade, tematizando a questão do poder coercitivo exclusivamente em termos de output.

**** VIII ****

É oportuno retomar as considerações de Lustgarten (1986) que permitem compreender o que esta perspectiva oferta em termos de solução, em termos de limites e, acima de tudo, como permite reconhecer nesta “gerência policial” a “governança policial”, contida e subordinada à governança de polícia. Ele começa enxergando uma polaridade diante do reconhecimento da especificidade do saber policial. Discute se haveria algum conteúdo no saber discricionário da polícia, isto é, se existe realmente algo substantivo dentro da caixa preta. Isto porque é extremamente conveniente, para os interesses corporativos da polícia, afirmar que existe sim um conteúdo profissional, tão específico, quase idiossincrático, na gestão de uma organização policial. Que dependeria de uma passagem iniciática pela “caixa preta”.

Isto serve de diversas maneiras para que a polícia afirme a sua autonomia diante de tentativas de governá-la. Para Lustgarten, é preciso considerar os termos da armadilha que este entendimento de profissionalismo pode produzir. Por um lado, ao validar uma autonomia cada vez mais ampla da decisão policial, usurpa-se decisões que pertencem, propriamente, ao governante. Por outro lado, no esforço de resistir a esta usurpação, a esta pretensão corporativa por mais poder para a polícia, pode se perder de vista que existiria, sim um cerne de profissionalismo. Que é o que ele identifica como sendo a caixa preta da discricionariedade. Para ele, tem-se uma solução para esta polaridade entre um profissionalismo que aspira à autarquia e a presunção de que nada há neste profissionalismo a não ser uma estratégia deliberada de governar no lugar do governante. Ela reside em compreender a especificidade, a real dimensão e o efeito do uso discricionário da coerção para a configuração de uma governança de polícia razoável. Só assim se tem o antídoto para vencer esforços de se mascarar como rotina profissional o que é político sem jogar com a água do banho o bebê do profissionalismo policial.

Como ponto de partida, tem-se o efeito da caixa preta para o quanto se pode – na opinião de Lustgarten, o quanto é razoável em termos de rendimento político – conceder que o controle da gestão da organização policial seja feito tão somente pela própria polícia. A hipótese de Lustgarten é que a existência da caixa preta assinala um limite instransponível, que identifica contornos do que é razoável querer controlar. Este limite corresponde às dinâmicas gerenciais que decorrem de considerações sobre discricionariedade, sobre a prática de workmanship: o que sejam os mecanismos de controle, de aperfeiçoamento, de adaptação diante do trabalho policial. Como para Lustgarten só se pode saber que a caixa preta existe, e como ela funciona, mas não avaliar como ela funcionou em qualquer caso específico, é precisamente em função deste limite que sugere os termos do controle da gerência policial. Que quem exerça algum nível de comando dentro da polícia esteja sujeito a informar sobre as condições de contorno, os inputs e os outputs de suas decisões, mas livre para produzir suas ações dentro da caixa preta com estes limites.

Isto significa reconhecer, atualizando e explicando o que Lustgarten apontou, que a governança de polícia não corresponde à governança policial, da polícia pela polícia. A governança policial está contida na governança de polícia, admitindo uma medida de autonomia. Todo o ponto está em que se sabe que se terá que conceder alguma autonomia. E que se sabe que só se pode controlar esta autonomia por sua exterioridade, já que não é razoável – para Lustgarten, não é possível – querer controlá-la diretamente. A questão passa a ser como controlar a medida desta autonomia de maneira que ela opere satisfatoriamente no uso da discricionariedade, contendo sua tendência natural de afirmar-se usurpando decisões políticas. Construir deliberadamente os termos e controles da autonomia policial, para que o profissionalismo policial possa exercer-se destas determinadas formas aderentes à democracia. Para que se possa confiar e depender, e se confie e dependa, da qualidade da decisão profissional de polícia quando, porque e como ela escolhe exercer sua discricionariedade coercitiva.

Um resultado inesperado desta construção é a conclusão que não se pode esperar que exista um fluxo contínuo entre o que sejam as atividades de governança policial para as atividades da governança de polícia. Lustgarten corretamente aponta como não se pode ter uma governança de polícia derivada da governança policial. Que é um equívoco que se pretenda, que se permita, que elas compartilhem os mesmos pessoal, procedimentos, produtos. E essa é uma expectativa recorrente, porque há ferramentas que servem para ambas, e se perde de vista o seu contexto de aplicação, a sua utilidade em termos de fins políticos distintos, usualmente em nome da economia de escopo do uso de uma mesma ferramenta.

O caso da accountability, que ele não considera pelos motivos expostos mais acima, pode servir de ilustração. O uso de uma determinada accountability para os fins da governança policial é pautada por uma dada variedade de possíveis propósitos – auto aperfeiçoamento, aprendizado de lições, experimentação de alternativas, tudo sobre a égide da workmanship, direta ou indiretamente. O uso de uma determinada accountability para os fins da governança de polícia é pautada por uma outra variedade de possíveis propósitos – a aderência à democracia, a adaptação a novas demandas, tudo sob a égide de um projeto político, uma política pública, que determina o que se quer da polícia. Claro que pode haver alguns elementos que interessam tanto a uma quanto à outra. A questão é que a governança policial e a governança de polícia, sem embargo de seus pontos em comum, fazem perguntas distintas, buscam diferentes respostas diante de “uma mesma” accountability.

É um erro fazer da gestão policial, que tem seus próprios interesses e problemas, a materialidade da governança de polícia. Primeiro, porque isto apenas cria mais um espaço em que se pode alargar a autonomia policial, que é o que tem lugar se se concede que é a própria polícia que define as metas que deve cumprir, ou estabelece a forma pela qual estas metas seriam avaliadas, ou é quem define os termos da política pública que deveria governá-la. Segundo, porque isto é de fato uma renúncia a se ter uma governança de polícia cuja primeira lealdade, cuja razão de ser, é permitir ao governo governar a polícia e controlar a sua autonomia, aferir a sua adesividade à democracia em termos de finalidades, meios e modos. Isto permite desdobrar, de maneira qualificada, o elemento diferencial que explica porque a governança de polícia não se confunde, ao contrário, contém e subordina a governança policial.

**** IX ****

O propósito da governança de polícia é governar a polícia assegurando sua aderência à democracia como anterioridade, contexto e ambição. Incorpora, concedendo conscientemente a medida de autonomia que se considere adequada para a gestão de sua organização, a governança policial. A governança de polícia articula objetos, mecanismos e controles que instrumentalizam as finalidades, alternativas, modos e meios da polícia para um determinado projeto político. Busca aproximar as metas, e determinar as formas de busca de metas expressas em políticas públicas. Isto corresponde a dois grandes rumos. O primeiro, do conteúdo diretivo que a política pública determina e comanda, e por sua vez o que controla e avalia na decisão de policiais e organizações policiais no exercício de seu mandato. O segundo, do processo de governança ele mesmo, que diz respeito aos espaços e instâncias em que se tem o risco de usurpação das prerrogativas políticas do governo pela organização, ou pelos agentes, de polícia.

Lustgarten propõe uma estrutura que ambiciona generalidade, por um lado; e que lhe parece razoável, por outro. Esta é a contribuição mais ambiciosa de seu texto: o que seria suficiente para se ter uma governança de polícia. Isto corresponde a cinco instâncias de controle, que admitem uma hierarquia de subordinação. A primeira delas, que conforma e pauta o conteúdo das demais, diz respeito ao norte qualitativo para a ação policial em termos de (i) “universalidade e imparcialidade”. Em seguida, identifica três instâncias onde se teriam acesso e solução para a dinâmica de poder que opõe a pretensão de governar a polícia com sua ambição de governar-se: (ii) a definição de estrutura e capacitações da organização policial; (iii) as alocações e prioridades no uso dos recursos policiais; (iv) as práticas estabelecidas de enforcement seletivo. Em cada uma delas se aponta como a governança de polícia se impõe, ou defere, diante da governança policial que instrumentaliza, direta ou indiretamente em workmanship, a execução do trabalho policial e seus desdobramentos.

(i). Universalidade & Imparcialidade

A presunção de Lustgarten sobre a suficiência de universalidade e imparcialidade se arrima numa perspectiva em que estas remetem à condição de possibilidade para que a polícia possa ser o meio de força coercitivo capaz de sustentar democraticamente a ordem política pactuada. São determinantes para que se impeça que a polícia se emancipe, ela mesma, num instrumento de opressão, buscando seus próprios fins, ou seja instrumentalizada para os fins do governante produzindo tirania, violando o consentimento da polity. É oportuno desdobrar e qualificar cada um deles.

A perspectiva de universalidade tem dois lados, igualmente importantes. O primeiro é o que determina que a polícia é um bem comum e um serviço público. Acessível a todos e a qualquer um. Esta universalidade é garantida pela sua natureza estatal: o provimento de enforcement consentido, de policiamentos públicos estatais (cf. Braithwaite 2000, Shearing 2001). Porque a polícia estatal é um recurso universalmente disponível, ela serve para impedir que grupos usem de meios de força para fins privados: que ofertem, imponham, formas de proteção e portanto de opressão. O segundo é o que determina que ninguém está acima das regras do jogo, além do alcance da ação estatal da polícia. Estes dois lados da universalidade da polícia espelham a ambição de inclusividade e subordinação de todos ao pacto político mais amplo a que consentem, fora do alcance de quaisquer arranjos de policiamentos privados ou de dinâmicas particularistas de vigilância.

Desmascara-se o conteúdo pseudo-democrático que resulta da adesão acrítica, ou apenas irrefletida, a uma retórica econômica que reduziria o cidadão a consumidor (Manning 1992/1999). Que faria do Estado apenas um concorrente a mais na prestação de serviços de segurança, presumindo que os termos contratuais e a lógica do mercado seriam uma solução superior, e mais desejável, do que o “monopólio” da polícia estatal para o provimento de enforcement. Com ou sem o acréscimo de algum papel para o Estado como “âncora”, como respaldo último em termos de coercitividade (Crawford 2006), isto corresponderia a alguma forma de “governança nodal”, que maximizaria a eficiência e a satisfação do cidadão agora consumidor. Uma estrutura em rede, que supera, por hipótese, o estadocentrismo porque capaz de atender diferenciadamente às demandas diferenciadas dos grupos e indivíduos quanto à segurança. O impositivo da universalidade seria reconfigurado, pela perspectiva da generalização do provimento de serviços customizados ou customizáveis. A universalidade seria dada na forma de acesso ao mercado de segurança: ter-se-ia tanta “segurança”, tanto “policiamento” quanto se pudesse comprar, enquanto se pudesse pagar por eles.

Sabotam-se os limites do consentimento público para o quanto de enforcement se admite existir para si e na relação com o outro. Presume-se que (a mão invisível d)o mercado equilibraria os apetites do consumidor com os interesses do fornecedor, que não teriam porque se limitar aos termos arbitrados no pacto pelos cidadãos e seu governo. Ao se afirmarem autônomos em termos de contratos privados, caminha-se rumo à particularização progressiva na “gestão de riscos”, até o paroxismo de uma “governança da segurança” (humana?) que incluiria tudo o que pudesse vir a ser causa de algum malefício real, potencial, ou imaginário (Maillard 2005). Esta expectativa da auto-suficiência do mercado, articulada pela rede de interesses, apoiada na frágil expectativa de uma solidariedade imanente (Loader & Walker 2007) e de uma disposição voluntária ao “auto policiamento” (Shearing & Stenning 1992, cf. Neocleous 2000), faz-se míope (Shearing 2001), ou cega (Wood & Shearing 2006), ou recusa axiomaticamente (Kooiman 2003) o que sejam as consequências da distribuição assimétrica do potencial coercitivo e da administração de sua escassez numa sociedade livre e plural[9].

A perspectiva de imparcialidade tem um significado particular para Lustgarten, que reconhece o caráter discricionário da decisão policial e que presume que se terá uma forma de enforcement seletivo que não tem como ser imparcial. Trata-se de reconhecer a impossibilidade de que se tenha “plena imparcialidade”, por motivos análogos de porque não se pode ter “enforcement pleno” da lei em todos os momentos e lugares. A questão, portanto, passa a ser a de uma imparcialidade diante da realidade do uso da discricionariedade, isto é, a de como garantir que a seletividade do enforcement seletivo na decisão policial seja imparcial diante do pacto. O impositivo de imparcialidade é qualificado. Sabe-se que sua materialidade será a de uma imparcialidade em termos da consistência de como se decide ser parcial no exercício do mandato. Trata-se de reconhecer, e limitar, a autonomia da workmanship. Nesta expressão de imparcialidade, tem-se uma fronteira política viva, capital na democracia, entre a discricionariedade que produz seletividade e o seu abuso em termos de alguma forma de discriminação e desigualdade.

Quando se considera que a caixa preta da discricionariedade no exercício do mandato policial e no uso do poder coercitivo possa ser aberta, pode-se ir mais além na questão da imparcialidade. Ao se compreender que o agente policial exercita sua discricionariedade em termos de um ouvido vocacional e na produção ad hoc de uma solução contingencial, privilegia-se o contexto de sua decisão. O que seja a imparcialidade remete, simultaneamente, no presente estendido, ao pacto político mais amplo e às pactuações no cotidiano da política, expressas em termos de legitimidades e legalidades em negociação.

É neste sentido que se pode lançar um “novo” olhar para a formulação de Peel, em seus Princípios do Policiamento, que talvez não seja mais do que apenas reconhecer o seu conteúdo original, e desvelar como erros interpretações mais contemporâneas. Que “a polícia seja o público, e o público a polícia” deixa de ser um equívoco que presume uma simetria ou igualdade de poder entre estes atores (cf. Bayley 1985), ou uma manobra estatizante que mascara uma suposta natureza privada do policiamento em prol da legitimação da polícia estatal (cf. Shearing 1995). Ao contrário, expressa uma compreensão profunda de que o exercício da discricionariedade se funda e reconhece a assimetria entre polícia e cidadão. Por conta desta assimetria, a polícia, que é mais forte, tem que se mostrar aderente aos termos do mandato consentido que a fez mais forte. Isto significa dizer que o elemento legitimante da decisão discricionária, isto é, o termo inicial de avaliação da workmanship em termos políticos, é a convergência moral entre a decisão discricionária da polícia e o que o público reconhece, de bom ou mal grado, como razoável.

Com isto se pode apreciar o significado de um grafismo: que o norte diretivo fundante da governança de polícia seja Universalidade & Imparcialidade. Porque universalidade, ou imparcialidade, uma e outra sozinhas, podem levar a violações do pacto. Pode-se ser universalmente discriminatório; pode-se ser imparcialmente excludente.

De outro ponto de vista, o que Lustgarten propõe, nesta forma gráfica de Universalidade & Imparcialidade, corresponde a um topo hierárquico, uma anterioridade constitucional, em termos de conformação da governança de polícia. Neste sentido, tem alguns dos aspectos de aspiração, mesmo de um tipo de dever-ser, que se poderia expressar com a denominação de “princípios fundamentais para a aderência democrática da polícia”, os termos positivos de uma agenda afirmativa. Tudo o que se segue a eles corresponde a escolhas e formas de como operacionalizá-los.

E, um ponto que talvez fosse óbvio para Lustgarten, que não o elabora desta forma, é que a governança de polícia segue sendo política. Mais ainda, que só se tem governança de polícia na medida em que ela seja, e siga sendo, um lugar de embate político. Não teria como ser de outra forma, uma vez que corresponde ao governo em ato, no projeto, na decisão, na execução, no tempo real do governar. Que pondera as pressões e demandas de governantes, agências policiais, grupos de interesses ou do que sejam as diferentes formas de participação popular. Assim, a dinâmica política perpassa, explica e vivifica toda a governança de polícia: os cálculos, manobras, composições, acordos, trocas, rupturas, recuos, avanços, vitórias, derrotas e impasses. Toma-se uma governança de polícia pela qualidade de seus resultados na construção e sustentação de uma agenda pública que, amparada na legalidade, siga sendo legítima na busca de seus objetivos.

Por isso, a tradução dos princípios em uma política pública explícita, tão transparente e detalhada quanto a polity deseje, ou valore, é a pedra de toque sem a qual nada se pode edificar em termos de governança. É a política pública enquanto expressão declaratória do modo como se pretende governar sob o pacto que instrumentaliza, pauta, a dinâmica política. É a política pública que blinda, disciplina, governante, agências policiais e grupos de interesse. Blinda cada um deles de arroubos emancipatórios: do governante sobre a polity, das agências policiais sobre o governo; e todos de tentativas de usurpações de mandato ou apropriações privatistas.

É a expressão declaratória da política pública que informa, coordena, o posicionamento, a ação, a apreciação de todos estes atores políticos. O processo de definição de agenda que produz propostas de políticas públicas; a elaboração dos conteúdos e formas de políticas públicas declaratórias; as emendas, adaptações e clarificações destes conteúdos e formas; nenhum destes passos é pacífico, automático. Resultam de embates na arena política, confrontando interesses, distintos níveis de discricionariedades (porque não é só no trabalho policial que se tem discricionariedade) e de saberes. Tem-se um processo, usualmente pouco percebido ou apreciado, de composição e negociação dos rumos da ação de governo e de sua expressão, no caso, em um documento diretivo escrito e explícito – um “plano”, um “programa”, uma “política”. Aqui se tem tudo o que se identificou mais acima em termos da articulação de formas de produção de verdade, de cálculo político do que seja razoável, do que possa ser um papel para o conhecimento científico, diante da necessidade de produzir rumos de ação que materializam um projeto político capaz de agremiar legitimidades legalmente sustentáveis.

Mas fica evidente que Lustgarten presume que tudo isso ocorre, e que a questão não termina na emanação, divulgação, de uma expressão declaratória do que seja o resultado deste processo. A governança é atravessada por este processo para realizar-se no fazer-se da política pública. Na busca do que ela tenha elegido como meta, da forma como ela tenha escolhido fazer-se como método, atenta a todas as salvaguardas e considerandos que uma expressão declaratória de política pública pode ter para que possa vir a público.

Assim, para Lustgarten, o que resta, consciente desta dinâmica mais ampla, é identificar as três instâncias nas quais se tem, de fato, o espaço mais razoável, neste sentido, mais rentável para o exercício da governança de polícia, que afirma serem suficientes para produzir controle. A proposta de Lustgarten é que para governar o todo da polícia não é necessário controlar tudo na polícia. É razoável, suficiente, controlar estrutura e capacitações, alocações e prioridades no uso de recursos, e práticas estabelecidas de seletividade no enforcement.

(ii). Estrutura e Capacitações

É uma questão de governança de polícia o que sejam a estrutura e as capacitações da polícia. Do que a agência policial e os agentes policiais são capazes pertence à esfera de decisão de quem governa. Estrutura e capacitações definem e conformam o que é, para que é, e quais são as alternativas de que a polícia pode dispor para o exercício do seu mandato.

Qual seja, e para que se tenha, uma determinada estrutura e capacitações, uma determinada capacidade na polícia, tem que permanecer além da esfera decisória das organizações policiais para que se possa governá-las, para poder dotar as políticas públicas dos meios e dos métodos que lhe permitam perseguir suas metas. Isso não se confunde com a oportunidade do subsídio técnico destas organizações para a tomada de decisão de quem governa. Mas a decisão que define o que sejam as estrutura e capacitações da polícia está na raiz da possibilidade de se governar a polícia, porque só desta forma se pode controlar o que seja a sua capacidade de agir.

Governar a polícia começa, então, por decidir o que a polícia pode e não pode ser capaz de fazer. Isto só é realmente possível quando se controla, de fato, quando se decide qual é a sua capacidade. Isto significa que o efetivo da polícia; a sua estrutura organizacional no espaço; o desenho, dimensão e subordinação entre suas especialidades ou as repartições funcionais de suas atividades; seus equipamentos, procedimentos – enfim, tudo que estabelece e autoriza as alternativas de ação de que uma polícia é capaz tem que decorrer de decisões políticas e não da própria polícia.

Estas decisões podem ser tomadas muito antes que as capacidades que elas autorizam venham a ser necessárias, ou mesmo, percebidas. Daí a delicadeza da questão: ou bem se governa a capacidade da polícia continuadamente, ou pode-se ser confrontado com uma usurpação mais ou menos gradual do ato de governar. Ora porque a polícia é quem escolheu suas capacidades, e portanto só permite escolher entre as alternativas que ela mesma definiu. E estas podem não ser as que se deseja, ou mesmo podem ser as que somente a polícia deseja. Ora porque o que sejam as capacidades da polícia resultaram de processos inerciais e acríticos, idiossincráticos, incidentais. Pode-se não ter a capacidade de que se necessita, nem quaisquer alternativas de resposta diante dos fatos. Ou pode se acabar tendo capacidades que existem em si mesmas, e cuja posse pode ser difícil de explicar.

Isso revela que a determinação de estrutura e capacitações é a primeira linha de controle para que polícia não se emancipe diante do governo, e mesmo diante da polity. Coerentemente, para Lustgarten, este controle de capacidade remete diretamente ao controle da autonomia policial que ele assume ter que ser concedida. Controla a autonomia da discricionariedade, ao decidir por uma determinada palheta de alternativas. Prefere umas, aceita outras, mas principalmente exclui aquelas que se considera incompatíveis com o que se deseja da polícia, por exemplo, com os termos da expressão declaratória da política pública. Aceita, mas limita, o que a discricionariedade pode fazer, conformando o campo de possibilidades da workmanship. Isso alcança o cerne de discricionariedade que justifica uma dada medida de autonomia policial e tudo o que dela decorre. Controla a autonomia da governança policial, ao configurar o que ela tem para gerir. É desta forma que a governança de polícia estabelece os objetos, as condições, e ainda os parâmetros da capacidade cuja gestão corresponde precisamente à governança policial.

(iii). Alocação e Prioridades

A alocação e as prioridades no uso dos recursos policiais que determinadas estrutura e capacitações disponibilizam é uma questão de governança de polícia em que a contribuição da governança policial se apresenta como necessária, e a iniciativa e autonomia policiais se tornam relevantes para a própria governança de polícia. Como a agência policial e os agentes policiais distribuem os recursos e priorizam o seu emprego, como utilizam estes recursos na execução de suas ações, faz convergir as esferas de decisão de quem governa com a gestão policial. Alocação e prioridades expressam escolhas que ponderam alternativas políticas e policiais de como a polícia utiliza de sua capacidade no exercício do seu mandato.

Nesta articulação entre quem governa e diferentes níveis de gestão da agência policial tem-se que reconhecer a superioridade decisória do primeiro, a palavra final, para que se possa governar a polícia, dentro dos limites da lei e dos termos da política pública. Isso corresponde a dinâmicas nas quais a polícia, ou quem governa, toma a iniciativa na alocação ou priorização no uso de determinados recursos, buscando determinados resultados e apreciando certas conseqüências destes resultados. Aqui a questão não é mais de subsídio de parte da polícia, mas de sua participação na gestão politicamente orientada dos recursos policiais, em que a decisão final corresponde à ponderação, por quem governa, dos saldos policiais e políticos desta decisão. O que se considera na alocação e prioridades de emprego dos recursos policiais é a aplicação da capacidade da polícia em ato. Dito de outra maneira, tem-se a contraparte organizacional e política da seletividade policial. Isto corresponde a uma maior relevância da governança policial na tomada de decisão, expressa numa determinada distribuição dos recursos policiais no espaço, no tempo, ou em uma atividade considerada prioritária.

Na maior parte das vezes, a iniciativa de proposta de uso dos recursos policiais se origina na polícia, como parte de suas atividades profissionais. Quem detém comando em algum posto hierárquico da organização policial realiza um juízo profissional do que suas responsabilidades exigem, do que sejam as demandas do momento e do que sua capacidade permite, elaborando uma proposta para o uso dos recursos de que dispõe. Dependendo do que sejam os termos da governança policial de uma polícia, cada nível hierárquico responde ainda por distintos horizontes de temporalidade. O que sejam a perspectiva de sustentabilidade de suas atividades no tempo, de poder deslocar recursos policiais entre diferentes unidades ou níveis hierárquicos para determinadas atividades ou em determinadas contingências, a consideração da reserva de capacidade de pronta resposta, são algumas das muitas considerações que podem ser pertinentes para um posto de comando num serviço diuturno que pode ser confrontado com a urgência em sua intempestividade.

A proposta de usos específicos para recursos policiais também pode partir de que quem governa, seja em antecipação, ou imediatamente diante de uma determinada questão, seja na preferência por uma determinada maneira de uso destes recursos. Pode mesmo distingüir determinadas atividades e usos, seja de maneira episódica, seja determinando a sua presença no próprio processo de elaboração de proposta profissional de uso dos recursos policiais. Pode ainda intervir no momento em que uma dada situação se apresenta, trazendo o foco da autoridade e a capacidade de aportar recursos adicionais, e não apenas policiais, de quem governa. Pode participar no processo de tomada de decisão policial diante do reconhecimento de uma circunstância, de um acontecimento, que demanda prioridade política em tempo-real.

Num e noutro caso, o que venha a ser a decisão de uso dos recursos policiais se torna objeto de uma apreciação de quem governa lado a lado com quem detenha o comando num dado nível hierárquico (ou no que seja o arranjo entre governo e agência policial que quem governa considere adequado). Esta apreciação considera o juízo de mérito das alternativas profissionais de alocação de recursos e prioridades, construindo uma decisão que pondera resultados e conseqüências do uso de recursos policiais diante dos termos da política pública. Tem-se assim o exercício da governança de polícia por sobre e da governança policial, articulando as formas pelas quais se usa do conteúdo profissional da segunda para permitir o pleno exercício da primeira.

Chega-se a um determinado arranjo para o uso dos recursos policiais, seja em termos de um planejamento, seja em termos de respostas em tempo-real, com quem governa auferindo os ônus e bônus pelos resultados e conseqüências que o arranjo final do uso de recursos venha a produzir. É perfeitamente admissível que, diante de um determinado planejamento policial ostensivo, quem governe possa solicitar mudanças em termos de alocação de recursos ou de priorização de ações, seja por que busca aproximar os termos da política pública, seja por que realiza um determinado cálculo político quanto a seus possíveis resultados e conseqüências. A gerência policial pode indicar quais recursos estas mudanças demandam e apontar a necessidade de decidir qual, dentre outros usos possíveis, deixará de ser feito. É igualmente admissível que, diante da distribuição de recursos investigativos, quem governa possa desejar uma prioridade diferenciada para um determinado caso, para um determinado tipo de caso, com a mesma dinâmica de consideração de alternativas. Este exercício de seletividade discricionária é partilhada por quem governa e por quem comanda.

Isto pode produzir diversos arranjos que quem governa considera politicamente satisfatórios, que o comando policial considera profissionalmente adequados, e que admitem uma larga medida de redundância, duplicação ou emulação. É natural que se possa dispor de arranjos que instituem uma ou várias duplicações, reservas, rotinas ou pré-enquadramentos, tão longevos quanto a continuidade de uma dada decisão de quem governa, quanto o juízo profissional que os justifique. O que acaba sendo denominado uma rotina diferencia-se do processo de alocação e prioridade apenas em termos de sua temporalidade e pelo fato que admite uma medida de replicação.

A governança de polícia dinamiza o que pode se fazer inercial na governança policial. Confronta o endurecimento que arrisca emancipar uma decisão de governança de polícia numa expectativa ou numa prerrogativa policial. Busca os benefícios que se pode ter de um processo de acompanhamento, avaliação e aperfeiçoamento da rotina em termos de maximização de resultados ou economia de recursos. Definir, manter, ou mudar a rotina é apenas uma instância de governança de polícia por sobre e com a governança policial.

O ajuste político de planejamentos e iniciativas policiais, de alocação e prioridade no uso dos recursos policiais, é uma das formas mais diretas onde se têm a governança de polícia e a governança policial articuladas no provimento do serviço policial. Quando se reconhece um padrão de alocação ou de prioridade que o justifique, isto pode mesmo se tornar uma questão que possa levar a mudanças na estrutura ou nas capacitações da agência policial ou nos rumos da política pública. Esta vivificação da política pública, da estrutura e das capacitações policiais, é um dos mais importantes efeitos da governança de polícia sobre a alocação e prioridade no uso dos recursos policiais.

Mas há limites para o que quem governa pode demandar da polícia, dependendo do que sejam os termos da legalidade de uma determinada polity, dependendo da dinâmica política que constrói a legitimidade num determinado momento. Pode não ser legal, ou ter um custo inaceitável em termos de legitimidade, que quem governe interfira numa determinada decisão policial, seja em termos da decisão policial de agir ou não agir, seja em termos da forma como a polícia decide agir.

O impositivo de Universalidade & Imparcialidade constrange quem governe de arbitrar quem deva ser vigiado, investigado, ou preso, ou não, por exemplo. Da mesma forma, o que a política pública ou a governança policial tenham estabelecido como os termos formais dentro dos quais se pratica a workmanship, impõe limites ao que quem governa pode demandar que a polícia faça ou deixe de fazer na realização de seu trabalho. O reconhecimento do que seja a autonomia diante da workmanship, ela mesma, impede que quem governa arbitre o que um policial deva fazer, ou não, ou como deva fazer, no instante mesmo em que a decisão policial se põe.

Governar a polícia se consubstancia plenamente ao decidir o que a polícia deve e não deve fazer em determinado momento, em termos da aplicação e prioridade no uso de seus recursos. Isto só é realmente possível quando se controla, de fato, quando se decide sobre os rumos da gestão policial, sobre o uso que ela dá a seus recursos. Isto significa que o desdobramento do efetivo da polícia em turnos, ou em setores, ou por tarefas, individualmente ou em equipes; a prioridade relativa dos casos que chegam a uma determinada unidade especializada; a preferência por determinados tipos de policiamento ou encaminhamento; a prioridade com que se antecipa, ou responde, a determinada situação; as escolhas de mobilização de recursos que se realizam na execução de cada uma destas alternativas – enfim, tudo que faz uso dos recursos policiais de que se dispõe pertence tanto à governança de polícia quanto à governança policial.

Daí a indelicadeza da questão: ou bem se dispõe de mecanismos e competências do lado de quem governa, capazes de apreciar o mérito das alternativas nos termos em que a governança policial as apresenta, ou pode-se ser confrontado com uma usurpação mais ou menos inescapável do ato de governar. Porque se só a polícia é capaz de apreciar o que são os resultados e conseqüências das alternativas, pode-se chegar a situações de plena disfuncionalidade. Ora porque a polícia decide por ela mesma qual alternativa será executada. E esta pode não ser a que se deseja, ou mesmo pode ser a que somente a polícia deseja. Ora porque pode-se querer decidir por uma alternativa sem compreender o que ela implica. E o que venham a ser os resultados e conseqüências desta decisão pode redundar em tragédias, revelando a incompetência de quem governa no que presume governar.

Isso revela que a gestão dos recursos policiais, a alocação e prioridade destes recursos pela escolha do que a polícia deve e não deve fazer, é a realidade mais tangível pela qual se impede que a polícia se emancipe diante do governo, e mesmo, diante da polity. Coerentemente, para Lustgarten, este controle de uso da capacidade da polícia remete ao convívio constante com a autonomia policial que ele assume ter que ser concedida. Permite a autonomia da discricionariedade, mas busca situá-la em termos do que seja a alternativa mais interessante dentre as que possam estar disponíveis (e que foram pré-determinadas em termos da capacidade da polícia). E aí se vê diante da necessidade de compreender o suficiente do que cada alternativa pode produzir, para que o que se demanda que a polícia venha a fazer mais aproxime as metas e método contidos na expressão declaratória da política pública. Aceita e convive conscientemente com o que a discricionariedade pode fazer, buscando fazer uso da workmanship como instrumento desta política pública. Isso coloca a governança de polícia cara a cara com o limite do que pode governar, diante e idealmente cada vez mais familiar, com o que a discricionariedade, com o que a workmanship pode produzir e o que ela necessita para produzi-lo. É desta forma que a governança de polícia serve para instrumentalizar a ação da polícia para fins políticos, enquadrando a governança policial.

(iv). Práticas Estabelecidas de Seletividade no Enforcement

É importante reconhecer e distinguir o processo pelo qual a polícia adota, por si mesma, encaminhamentos gerais, que nascem ou se expressam em rotinas, no rumo que empresta à sua ação em determinados contextos, ou diante de determinados públicos, ou ainda quando se reconhecem determinadas circunstâncias. Todas estas decisões correspondem, de início, a uma medida de workmanship diante de um contexto (Sykes 1986/1999, cf. Klockars 1986/1999), cuja reincidência ou prevalência educa o juízo profissional dos policiais e daí, progressivamente, por mecanismos usualmente laterais, as repartições de comando ou a própria agência policial (Chan 2007). Isto diz respeito a tolerâncias, tais como a que escolhe advertir ao invés de prender, ou que deixa de aplicar a letra da lei para fazê-la cumprir obediente a seu espírito, ou ainda que exercita um juízo moral, ou político, ou pragmático, da conveniência de um determinado encaminhamento em diálogo com distintas legitimidades, negociando com variadas ordens de pactuação.

Para Lustgarten, que tem como horizonte e limite de sua preocupação o que seja a medida de autonomia que se concedeu à governança policial, parece suficiente, razoável, que a governança de polícia se ocupe tão somente de uma aferição da propriedade do que sejam tais encaminhamentos. A questão é que a polícia vai, sim, definir por si mesma que este ou aquele encaminhamento geral passe a ser praticado, e portanto, passe a estar em vigor, no sentido de que é ele que passa a orientar a ação dos policiais e as expectativas do público. Mas que essa validade não está autorizada apenas por uma decisão de governança policial. Ela precisa ser (re)validada pela governança de polícia, numa anuência explícita, num assentimento formal de quem governa de que tais encaminhamentos, que interpretam de uma determinada forma a execução da lei, são, sim, válidos. Ou porque correspondem aos termos expressos em política pública, ou porque não os contradizem, ou mesmo porque tem-se aqui um insumo a ser considerado para o aperfeiçoamento da própria política pública.

É possível e oportuno ir mais adiante, qualificando e expandindo este resultado. Ao ter que se dar conta, de fato reconhecer, práticas estabelecidas de seletividade, se revela o estado da arte da práxis policial: o exercício discricionário do poder coercitivo, que ambiciona fazer convergir as exigências do mundo da lei com as expectativas das leis do mundo. O fazer mais ou menos do que se deve, do que se pode, que materializa em ato o desafio interpretativo e executivo de encontrar uma solução pragmática (“minimamente”, como lembraria Bittner 1990) satisfatória, que afirme a credibilidade da polícia no exercício do seu mandato. Uma solução capaz de trafegar pelas legalidades e legitimidades em conflito que caracterizam a sustentação democrática da ordem pública e que confrontam cada decisão policial. É nesta instância que se tem, de maneira mais explícita, mais candente, o papel da decisão do agir (ou do não agir) e do como agir policial. E que se pode perceber que esta decisão tem como arrimo de seu arbítrio os saberes policiais constituídos na prática na, e pelo amadurecimento da, workmanship.

Revela-se que a caixa preta de Lustgarten tem, sim, mais do que apenas a perspectiva do interesse corporativo de autonomia ou o risco de emancipação do mandato da polícia: ela tem substância. Apenas se pode argumentar que ela não é tão irredutível quanto Lustgarten supunha. Ao contrário, pode-se mesmo apontar como a manutenção da hipótese de sua ininteligibilidade iniciática serve mais para a defesa corporativa de interesses policiais do que para o aperfeiçoamento do exercício do mandato, ou para a edificação de uma governança de polícia. E é razoavelmente evidente que estes saberes, refratários como possam se apresentar diante de tentativas de sua sistematização, são sim abertos à sua ordenação sob a forma de conhecimento passível de universalização, transmissão e estudo.

A prática e amadurecimento dos saberes policiais resultam de um duplo fluxo de retornos, de prêmio e sanção por escolhas e rumos de workmanship. O primeiro corresponde às dinâmicas internas, por assim dizer, da construção profissional de polícia. Que por ser polícia admite mais do que apenas uma consideração técnica ou de arranjo, que dialoga, enquanto prática profissional, com o que se apontou mais acima a respeito da onipresença de uma sensibilidade necessária para o que seja o juízo moral aceitável pelo público no instante da contingência em que a polícia atua. O segundo é mais difuso, mas não menos real, e corresponde ao poderoso mecanismo de validação de certos padrões ou decisões por sua legitimidade perante a polity, que nisto exerce a sua própria discricionariedade para além do que esteja profissionalmente consistente ou politicamente autorizado. Assim, o que a polícia obra no seu dia a dia e estabelece ao longo do tempo remete à anterioridade, contexto e ambição democráticas, que conformam o mandato do policiamento público estatal e que apontam a materialidade de que seu exercício seja aderente e, de fato, vivifique os termos do pacto mais amplo.

Este é o instante, o lugar da workmanship revelado em sua inteireza, e por excelência, onde se pode perceber de maneira mais clara (ainda que eles estejam presentes em toda decisão policial) o que sejam o ouvido vocacional da polícia e a natureza contingencial de sua solução (Bittner 1974). O ouvido vocacional, que ouve a demanda pública, que é capaz de sentir a ocasião em que a polícia deve agir e como deve agir. E como a solução policial só tem como emergir na forma de um dispositivo ad hoc, contingente, de própria lavra do policial, que se apresente como satisfatório para uma solução imediata. É precisamente por isso, porque esta solução não tem como ter outro arrimo senão o que se produza discricionariamente apoiado em um tipo de saber, forjado na e pela workmanship, que ela não tem como tolerar emenda, retardo, ou recurso no ato de sua execução, no “agora” da exigência.

Com o benefício destas considerações pode-se perceber que mesmo onde a presença da governança policial é mais forte, onde apresenta para sanção resultados de sua própria lavra para que quem governa lhes dê assentimento, ou não, de uma governança de polícia, tem-se ainda um limite, e portanto, um elemento de controle da polícia no coração de sua especificidade, na workmanship. Porque desta forma se revela a natureza da decisão policial, e se informa a governança de polícia tanto de sua variedade e vivificação diante do consentimento público, na contingência concreta de uma decisão em particular, quanto ainda de seus limites intrínsecos, cuja violação assinala um momento de usurpação do mandato: a finitude, a expediência e a imperenidade de qualquer solução que advenha do exercício autorizado de coerção.

**** X ****

Tem-se assim um jogo de relevâncias relativas, deliberadamente gradativas, entre o que seja a medida de autonomia que se identificou com a governança policial no desenho da proposta de suficiência razoável para governança de polícia. Pode ser útil delinear os termos de uma visão do todo desta governança, utilizando como chave este relacionamento.

O impositivo de Universalidade & Imparcialidade como princípio, expressão da anterioridade, contexto e ambição democráticos, serve como chave ordenadora da escolha de objetos sobre o qual se pode construir o governo da polícia em bases de razoabilidade. E isso significa que a governança policial nada tem a dizer sobre o que devam ser os termos de tais princípios: seu papel é explícita e estritamente subordinado, obediente. Define-se, de fato, pelo que seja necessário em termos de realização na busca de se alcançar esta ambição.

A questão então é a construção da expressão declaratória da política pública para a polícia que seja capaz de estabelecer, e orientar, uma governança de polícia que reconhece, e instrumentaliza, que compõe, o que sejam as preferências de quem governa em termos de metas e métodos, o que sejam as predileções, prioridades e problemas da polity que concede o mandato, o que sejam as demandas das agências policiais. Então pode-se delinear a governança de polícia como o governo em ato que se relaciona, em diferentes instâncias deliberadamente escolhidas, com, e sobre, a governança policial. Só assim se pode ter uma governança de polícia capaz de governar o todo da polícia sem se perder na irrazoabilidade de buscar governar tudo na polícia.

Quando se considera a necessidade de enquadrar, de subordinar, de controlar para poder governar a polícia, vai-se reconhecendo progressivamente o papel que os saberes específicos de polícia, que se fazem e expressam em termos de workmanship, encontram relevâncias diferenciadas, que se associam a níveis distintos da autonomia concedida à decisão policial. Numa primeira instância, a governança policial é colocada como uma dentre diversas fontes que subsidiam a tomada de decisão que estabelece as estrutura e capacitações que configuram do que a polícia é capaz. Numa segunda instância, a governança policial é convidada a ser parceira, ainda que uma parceira subordinada, para a tomada de decisão da alocação e prioridade no uso dos recursos policiais que se escolheu ter ao definir determinadas estrutura e capacitações. Numa terceira instância, a governança policial é ouvida como capaz de informar sobre os termos concretos do exercício do mandato. Nesta última se tem revelado um espaço decisório que é exclusivamente policial, onde a sua práxis serve de origem e processo que identifica práticas estabelecidas de seletividade discricionária. Diante das quais quem governa tem que decidir se as valida ou não. Estes diversos contra-fluxos de informação, experiência, potencialmente de saberes conversíveis em conhecimentos, que se originam na governança policial, configuram o que esteja possível para a governança de polícia, numa dada polity, num determinado momento. Portanto, tem um papel na identificação das necessidades, dos rumos, das oportunidades e dos obstáculos que tem que ser considerados na própria (re)formulação da política pública.

No que se distingue e articula governança de polícia e governança policial, desmascara-se, por insustentável, a tentativa de usurpação da decisão política através de expansões não autorizadas da autonomia policial, expressas em formulações tais como “operacional” ou, para iniciar uma ponte rumo ao Brasil, “tático-operacional”.

No que o uso destes termos remete ao conteúdo que articula a discricionariedade do uso do poder coercitivo na decisão policial, eles são descritivos adequados para determinados problemas. Assim, se o problema é o empreendimento policial, a operação de seus meios, diante da dificuldade da articulação de partes distintas para uma dada tarefa, ou para a concatenação de resultados parciais na busca de um resultado mais amplo, então o termo “operacional” tem alguma utilidade. Serve para distinguir, classificar e conter uma dada classe de encaminhamentos ou decisões policiais. Se o problema é a execução de uma decisão policial em que se tem que considerar, ainda, ou ao invés, situações em que a recalcitrância é esperada, ou seja, se o problema embute considerações de força contra força, então o termo “tático” ou, se também pertinentes as considerações anteriores, “tático-operacional”, pode, novamente, ter alguma utilidade. Em si mesmos, desta forma, eles não representam e nem apontam para qualquer tipo de emancipação da decisão policial diante de quem governa ou de quem concede o mandato.

Mas fica claro como o sol do verão o quanto estes termos são manipulados para disfarçar a usurpação de decisões de governo quanto a estrutura e capacitações, na alocação e prioridades no uso de recursos, no caso, policiais. Esta é uma questão recorrente, esperada, comum sempre que se lida com quem detenha o mandato de uso de meios de força. É uma tentação inevitável para quem possui os meios concretos e imediatos do poder (polícias e forças armadas), que expressam de maneira mais sensível e cabal o governo num território ou sobre uma população (Muniz & Proença Jr 2007c).

Porque é fácil expandir, sob a capa da especificidade profissional, a governança policial, vindo a tomar para si decisões políticas de para que se tem qual polícia e como ela deva ser usada. Quando se tolera que o alcance, por exemplo, do “operacional” seja explicação para que seja a polícia quem decida quando, o que e como fazer, e se articula esta pretensão com o jogo de cenas que afirma que só a polícia pode decidir de forma “apolítica”, pretensamente “técnica”, como se tal coisa pudesse existir no trabalho policial, já se pode reconhecer uma governança de polícia em assujeitamento, um governo que está sendo governado pela sua polícia. E é fácil perceber como esta “despolitização” se traduz imediatamente na descoberta do tanto de poder político que a polícia agora tem. Ela passa a ter uma presença na mesa de governo, não como assessora, nem como parceira, mas como dublê de governante.

Se é fácil perceber o quanto se pode estar concedendo a uma emancipação potencialmente predatória do mandato policial ao se admitir a expansão da idéia de “operacional”, é mais difícil compreender processos menos visíveis, mas igualmente capazes de produzir usurpações. Uma dinâmica que pode seguir por anos plantando as bases de tais autonomizações é a que contorna o controle das estrutura e capacitações de uma polícia. Isto ocorre quando se delega, irrefletidamente, a questão do material, do equipamento ou da tecnologia à esfera estrita da governança policial. Abdicar do controle logístico significa perder a capacidade de conformar o que sejam as capacidades da polícia, ver-se refém do que sejam as alternativas policiais que a própria polícia decidiu ter. Há dois lados mais salientes nesta questão.

A aparência de indigência logística é um recurso muito freqüente nas polícias. Justifica que não se possa fazer algo ou não se possa fazê-lo de alguma forma que seria preferível porque não se tem os meios. O talento desta forma de emancipação, que pode ficar sendo preparada por muitos anos, é informar desta carência com um lado da boca e imediatamente resistir a que esta carência seja suprida com o outro. Um dispositivo extremamente eficaz é o que soma numa só quantia o custo de se adquirir os meios, de se capacitar em larga escala quem devesse ou não devesse usá-los, ou tê-los, maximizando tudo o que corresponda à substituição das alternativas já existentes (cujo custo então se subestima), encontrando os mais longos prazos entre compra e capacidade, e ainda descobrindo pontos ao redor dos quais se possa recear uma polêmica. Então tudo fica proibitivamente dispendioso, longo e potencialmente controverso. Se se descura do papel da governança de polícia buscando e operacionalizando a busca das metas e métodos da política pública, acaba-se acreditando sempre que o que se tem é o melhor que se pode ter.

Muitas vezes esse gambito funciona por partes, quando se adquire o determinado meio que fora apontado como sendo a substância da carência que impedia o atendimento da demanda política. Se se descura do papel da governança de polícia no entendimento do que os meios permitem, ou não, pode-se ter que amargar a descoberta de que, ainda que este meio recém comprado seja realmente essencial, para fazer o que se queria ainda se tem falta de um outro. Ou se se descura do papel da governança de polícia para governar as capacitações, deixando ao bel prazer da polícia quando, como, e se alguém será capacitado a utilizá-lo, o meio pode ser condenado ao depósito logo após a cerimônia e a photo-opportunity de sua chegada. Quando então se justifica que não se possa fazer algo ou não se possa fazê-lo de alguma forma que seria preferível porque não se tem o treinamento adequado. Se não se apõe a governança de polícia por sobre a governança policial, esta pode lançar mão ainda de estágios posteriores desta forma de autonomização. Sabe-se o quão longa esta lista de estágios pode vir a ser antes que se consiga (se é que se consegue; governos têm mandatos) alguma coisa: que se tem treinamento, mas não doutrina; doutrina, mas não equipes qualificadas e prontas; equipes qualificadas, mas não protocolos administrativos que assegurem sua prontidão; protocolos administrativos, mas não amparo legal, e assim por diante.

**** XI ****

Diante da compreensão do que a governança de polícia é, e da forma como ela subordina e usa da governança policial, pode-se requalificar os limites que se identificaram quanto à utilidade de recortes transversais que se fazem presentes em todas as esferas de ação governamental. A governança de polícia (ou de qualquer outra agência pública) ilumina os usos que se pode, agora, encontrar para determinados instrumentos de governo.

Permite associar mérito às alternativas de dispêndio, robustecendo o controle orçamentário como mecanismo de governança pública. Define as instâncias indispensáveis para apreciar a qualidade decisória do que, ou em que gastar: as decisões de estrutura e capacitações, de alocação e prioridade no uso de recursos policiais, para que se possa, de fato, governar.

Permite compreender em que e para que a transparência é indispensável para apreciar o mérito da ação governamental, dando conta da qualidade decisória do que se fez, deixou de fazer, ou decidiu-se por não fazer em termos do que sejam a expressão declaratória da política pública. Esclarece quais são os objetos inescapáveis a serem feitos e mantidos transparentes: os processos e resultados das decisões de estrutura e capacitações, de alocação e prioridade no uso de recursos policiais, de validação de práticas estabelecidas de seletividade no enforcement, dos contornos, inputs e outputs da governança policial para que se possa, de fato, governar.

Permite qualificar quaisquer esforços comparativos das agências públicas, indo além de alguma cesta de indicadores que se confina ao que estas agências têm em comum. Revela que é indispensável que a comparabilidade considere o contraste do que é essencial na razão de ser de cada agência: a qualidade do desempenho em seu mandato.

Isso remete, de diversas formas, à governança pública mais ampla. Sugere a que se tenham explícitos e atuais os termos dos mandatos das agências e órgãos públicos. Que se possa considerar o todo do governo apreciando o mérito da execução destes mandatos (e até do mandato dos governantes), como articulados pelas expressões declaratórias explícitas das políticas públicas para que se possa, de fato, governar.

**** XII ****

A rubrica constitucional da Segurança Pública, que se referenciou no convite à leitura, pode, agora, ser reconsiderada com benefício do que se apresentou até aqui. As dificuldades da questão não residem no entendimento sistemicamente ambicioso da “Segurança Pública”. Ao contrário, residem no desafio de instrumentalizar a sua integralidade na esfera governamental. A questão é de governança, da institucionalidade dos mecanismos executivos que a materializem, que permitam controlar o que se precisa e deve saber para poder governar. A orfandade da governança de polícia, mesmo a estranheza deste termo na realidade brasileira, derivam desta dificuldade instrumental.

No momento, tentativas de elaboração de uma “política de segurança pública”, dissociada dos dispositivos de governança de que necessita, têm correspondido ao uso potencialmente frustrante dos recursos políticos e da energia de quem governa. Sem um entendimento analítico do que sejam as componentes da Segurança Pública, não se tem como escolher prioridades, ponderando objetivos políticos diante do que é possível fazer, apreciando alternativas em termos de seu mérito, de requisitos e expectativas de sucesso, riscos e custos. Fica mesmo impossível identificar quais agências poderiam dar conta do que no exercício de seus mandatos. Ou em quais instâncias se articulariam mandatos e agências. Ou como agências e instâncias deveriam ser empoderadas, responsabilizadas e governadas na busca do que se deseje, do que se decida, fazer. É assim que esforços intergovernamentais, intragovernamentais e multisetoriais, que se acredita responderem à amplitude constitucional da segurança pública no Brasil, vão convertendo-se apenas em intenções sem enraizamentos, em horizontes do “não (dá para) fazer”.

Estas dificuldades podem acabar glosadas, por exaustão ou diante da dificuldade de um arranjo que produza o que se deseja(va), em retóricas que revelam ambições sem metas, metas sem método ou meios. Arrisca-se a que se emancipe a generalidade de promessas de campanha – que tem uma determinada finalidade e forma de expressão – em pseudo-programas de governo. Trata-se de uma aposta de que a anunciação pública e a reiteração destas promessas para dentro da máquina estatal fariam acontecê-las “de algum jeito” . Aceita-se este desenlace, buscando maximizar os ganhos ou minimizar as perdas políticas que esta decisão pode produzir. Acaba-se governando por meio de um calendário de possíveis inaugurações. Através de realizações pontuais e descontínuas como se a expressão das situações finais desejadas ou desejáveis neste, naquele, noutro rumo pudesse ser suficiente em si mesmas – “a ser buscada energicamente”, “com toda prioridade”, “objeto de minha atenção pessoal”, ou o que mais que se possa tentar para apresentar a dificuldade que não se superou como uma realização.

O papel central da polícia acaba não tendo onde, ou como, ou quando, ou mesmo para que ser explicitado. Acaba-se presumindo, permitindo, por exaustão ou por simplicidade de decisão, que as situações finais desejadas que dependem da polícia sejam tomadas como “automáticas”, como expectativa de “favas contadas”. Isto é a renúncia da possibilidade de governança de polícia. E não será a polícia que irá cercear-se, recusando ou deixando de usufruir da autonomização que isto lhe dá. Mesmo a mobilização de recursos políticos para a enunciação de um foco, em que se priorizam determinados resultados específicos, pontuais – reduzir esta ou aquela taxa, ou número absoluto de ocorrência de uma classe de eventos, por exemplo – acaba sendo inócua. Porque não se tem, porque se abriu mão ao tentar conduzir assim o governo da polícia, dos mecanismos que permitiriam governar a busca destes resultados.

Tudo isso são retornos negativos a tentativas de quem governa de produzir governo na Segurança Pública. Podem ser tão mais decepcionantes quanto maior a energia com que se buscou produzi-lo. Quem governa é tentado a escolher poupar recursos políticos e energia, confinando seus esforços a uma enunciação que passe por política pública neste campo. Convivendo com uma autonomia substancial da polícia, refém do que sejam os retornos desta autonomia. Expressando diretrizes de governo da “política de segurança pública” num formato suficientemente ambicioso para auferir alguma legitimidade e, ao mesmo tempo, suficientemente impreciso para que sirva para lidar, ou permitir ao menos a imagem que lida, com o que quer que venha a acontecer durante o seu mandato, sobretudo as de iniciativas policiais emancipadas. Em qualquer combinação destas dinâmicas, o resultado é o mesmo: deixa-se de ter uma política pública para a polícia.

E se não se tem a expressão declaratória explícita de política pública para a polícia, nada se pode edificar. Tem-se alguma forma de governo sobre a polícia, uma forma de governança de polícia no ato deste governar-se. Mas que, na prática, nem sequer consegue dar sentido a que seja nomeada assim no uso brasileiro do idioma. A governança de polícia passa a ser um efeito de liderança ou de perfil de chefia, mais ou menos carismática, mais ou menos missionária, que mobiliza e até seduz polícias e policiais, mas que segue limitada no que pode comandar ou controlar. Tem-se uma governança de polícia desautorizada diante de praticamente todos os termos que a construção acima identifica como indispensáveis, rendida diante da governança policial. Uma governança de polícia sem rumo, cotó, constantemente cega e usualmente impotente. Que se faz, quando se faz, se é capaz de fazer-se, diante de tragédias ou impasses, cuja repercussão nos meios de comunicação possa vir a comprometer a popularidade do governante e a imagem de seu governo. Quando então se encontra restrita a encaminhamentos pontuais, parciais, transientes tão duradouros quanto o jornal do dia, da semana, anterior. Quando então apostam-se inteiramente em suas exemplaridade e espetacularidade. O expurgo de maçãs podres, a enunciação de compromissos com “resultados de impacto” em prazos curtos e imediatos (que sinalizam mais o que se espera da governança policial em termos do exercício de sua discricionariedade no relato destes resultados do que a expectativa de que produzam tais resultados), a criação de tantos veículos de acesso a legitimidades adicionais quantos possam ser oferecidos ao redor e diante da autonomia policial que esta forma de governança não tem como confrontar e, portanto, não tem como governar.

É importante perceber que se trata da realidade de uma autonomia sem medida, que não se confunde, nem concretamente, nem como projeto, com uma autarquia. A polícia é tomada, e se pensa, e atua, e reconhece limites no que pode fazer, impositivos no que deve fazer como um serviço público na maioria esmagadora de seus relacionamentos com os cidadãos. A fragilidade da governança de polícia não admite um juízo maniqueísta da polícia má contra o governo bom. Explica, sim, porque se tem que apreciar os efeitos da autonomia sobre as dificuldades da polícia e de seu governo. Aponta para a apreciação qualificada dos efeitos da autonomia, seja no governo, seja no trabalho policial.

Desta forma, em função do que sejam os contextos locais de um determinado momento, esta autonomia policial admite variedades tão distintivas quanto a diversidade e pluralidade dos Entes Federados. A autonomia pode ser materializada na dificuldade de conseguir dar rumo ao uso dos recursos, dos resultados policiais, para um determinado fim político. Pode ser obstáculo para um determinado fim policial. Mais amplamente, na dificuldade da produção da componente de Segurança Pública ao alcance da polícia, cuja centralidade empana tudo o mais. Sem controle, para ser-se preciso, sem tutela, no sentido Weberiano, policiais e agências policiais simplesmente se resolvem entre si. Aderem a uma dada dinâmica estabelecida, auto-regulada, tanto lateral quanto vertical, do que é o fazer policial, uma inércia, ou seguem cada um seu próprio caminho, uma dispersão.

A autonomia pode ser tão ampla que seus limites são os da governança democrática ela mesma: a materialidade da posição e do poder do governante, as legalidade e legitimidade da continuidade do pacto mais amplo. Numa e noutra situação, oculta-se, nega-se o que poderia ser um “golpe branco”, ao mesmo tempo em que se admite que ele possa ocorrer de forma implícita, caso a caso, com diferentes conteúdos e temporalidades. O cálculo político dos atores envolvidos sobre o que podem ganhar, exercer, é o que parece explicar como governante e polícia se relacionam. Que faz com que se expresse esta liberdade de ação num fluxo de aparente continuidade e hierarquia: a partir do que sejam as diretrizes de governo; glosando o hiato, a ausência de uma política para polícia; e aterrisando no que sejam, quando são, as “políticas de policiamento” do comando da polícia.

As políticas de policiamento correspondem a uma governança policial cuja autonomia está em constante processo de (re)definição e usufruto. Por isso se apresentam, quando se apresentam, como afirmação de um profissionalismo abstrato e de contornos técnicos efusivamente “apolíticos”, usualmente compreendidos como segredos profissionais. Racionaliza-se que tudo deve ser secreto para que a polícia siga sendo capaz. Isto não sobreviveria a um primeiro relance do que são os termos concretos do exercício do mandato policial. E como resultado, se omitem o que são as alternativas de modos ou meios, se oculta que existe juízo tanto político quanto profissional na prioridade e alocação de recursos. Reifica-se a rotina, repetindo assertivamente prerrogativas policiais implícitas quanto à auto-definição de suas estrutura e capacitações em nome de uma (pseudo)técnica “pura”, explícitas quanto a sua autonomia de decisão em nome de um (pseudo)profissionalismo “apolítico”.Participa-se do drama do governar, ofertando, anunciando e disponibilizando presteza na obediência formal sempre que ela seja demandada pontualmente, desde que isso não comprometa a autonomia em tudo o mais. Semeiam-se abstrações capazes de justificar o resultado da discricionariedade sem apreciação de resultados ou conseqüências, impondo juízos apriorísticos como o “ no estrito cumprimento do dever”, seja qual seja o conteúdo deste cumprimento.

Ainda assim, políticas de policiamento oferecem uma oportunidade de apontar a governança policial no rumo da democracia, mesmo diante da realidade de uma governança de polícia cotó. Porque as políticas de policiamento poderiam servir, no rumo de construção da governança de polícia, de uma política para a policia, em prol da “democratização das práticas policiais”. Podem fazer transparentes as alocações e prioridades no uso de recursos policiais, os termos formais de como se pratica a workmanship e o que sejam as práticas estabelecidas de seletividade no enforcement no exercício de seu mandato. Se não se tem formas de governo da polícia pelo governo, pode-se aumentar a sua responsabilização perante os cidadãos, perante a polity, como caminho para este governo. Esta alternativa não teve ainda sua oportunidade. Pode-se mesmo intimar que os que se dispuseram a tentá-lo foram sancionados por sua ambição, embora talvez não pelo que tentavam fazer, mas pelo que deixaram de fazer ao acumular os recursos com que fazê-lo.

O que se tem, cotidianamente, é uma tessitura de relacionamentos da polícia com a polity. Esta vai desde os interesses das agências diante do governo aos que se fazem localmente, diferenciadamente, com seus distintos níveis hierárquicos, diante de grupos de interesses. A medida de autonomia que se pode ter no Brasil revela que este relacionamento da polícia com a polity, com a sociedade, com os cidadãos individuais admite aspectos em que ela se põe, ou é tomada, de forma distinta, e com interesses outros que os de um serviço público.

Agentes ou grupos policiais podem escolher por barganhar, por mercantilizar, por se apropriar da autorização e dos recursos policiais para seus fins próprios e privados. Os interesses destes, no jogo da governança policial, acaba sendo parte da agenda das agências policiais. Configura-se uma face da governança policial: o usufruto privatista da autonomia que vale a pena abusar. Criam-se vínculos próprios com as diversas instâncias da sociedade civil, não de policiais enquanto cidadãos, mas da polícia, indivíduos ou grupos policiais, com partidos e políticos, órgãos de mídia e jornalistas, organizações não governamentais e militantes, universidades e pesquisadores ou docentes para seus próprios fins privados tanto quanto para o que sejam as metas institucionais da polícia, no lusco-fusco da realidade. “Políticas para a polícia”, para fletir o idioma, em diversas instâncias da vida social: política de policiais e da polícia por policiais e pela polícia; política de outros atores para acomodarem seus interesses com policiais, ou com a polícia, enquanto policiais, enquanto polícia; política quase como se policiais e polícia fossem parte de, e, um partido político, e não agentes e agência subordinados à política pública.

Com isso se tem um enquadramento geral para a construção de uma tradutibilidade da questão da governança de polícia para a situação brasileira. Este enquadramento de partida – porque este final do texto é ambicioso de ser um início – seria rumo de lidar com tudo o que sejam a diversidade de contextos da federação, da pluralidade, dos diversos recortes e esferas de governo. O que sejam as metas e métodos da busca dos elementos constitutivos de formas de governança de polícia concretas, situadas, é obra contingente de quem se disponha a empreendê-lo. Que considere, para além do que qualquer texto pode fazer, a sua arte da política, a governança do ter-se governança, do que sejam as situação, capacidades, possibilidades, necessidades, enfim, as realidades sociais, políticas, de governo, de polícia. Das instâncias em que se situe cada proposta, cada esforço, de como governar a polícia e fazê-la aderente, instrumento, da democracia no Brasil.

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(*) A versão resumida deste artigo foi publicada na Revista Brasileira de Segurança Pública, Ano 3 Edição 5, Ago/Set 2009, PP: 14-37, e sua versão original, sem os cortes por “questões editoriais e de espaço”, encontra-se disponibilizado no site do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. http://www.forumseguranca.org.br/institucional/revista/

[1] Este texto foi produzido com apoio da Fundação Ford junto ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

[2] Professor da Coppe/UFRJ, Coordenador do Grupo de Estudos Estratégicos. Este artigo foi desenvolvido com apoio de uma Bolsa de Produtividade de Pesquisa do CNPq.

[3] Professora do Mestrado em Direito/UCAM, membro do Grupo de Estudos Estratégicos.

[4] Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

[5] Parece oportuno afirmar explicitamente que existem identidade, especificidade e conteúdo nos Estudos Policiais que não se confundem, nem se subordinam, nem se submetem às contribuições de uma ou outra disciplina, de uma ou outra profissão. Há sim um requisito de leitura e familiaridade sem o qual não se está em diálogo com o acervo do conhecimento científico para tratar da Segurança Pública, da polícia, e tudo o que isso implica. Esta não é uma questão menor, apenas se apresenta como ancilar ao que o texto quer dizer. Note-se que isso não se traduz numa idéia pristina do que seja uma disciplina científica, pairando aproblemática e pacífica acima da realidade. Apenas que se tematizam os problemas de reprise (Manning 2001, Feltes 2003) e esquecimento (Rock 2005), a adoção de recortes que contornam para não ter que lidar com soluções (Jones 2003) para expô-los a mecanismos explícitos que buscam expor seus defeitos (Walker 2004) e limites (Sharp 2005). Há resultados críticos neste processo para a correção de erros conceituais (Sartori 1970) ou aplicados (Manning 2002).

[6] The paramouncy of the law is not the highest public good. (…) [W]hilst a judge cannot take this view, the constable must. The judge derives his mandate from the law, the constable from the polity. Law enforcement [cannot be] absolute.

[7] Accountability is often used as a weasel word. What is really at issue is the degree of control various political institutions are to have over the police. Accountability in the sense of after-the-fact explanation means acceptance of a sharply limited degree of control, a point recognized by its more candid proponents (…).

[8] Parece suficiente compartilhar em nota os termos pelos quais demos um enquadramento mais conceitual à questão (Muniz & Proença Jr 2007a: 36-37). Tudo radica em que a questão da accountability só se põe diante da existência de um mandato, que corresponde à busca de um determinado fim pela delegação de poderes, identificando quem o outorga e quem o recebe. A finalidade de um mandato determina os objetivos a serem atingidos, delimitando efeitos e resultados desejados. A delegação de poderes corresponde à concessão de autorizações que circunscrevem decisões, meios e ações compatíveis com a busca destes objetivos. Quem outorga um mandato responde pelo conteúdo, contexto e controle dos poderes que delega. Quem recebe um mandato responde pelo conteúdo, contexto e controle do exercício dos poderes recebidos. Quando se recebe um mandato é-se accountable por ele, responsabilizável por todas as escolhas, resultados e conseqüências do exercício dos poderes delegados diante de quem os outorgou. A materialidade do ser accountable corresponde à accountability, à responsabilização, construída a partir da identificação de responsabilidades, isto é, pela feitura de um determinado relato de como e porque se fizeram determinadas escolhas, apreciando seus resultados e conseqüências, um account. Assim, a accountability serve primeiramente ao aperfeiçoamento do mandato concedido, permitindo (re)afirmar ou rever seus objetivos e poderes. Ser accountable, fazer accounts, e produzir accountability correspondem, em sua totalidade, à contrapartida necessária do recebimento de poderes.

[9] O que é duplamente chocante, diante do paralelo evidente do que esta distribuição produz em termos internacionais (cf. Waltz 1979), e aponta como resultado provável em termos da aspiração de uma governança global(izada) (cf. Waltz 1999).