sexta-feira, 18 de julho de 2008

Administração Estratégica da Ordem Pública[1]

Jacqueline Muniz

Domício Proença Jr

Maio de 1996

Restaurar a ordem pública nas grandes cidades é um desafio planetário. Todas as metrópoles registram um aumento preocupante dos índices clássicos de criminalidade e de desordem, bem como um incremento inédito de violência letal. Qualquer resposta a esta questão exige uma compreensão abrangente das dinâmicas concretas que se concentram por trás deste problema. Isto implica um enfoque que reconheça a especificidade local da ordem pública sem perder de vista a sua componente global.

É fundamental expandir horizontes: buscar reenquadrar o desafio da ordem nas sociedades democráticas, dar conta das necessidades de preservação da lei e da ordem de forma eficaz e eficiente, absorver o verdadeiro impacto do conjunto de fenômenos que se associa ao termo “globalização” - a digitalização da economia, a planetarização da logística, o desenraizamento das culturas nacionais, a instantaneidade dos meios de comunicação, a facilidade dos movimentos transfronteiras de pessoas e bens. Uma contraparte desse nosso bravo mundo novo é a internacionalização de certas modalidades criminosas e, mesmo, a maturidade de uma “economia das trevas” que trafica indiferentemente drogas, armas, jóias, pessoas, produtos industriais, minérios e informação. Neste novo cenário, é evidente que se deve redefinir as funções policiais dos Estados, articulando as expressões locais, regionais, nacionais e internacionais num arranjo capaz. Há que se ultrapassar, portanto, os preconceitos e casuísmos históricos que tradicionalmente têm alimentado resistências corporativas e institucionais.

Experiências recentes demonstram que respostas tradicionais de endurecimento ou ampliação dos meios não produzem os resultados esperados. Iniciativas de incremento de recursos e propostas de “políticas de segurança” alheias à literatura internacional e à realidade da preservação da ordem pública local têm-se revelado ineficazes e onerosas. Por outro lado, é fato notório que o endurecimento das penas ou a ação catártica de uma “declaração de guerra” aos criminosos também não conduz a resultados aceitáveis, chegando a por em risco a credibilidade da Justiça e das forças policiais perante a população.

Trabalhar em prol da ordem pública não é uma tarefa fácil. No caso brasileiro, há muito o que fazer. É preciso, entre outras iniciativas, considerar os constrangimentos e as demandas sócio-culturais que conformam as condições de possibilidade para a preservação da ordem pública; buscar formas conseqüentes de cooperação entre as comunidades e as agências envolvidas na produção de ordem pública além das forças policiais e; desenvolver ferramentas de avaliação, planejamento, controle e autoaperfeiçoamento das agências cuja influência sobre a ordem pública é direta e executiva - as policiais e, em alguns papéis específicos, as forças armadas.

A adesão responsável a esta perspectiva exige o enfrentamento de dois distintos desafios: o primeiro é o da mudança de mentalidade. Persistem entendimentos e práticas orientados por uma visão de segurança obsoleta, que privilegia a razão de Estado e considera a ordem pública um “assunto de responsabilidade exclusiva da polícia”. Esta mentalidade impede a visão democrática de uma ordem pública - prestação de um serviço às comunidades - e tem contaminado não apenas os executivos e administradores responsáveis, mas também os atores da sociedade civil organizada. Obstaculariza, ainda, uma percepção clara da natureza dos problemas e das dinâmicas relacionadas à ordem pública contemporânea. É imprescindível desarmar e atualizar mentalidades para que se possa viabilizar uma ordem pública adequada às necessidades atuais e obediente aos limites de uma sociedade democrática e plural. O segundo é o de prover ferramentas e insumos. Inexistem critérios de mensuração de resultados, instrumentos de avaliação, sistemas de monitoramento. Não há estruturas para a incorporação das demandas de ordem de uma sociedade em mudança contínua. Ignoram-se as diferentes expectativas das comunidades e , por conseguinte, a especificidade das demandas locais e seus efeitos na ordem pública. As distintas atividades profissionais, a multiplicidade de estilos de vida metropolitanos, a proliferação de práticas informais e os enraizamentos identitários locais e difusos, questionam a lógica e mesmo a validade de intervenções orientadas pelos interesses de um inexistente “cidadão médio, ordeiro e cordial”. Nesse sentido, é impossível querer trabalhar ou mesmo entender a ordem pública sem a consideração generosa das dinâmicas urbanas contemporâneas em cada grande cidade. É urgente a necessidade de public relations modernas e de ferramentas de avaliação adequadas a nossa realidade. A gestão democrática da ordem pública vai além do simples provimento de serviços policiais. Por um lado, requer o consentimento e a participação dos cidadãos. Por outro, necessita prover os insumos para o entendimento e para a ação. Um e outro dependem da realização sistemática de pesquisas capazes de formular diagnósticos e orientar alternativas.

Estes desafios têm sido sistematicamente subestimados. De fato, a despeito da disposição participativa da população, da capacitação técnico-operacional das nossas agências policiais e do acervo de estudos e experiências nacionais e internacionais, não se percebe nem uma administração moderna nem uma ação estratégica na ordem pública. Tem-se seguido de prioridade circunstancial em prioridade circunstancial, de forma unicamente reativa. Tal trajetória negligencia o relevante papel que os contribuintes, as agências públicas e civis têm na produção e na preservação da ordem.

Os índices de conflitos, crimes e desordem pública apontam para variáveis extra-policiais como o ambiente comunitário, a manutenção dos equipamentos coletivos, a prestação de serviços de utilidade pública, etc. A ausência de programas de cooperação entre as policias e demais agências públicas - sobretudo a coordenação entre elas e as necessidades de ordem - tem-se traduzido em desperdício de esforços e recursos, em isolamentos e concorrências institucionais. É inescapável a conclusão que os arranjos atuais de preservação da ordem pública e de redução do ilícito são ineficientes.

É oportuno caminhar rumo à ambição do que denominamos de administração estratégica da ordem pública. Por um lado, cabe dar conta do problema da ordem pública num mundo em que os recursos do Estado são declinantes, as demandas da sociedade são crescentes e em que se exige uma administração moderna capaz de maximizar benefícios. Por outro, cabe reconhecer que a natureza essencial da ação policial é o uso comedido da força ou de sua ameaça, num cenário paradoxal de ampliação dos direitos e garantias individuais e de recrudescimento da violência armada criminal, o que exige ações estrategicamente guiadas. Portanto, é adequado buscar-se uma administração estratégica como perspectiva estruturante para a gestão da ordem pública. Esta iniciativa corresponde à linha de trabalho que vimos desenvolvendo nos últimos dois anos e que entende a ordem pública como uma realidade mais ampla do que a contenção da desordem e a investigação, repressão e dissuasão do ilícito.

Afirmamos que é a orquestração das comunidades com as polícias e com as agências públicas que produz ordem. Esse enfoque identifica a necessidade de modernização conceitual e da atualização das mentalidade, métodos e ferramentas para a preservação da ordem pública. Enfatiza o papel da universidade como concentradora do acervo de experiências passadas e capaz de contribuir para o entendimento renovado das dinâmicas da vida urbana contemporânea, assim como das diversas demandas da sociedade por lei e ordem. Além disso, prioriza o diálogo aberto e franco entre a sociedade e as suas polícias, reconhecendo o valor da sua experiência acumulada, base essencial para quaisquer reformas responsáveis.


[1] Este artigo foi publicado na Tiradentes, Revista do Clube de Oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, ago/set/out - 1996.

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