Indignação, dor e solidariedade são palavras insuficientes para descrever como me sinto diante de mais uma tragédia que podia ter sido evitada porque não é difícil evitá-la. Mais um garoto João.
Para tanto, não seria necessário grandes mudanças ou as chamadas grandes reformas, inclusive aquelas propostas de mudanças constitucionais. Para evitar incompetências, incapacidades e erros crônicos como estes, os recursos encontram-se em nossas mãos, sobretudo nas mãos do executivo. Séculos de história das organizações de força, seus usos políticos e seus efeitos perversos nas ruas e para a governabilidade democrática, nos educaram a distinguir os problemas e seus níveis de intervenção.
Neste caso, trata-se de decisão política, de definição de diretrizes, para o exercício do centro da delegação policial, o uso de força. Isto, como todos sabemos, traduz-se em atos administrativos e portarias ao alcance de governadores e secretários, a apreciação e autorização pública dos procedimentos policiais, chamados no jargão de táticas, de treinamento adequado às táticas autorizadas, consentidas e validadas pela coletividade policiada (muito menos que os gastos com cursinhos atuais para as polícias) e, não menos importante, uma gramática de meios adequada as realidades do trabalho policial. Enfim, uma logística de fato policial, quase sempre relegada aos lobistas.
O que temos? Têm-se “meios” que contradizem os modos de ação policiais, os quais, por sua vez, confrontam-se com as missões policiais, e estas, com a própria política pública (se existe alguma). Esta receita de desastres no cotidiano é velha conhecida da experiência e da reflexão. Produzem estes resultados perversos que se tornam previsíveis, regulares, etc. Tem-se a história repetida como farsa, farsa trágica, onde o esforço substitui a competência, o voluntarismo substitui a qualidade decisória, o improviso toma o lugar da capacidade.
Neste mundo não se presta contas, não se responsabiliza por uma política, por uma diretriz, por um procedimento. Apresenta-se os culpados da vez, aqueles que estavam com as armas na mão, mas não a arvore de responsabilização (accountability) que chega aos governantes e dirigentes.
Táticas policiais que se emancipam ou substituem a política, que sabotam ou são sabotadas por armamentos, cujas escolhas e alocação obedecem a casuísmos, vícios de origem ou variáveis extra-policiais que revelam o improviso do lugar de polícia, a ausência de uma política de uso de força. Entre modismos e experimentalismos de ocasião, pouco avançamos para blindar os mandatos de policiamento público e estatal de sua mercadização, de seu uso político-partidário ou para projetos particulares de poder.
Em outras palavras, pouco avançamos na regulamentação e institucionalização do centro do mandato policial: o uso da força. Assistimos à clientelização diversificada dos recursos públicos policiais. Aqui a autorização do poder de polícia segue como um cheque em branco, uma procuração em aberto preenchidas com gerencialismos oportunistas, circos operacionais e covardias morais de quem prefere os benefícios das posturas oficialistas.
Há mais de uma década temos insistido e lutado pela profissionalização do uso da força nas polícias, por entender que é exatamente aí que está a razão de ser e a expertise policial, o que a polícia tem de distintivo e que traduz o seu poder de forma concreta e instrumental em nossas vidas. Para tornar letra do passado fatos patéticos e tão trágicos como o que vitimou este ultimo João.
Todas as vezes que passamos pelo governo, fizemos coisas em termos de política, tática, estratégia e logística policiais para o emprego suficiente, regular, previsível, transparente, oportuno e apropriado da força. Mas estas iniciativas mostraram-se pouco sedutoras à grandiloqüência dos messias ou iluminados da segurança pública, ignorantes do quanto a instrumentalidade dos direitos humanos na polícia corresponde ao uso da força. Se não se controla isso, não se tem como vislumbrar um controle sobre a violência policial e a corrupção, nascida dos ganhos da venda deste tipo de poder.
No espaço que tenho como professora pelo Brasil afora sigo ensinando estas coisas para as polícias. Mas parece-me, agora, tudo muito pouco....muito pouco.....
Um comentário:
É ótimo ver um comentário como esse que vai mais a fundo em um fato que realmente entristeceu a todos nós, se temos uma Polícia despreparada de quem é a culpa? Deles que não se prepararam? De quem tinha a obrigação de prepara-los? Como ter Policiais satisfeitos se eles tem exemplos negativos diários de seus próprios superiores? Se os ditos "Oficiais" que teriam a obrigação de representa-los, de treina-los, só pensam em "vender" o policiamento em seu próprio beneficio e de seus pares...
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