quinta-feira, 17 de julho de 2008

E agora, depois do Pan? (*)

Jacqueline Muniz

Janeiro de 2008

No ano do PAN os governos estadual e municipal se ocuparam, por razões imperativas, com ações inevitavelmente pontuais. Tinham que atender problemas e prioridades que não se adiam. Agora, depois do PAN, tem-se um ambiente propício para consolidar rumos, construindo a política pública de segurança que incorpore e integre, de verdade, as ações policiais à gestão da ordem urbana, para que possamos nos beneficiar dos resultados positivos produzidos no presente e superar as dificuldades ou insucessos acumulados desde o passado.

Pode-se entender a atuação dos governos anteriores no Rio de Janeiro quando se enquadra a questão da seguinte forma. Uns tinham políticas de segurança pública sem políticas de policiamento que pudessem enraizar suas prioridades políticas para além da apresentação de “programas” e “planos”. Outros tiveram políticas de policiamento, sem políticas de segurança que lhes emprestassem respaldo, rumo e continuidade. Tiveram ainda aqueles que sem políticas de segurança e de policiamento, renderam-se à passividade reativa do improviso e da sorte, nem sempre generosos, buscando obter algum milagre por meio ações policiais voluntaristas de varejo, fragmentárias e descontinuas.

Num caso e noutro, estes governos privaram-se de formular e pactuar ações sistêmicas e integradas, perdendo de vista iniciativas multisetoriais ou intergovernamentais que, em seu conjunto, pudessem estender no tempo os efeitos que as polícias são, de fato, capazes de produzir. A despeito das boas iniciativas e intenções, sem embargo de resultados pontuais, tanto umas quanto outras ficaram a meio caminho, porque confundiram segurança pública com polícia, ou se paralisavam diante das falsas oposições entre ação policial e ação social, entre polícia e direitos humanos.

O campo da segurança pública ultrapassa as competências, qualidade, intensidade e exclusividade das ações policiais. Diz respeito à administração de conflitos, ou melhor, à gestão pública de riscos e perigos de vitimização, aos quais indivíduos e grupos podem estar expostos em seus espaços e nas suas formas de convivência. Traduz-se na garantia do ir-e-vir, na preservação democrática da ordem local, do lugar onde se vive. Inclui variáveis extra-policiais que se reportam à qualidade de vida tais como a oferta de iluminação e transporte públicos, a coleta regular de lixo, a regularização das formas de ocupação e uso do solo urbano, a manutenção de equipamentos coletivos, a recuperação de vias e espaços coletivos, a administração do trânsito, etc.

A má gestão destes serviços compromete de maneira substantiva a capacidade de pronta resposta das polícias. Ruas mal iluminadas reduzem a visibilidade e ostensividade policiais; áreas sem endereçamento ou com precária urbanização afetam o tempo de resposta da polícia às chamadas emergenciais, consomem mais policiais por km2 e aumentam os riscos das operações policiais; cidadãos que moram em ocupações irregulares e/ou só tem acesso clandestino aos bens urbanos sentem-se também clandestinos aos olhos do Estado e têm medo de ajudar a polícia com informações ou mesmo apresentando-se como testemunhas num inquérito.

Produzir segurança pública é bem mais do que as polícias sozinhas podem fazer. Exige e requer, de fato depende, da cooperação dos cidadãos e das outras agências públicas e civis que prestam serviços essenciais à população. Com a sua mobilização, articulação e ação, alteram-se cenários, contextos e atitudes de risco induzindo, orientando e qualificando o emprego dos recursos policiais. Afinal, o trabalho policial é eficaz apenas na redução de oportunidades de crimes, violências, desordens e incivilidades. Não tem como dar conta das causalidades que motivam estas práticas. Esta é esfera de ação de outros atores e órgãos que inaugura-se na auto-regulação social e se estende até gestão das posturas municipais num dado bairro.

Se queremos sustentar os efeitos preventivos, dissuasórios e repressivos que as ações policiais podem produzir, necessitamos de ações de segurança. As primeiras são, por natureza, provisórias e conjunturais porque incapazes de suprimir vontades, intenções e interesses. O estado de sua arte é produzir soluções situacionais no aqui e agora da nossa insegurança, na itinerância do nossos medos, na emergência de nossos riscos, no imediato dos fatos, enfim, na superfície dos problemas. As segundas são mais permanentes e estruturais. Podem produzir resultados que ultrapassam e ampliam o tempo presente das soluções policiais, uma vez que interferem nas causas, fatores e motivações que geram o medo, o crime, a violência e a desordem. Somente a articulação entre elas pode garantir efeitos acumulados e satisfatórios no curto, médio e longo prazos. Uma sem a outra, leva à sobreposição, exaustão e escassez de recursos policiais. Política de policiamento sem política de segurança faz com que a polícia sozinha tenha que dar conta de tudo, até daquilo que foge ao seu preparo e capacidade de intervenção. O resultado é muitos policiais e pouco policiamento público. É o “enxuga gelo” expresso na profusão de ações ilhadas de policiamento e na dispersão de iniciativas solitárias de segurança. Colhem-se padrões declinantes de eficácia e efetividade das ações policiais e sociais. Com muito mais recursos, tende a se fazer menos e cada vez com menor qualidade. Elevam-se os custos e riscos, reduzem-se os resultados. Os sucessos quando obtidos tornam-se palavras escritas na areia e os aplausos não duram à próxima pesquisa de opinião ou aos humores variáveis e imediatistas dos eleitores, não duram ao próximo episódio. Em relação ao atual governo, o seu maior desafio é político. É constituir a governabilidade da segurança pública, das polícias. É construir a governança dos recursos policiais e sociais da segurança pública aprendendo com a herança dos governos e experiências anteriores. E isto é muito mais que aprimorar a gestão ou adotar técnicas de gerência. É fazer o seu legado, deixando uma marca original e conseqüente: não cair na armadilha da opção desintegradora de ter ou políticas de policiamento confinadas a responder às circunstâncias, ou políticas de segurança abstratas que carecem de orçamento, órgãos e ferramentas de execução. Seu desafio é construir a governabilidade da segurança, mobilizando e articulando recursos de governo e da sociedade, de forma sensata, transparente, contínua e processual. É fazer (e assumir) a Política. O que empresta consistência, regularidade e estabilidade aos resultados policiais é a política de segurança, e o que dá fôlego à política de segurança é a ação policial. Para tanto, urge construir e articular iniciativas ao alcance de nossas mãos, com as polícias que temos e com agentes sociais existentes. Iniciativas que pavimentem rumos e possam ir além dos atalhos das operações policiais ou de ambições humanitárias generalistas e difusas. Iniciativas sob medida para as realidades, no plural, do Rio de Janeiro.

(*) Artigo publicado em 31 de janeiro de 2008. www.forumseguranca.org.br

Jacqueline Muniz é antropóloga, professora do Mestrado em Direito da UCAM, Diretora Científica do Instituto Brasileiro de Combate ao Crime, e membro da Rede Latino-americana de Policiais e Sociedade Civil.

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