Recomendações para a Reforma Policial na América Latina[1]
Por
Março de 2002
3. Negociação da agenda de reformas
4. Mídia e política de comunicação social
5. Dotação de recursos financeiros
I - Intervenções legais ou normativas.
II - Intervenções administrativas.
Introdução
Com vias a contribuir para o debate acerca da condução de reformas nas organizações policiais da América Latina, os comentários presentes neste texto resultam não só da apreciação do documento "Reforma Policial en América Latina", do relator Ignácio Cano, como também dos estudos sobre sistemas policiais que têm sido desenvolvidos pela referida autora.
Procurando atender à demanda por contribuições técnicas de natureza pragmática que possam, de fato, subsidiar intervenções concretas nos diversos sistemas de segurança pública latinos e, em particular, nas distintas organizações policiais existentes, optamos por um formato executivo de apresentação das sugestões oferecidas. Para tanto, as considerações contidas neste texto foram organizadas através de temas que se subdividem em tópicos e medidas a eles associadas. Sempre que oportuno, os tópicos tratados serão acompanhados de observações adicionais que possam clarificar sua pertinência e situar, por exemplo, as esferas de intervenção na arquitetura estatal. Cabe salientar que a seleção dos temas por nós efetuada procura complementar e, em alguns aspectos, detalhar algumas das temáticas de reforma já descritas no documento base.
Recomendações de intervenção
Contrariando o nosso senso comum, quando se leva em conta a história dos sistemas policiais constata-se que as polícias fazem parte do rol das instituições que mais se transformaram ao longo de suas existências. Intimamente ligadas à consolidação dos estados modernos, as polícias acompanharam bem de perto as inúmeras mudanças neles transcorridas. Tal evidência não deveria causar surpresa uma vez que a função policial e os distintos conteúdos a ela atribuídos, têm-se caracterizado como uma dimensão central da ação política no interior das sociedades. A natureza eminentemente política das organizações policiais, está na razão de ser de sua existência. E isto de tal forma que as mudanças políticas na vida social e na organização do estado, afetam de forma sensível as agências policiais, suas atribuições, estruturas, recursos e ações.
As polícias foram e têm sido, em virtude mesmo das suas múltiplas e, por vezes, controvertidas utilizações, o instrumento de controle social historicamente privilegiado para o enraizamento do princípio da autoridade que se deseja enraizada no cotidiano das pessoas. Uma vez aceita esta evidência histórica, torna-se fácil reconhecer que as organizações policiais, com maior ou menor grau de resistência institucional, têm passado por sucessivas "reformas", principalmente nestes dois últimos séculos. Atendendo aos embates entre os distintos núcleos internos de poder e de suas interações, conflituosas ou não, com as forças sociais, as inúmeras reformas ocorridas nas polícias ocidentais assumiram perfis bastantes diferenciados. Compõem o acervo de experiências históricas disponíveis as intervenções estruturais ou conjunturais, sistêmicas ou localizadas, mais visíveis ou menos visíveis, conservadoras ou progressistas, contínuas ou descontínuas, lentas ou rápidas, reversíveis ou irreversíveis, eficientes ou desastrosas, impostas ou negociadas com os policiais e cidadãos. Muitas destas formas de intervenção, guardando uma fina sintonia com as especificidades das histórias políticas de cada país, ocorreram de maneira simultânea ou escalonada no tempo. Mesmo abrindo mão de uma análise rigorosa e detalhada da história das reformas policiais em uma dada sociedade ou de um certo conjunto delas, uma simples leitura panorâmica oferece algumas lições modestas, porém úteis aos reformadores:
1. Sobreviver ao imediato - As reformas policiais se apresentam como um processo continuado que ultrapassa o curto prazo, mas que não perde de vista as necessidades do presente. O êxito de sua condução depende, em boa medida, da convicção e da persistência política dos atores envolvidos com as reformas, assim como da capacidade dos reformadores de mobilizar esforços internos e externos para garantir, mesmo em períodos de crise, a continuidade das iniciativas implantadas. Isto se traduz na serenidade e habilidade para lidar com as temporalidades distintas das cobranças sociais, dos meios de comunicação, dos políticos, dos policiais, etc. As evidências históricas demonstram que os programas de reformas conseguem superar as pressões advindas do "imediatismo" das cobranças, quando conseguem "consertar mantendo o carro em movimento", isto é, quando conseguem, na medida do possível, conciliar as intervenções de grande envergadura com medidas que geram efeitos e expectativas positivas no presente.
2. Chefias e lideranças - As autoridades políticas (federais, estaduais ou municipais) e os executivos de polícia que estão em posição de comando nas organizações policiais, desempenham um papel central e direto na condução das reformas. A sua legitimidade política, a sua credibilidade interna e externa, e o tipo de liderança que exercem, influenciam de forma decisiva os rumos ou os descaminhos das reformas pretendidas. Um bom plano de reformas, necessita de ótimos líderes. Um processo de mudanças acéfalo e sem lideranças definidas em todos os seus níveis de execução, ou o engajamento apenas formal dos tomadores decisão, tendem a minar os esforços de condução da reforma, porque geram, por exemplo, uma descrença quanto a firmeza de propósito ou desconfianças quanto ao real interesse dos líderes em efetivamente promover a mudança.
3. Negociação da agenda de reformas - A negociação política de uma agenda mínima, consensual e realista de intervenções factíveis de curto, médio e longo prazos, mostra-se fundamental para inaugurar o processo de reforma, e possibilitar o seu desdobramento. As experiências fracassadas e bem sucedidas ensinam que, ao longo do processo de reforma, as rodadas de negociação e articulação política com atores chaves, ainda que possam consumir mais tempo, são indispensáveis para converter gradativamente resistências em compromissos. O fato do programa de reformas está sedimentado em princípios democráticos e humanitários, não é garantia de sua implantação e, muito menos, de seu êxito. Por conta disso, não se deve negligenciar as pressões políticas exercidas por setores policiais e segmentos da sociedade, em muitos casos divergentes entre si. Do mesmo modo, não se deve desconsiderar os graus diferenciados de organização e mobilização das forças sociais.
4. Mídia e política de comunicação social - Nas sociedades complexas e de larga escala, os meios de comunicação tornam-se instrumentos e parceiros indispensáveis para a condução das reformas policiais. Afinal, não basta tentar mudar, é preciso comunicar que está mudando, informar o que está sendo mudado, esclarecer os passos da mudança, etc., para se obter a necessária legitimidade da população e dos formadores de opinião, o seu feedback e, principalmente, a sua tolerância para com os possíveis transtornos que as mudanças provocam. Vê que as estratégias de comunicação tornam-se fundamentais para reverter as expectativas sociais quanto a possibilidade de resultados milagrosos de curto prazo. Neste sentido, a implantação de uma política de comunicação social transparente e comprometida com a divulgação de uma agenda real e propositiva de intervenções, é parte indissociável de um programa de reformas. Referimo-nos a uma política de comunicação social que não se torne refém do comportamento dos números da violência. Uma política que se empenha em esclarecer os cidadãos e suas representações, e que não se deixa confundir com publicidade vazia, enganosa e com fins eleitorais. Trata-se, portanto, de um recurso estratégico fundamental para sensibilizar não apenas a sociedade, mais também o publico interno das polícias. Afinal, a desinformação e a incompreensão são fontes alimentadoras do medo e da insegurança e, por isso mesmo, costumam ser péssimas conselheiras. E não menos importante, é fato que as organizações mudam não apenas de dentro para fora, mas, sobretudo, de fora para dentro. Por fim, cabe salientar que uma política de comunicação social não se confunde com as tarefas tradicionais de relações públicas ou comunitárias já existentes nas polícias, ainda que as incluam. Por conta disso, ela deve ser conduzida de forma profissional, pró-ativa e não voluntarista.
5. Dotação de recursos financeiros - A definição dos recursos financeiros necessários a cada etapa da intervenção, assim como a identificação das fontes de captação e as formas concretas de desembolso e prestação de contas, são fundamentais para o bom andamento dos programas e iniciativas contemplados pelo projeto de reforma. A redução de entraves burocráticos para a irrigação financeira dos órgãos envolvidos e projetos previstos, bem como a garantia dos recursos para além da euforia inicial da inauguração das iniciativas, são indispensáveis para que os processos de intervenção iniciados não fiquem a meio do caminho ou se tornem apenas dependentes do trabalho voluntário e da dedicação motivada dos atores e agências envolvidas. Grandes e pequenas intervenções conheceram rapidamente a sua interrupção ou o seu fracasso, por conta, fundamentalmente, da falta de recursos financeiros ou da irregularidade de sua aplicação. Ainda que a cooperação da sociedade civil e da comunidade de negócios seja oportuna para a redução dos custos da mudança, os recursos públicos continuam sendo indispensáveis, pois a condução executiva da reforma em órgãos públicos é sempre realizada pelo Estado e seus agentes. E, no limite, reformas custam investimentos e necessitam dispor de algum grau de autonomia financeira.
6. Grupos de gerência - A condução das mudanças nas organizações policiais exige dos envolvidos um engajamento integral, presteza na tomada de decisão e cumprimento do plano de trabalho previsto no programa de reformas. Considerando o grau de inércia existente nas burocracias de grande porte, como é o caso das polícias, e os freqüentes problemas de gestão resultantes da atribuição difusa de responsabilidades e da sobreposição de tarefas, é recomendável constituir um grupo de trabalho leve e ágil como, por exemplo, uma coordenação voltada exclusivamente para a implantação do programa de reformas. Composta por pequenos núcleos gerenciais, diretamente subordinada à chefia de polícia e, por conseguinte, paralela à estrutura organizacional, esta coordenação deve ser montada a partir de um recrutamento transversal que selecione profissionais talentosos e motivados em todos os níveis hierárquicos da organização. Além da inclusão de policiais mais experientes, leais à chefia de polícia e comprometidos com as reformas, tem-se mostrado também frutífero incluir técnicos civis e jovens policiais qualificados que devem permanecer por muito tempo dentro da organização.
7. Monitoramento e avaliação - Um dos aspectos que tem contribuído para a instabilidade dos programas de reforma policial é a ausência de expedientes regulares de monitoramento e avaliação que, no decorrer do processo, possam, por um lado, indicar correções de rota, certificar e validar as ações empreendidas, e , por outro, emprestar visibilidade às intervenções realizadas, fornecendo subsídios para a prestação de contas do que, de fato, tem sido feito em termos de metas, objetivos e custos. Para garantir a confiabilidade e a transparência das atividades de monitoramento, além do trabalho cotidiano de supervisão interna, parece oportuno a inclusão de observadores civis e a encomenda de avaliações externas. O estabelecimento de parcerias com universidades, centros de pesquisas ou organizações não governamentais, pode ser bastante proveitoso seja para garantir a credibilidade e a qualidade dos resultados, seja para reduzir os gastos com este empreendimento. Por fim, é importante salientar que, para melhor compreender os possíveis impactos derivados das intervenções em curso, as atividades de monitoramento e avaliação devem procurar centrar seu foco não apenas nos resultados previstos, mas, também e fundamentalmente, no processo mesmo de mudança e nos fatores que influenciam este processo.
Do acervo de experiências de reformas policiais bem sucedidas ou fracassadas, particularmente aquelas que ocorreram nos últimos trinta anos em vários países de tradição democrática, pode-se, sem pretender esgotar as alternativas disponíveis, selecionar algumas questões que pela sua recorrência ou pela sua importância estratégica, merecem ser alvos da atenção dos reformadores. Apesar das propostas aqui anunciadas serem, em boa medida, subordinadas umas as outras, para facilitar a exposição faremos uma divisão arbitrária em duas ordens de intervenção, a saber: 1) as intervenções legais ou normativas que abordam possíveis mudanças nas normas, regulamentos, etc. e 2) as intervenções administrativas que tratam das alterações na estrutura das agências de segurança pública, em particular as polícias.
I - Intervenções legais ou normativas.
Propostas | Observações: |
I. Definição legal dos poderes de polícia, da instância jurídica de sua subordinação e da regulamentação dos alcances e limites de sua utilização. Para executar as funções de polícia criminal e repressiva, as organizações policiais são dotadas de poderes "delegados" que interferem nas liberdades dos cidadãos. Dentre eles destacam-se: § Controle de pessoas suspeitas nos espaços públicos. § Revista de suspeitos. § Entrada e busca em Domicílios. § Condução de suspeitos à unidade policial. § Detenção de suspeito na unidade policial por um período de tempo. § Apreensão e conservação de objetos passíveis de constituir objeto de prova. § Custódia de objetos pessoais de vítimas e suspeitos. § Prisão de perpetradores de crimes. § Interrogatório de pessoas suspeitas. § Convocação de testemunhas. § Escuta eletrônica. § Infiltração em atividades criminosas para fins de investigação. § Capturas de criminosos ou suspeitos em situação de fuga. No intuito de buscar uma maior conformidade entre os protocolos legais e as práticas policiais, parece oportuno que o trabalho de redefinição ou atualização dos "poderes de polícia" considere os seguintes diplomas legais elaborados pela ONU: 1. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10/12/1948. 2. Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. Resolução nº 34/169, 17/12/1979. 3. Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Resolução nº 39/46, 10/12/1984. 4. Convenção Interamericana para prevenir e Punir a Tortura, 09/12/1985. 5. Conjunto de Princípios para a proteção de todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão. Resolução nº 43/173, 09/12/1988. 6. Princípios Relativos a uma Eficaz prevenção e Investigação de Execuções Extralegais, Arbitrárias e Sumárias. Resolução nº 44/162, 15/12/1988. 7. Princípios Básicos sobre Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, 07/10/1990. | As ambigüidades, imprecisões e lacunas no que concerne à definição dos poderes de polícia, têm comprometido: § A validação do trabalho de investigação policial pela justiça. § A capacidade dos magistrados e demais operadores da justiça, de distinguir e julgar com objetividade e segurança o emprego do poder polícia adequado e validado legalmente, daqueles abusivos ou ilegais. § A elaboração pelas polícias de métodos e procedimentos de ação eficazes e adequados às exigências legais. § A eficiência dos instrumentos de controle interno e externo. § A transparência do processo de tomada de decisão policial na interação com os cidadãos. § A segurança e a confiança dos cidadãos em relação as atitudes dos policiais, sobretudo nas interações provocadas pela polícia. § A segurança dos policiais no curso de suas ações, levando-os a preferir intervenções reativas e pós-fato. § A eficácia do treinamento operacional dos policiais, sobretudo para o eventos de alto grau de incerteza e risco. § A sedimentação pelos policiais de estratégias de auto-proteção para encobrir tanto os desvios intencionais, quanto os erros não intencionais. |
II. Definição legal do sistema de informações (serviços de inteligência), das suas instâncias de subordinação, dos seus poderes delegados, das formas de sua utilização, e dos protocolos de cooperação com as polícias. As polícias de informações, mais conhecidas como "polícias secretas" ou "serviços de inteligência" sempre levantaram dúvidas quanto a extensão dos seus poderes, a pertinência dos seus gastos, a eficácia e a legitimidade dos seus métodos de atuação, a sua capacidade de intervir "silenciosamente" na vida dos cidadãos e nas instituições políticas, etc. Estes sentimentos de desconfiança parecem ser mais críticos nos países que experimentaram regimes políticos autoritários. Resulta daí a justa preocupação dos atuais governos com uma área relevante e estratégica não só para a estabilidade da ordem democrática, quanto para a sustentação da soberania política dos estados nas suas relações internas e externas. Afinal, como demonstra os inúmeros exemplos históricos, os riscos de uma agência de inteligência transformar-se em "polícia política" não devem ser desconsiderados, inclusive nos regimes democráticos. Em parte por conta disso, parece oportuno, quando for o caso, suprimir estruturas sobreviventes do passado, e criar uma nova agência de inteligência em sintonia com as garantias constitucionais em vigor. Mesmo que discretas e veladas por conta da natureza singular de suas atividades, as agências de inteligência ou "polícias de informação" contemporâneas são, como qualquer outra instituição pública, passíveis de controle e fiscalização. Parece razoável que ela se caracterize tão somente como uma agência nacional, dissociada da operacionalidade cotidiana das polícias, vinculada à presidência da república e fiscalizada por comissões do congresso nacional. Também parece razoável que as suas competências não invadam o campo de atuação da segurança pública, mais propriamente as esferas de atuação das organizações policiais. Isto significa dizer que os poderes de coação dos agentes de inteligência seriam bastantes restritos e delimitados se comparados aos poderes delegados aos policiais. Por fim seria oportuno precisar os protocolos de interação entre a agência de inteligência e as polícias, sobretudo no que diz respeito ao intercâmbio de informações. Neste particular mostra-se útil definir uma política de produção e troca de informações que atenda aos interesses do estado sem violar os direitos dos cidadãos. | § Nos estados que, por diversas razões, implantaram sistemas policiais altamente militarizados, observou-se uma perversa proliferação de órgãos de informações desarticulados, mal coordenados e sem qualquer controle. Em alguns casos, a multiplicação de "serviços reservados" ou "secretos" chegou a atingir todos os níveis da organização político-administrativa dos estados, possibilitando uma espécie de "estado policial". |
III. Qualificação legal dos crimes violentos praticados contra agentes da lei. Uma das questões que mobiliza os policiais e suas associações de classe, reporta-se aos possíveis amparos legais que os profissionais de polícia podem dispor no exercício de suas atribuições. O sentimento de isolamento social e a percepção de que a polícia é uma profissão muito "perigosa" e exposta a riscos diferenciados, traços comuns entre as mais distintas culturas policiais, alimentam a convicção generalizada entre os policiais de que os legisladores não deveriam somente se preocupar em criar ou aumentar o rigor das leis que controlam o comportamento da polícia. Do ponto de vista policial, os legisladores deveriam suspeitar menos das polícias, e acenar positivamente para os seus integrantes, preocupando-se também em formular leis que protejam os policiais, enfim, que contribuam para aumentar a segurança dos profissionais de polícia no desempenho de suas atribuições. A sensação classista de que as leis, normas e regulamentos que regem as polícias costumam ser, salvo exceções, mais proibitivas do que propositivas, parece ser ainda mais aguçada naquelas sociedades que promoveram uma redução substantiva dos poderes tradicionalmente delegados às suas polícias e pouco se ocuparam de construir uma agenda positiva para as organizações policiais. A despeito dos impactos dissuasórios e preventivos que possa produzir em termos, por exemplo, da redução das oportunidades de vitimização policial, a caracterização legal das ações criminosas e violentas dirigidas contra policiais como um aspecto que "agrava" a situação penal do praticante, apresenta-se, no mínimo, como um gesto político importante porque ajudaria a estimular a auto-estima, a auto-confiança e o empenho dos policiais nas suas rotinas. Este tipo de intervenção mostra-se ainda mais pertinente, quando se leva em consideração que os policiais são alvos potenciais de ações e protestos violentos pelo simples fato de serem policiais, ou melhor, pelo fato de serem a principal representação do Estado diuturna, capilar, ambulante e acessível aos cidadãos. | § A defesa dos policiais do agravamento da situação penal dos indivíduos que perpetram ações criminosas e violentas injustificadas contra eles e demais agentes da lei, parece atender a um desejo de proporcionalidade e equidade em relação aos esforços legislativos de garantir os direitos dos cidadãos comuns nas suas interações provocadas ou não com os policiais. Por outro lado, busca atender a certas questões práticas colocadas pelo trabalho policial que não se restringem aos episódios convencionais e rotineiros em que a polícia é chamada a atuar. Ocupa-se também de procurar emprestar novos recursos legais para a atuação policial nos eventos excepcionais e de grande repercussão promovidos, por exemplo, por atores coletivos como as violências civis, os motins, os protestos, etc., que exigem intervenções do tipo controle pacífico de multidão. |
IV. Concessão de benefícios legais para indivíduos em conflito com a lei que cooperam com a justiça criminal. Em muitos países, o sistema de justiça criminal e segurança pública não dispõem de expedientes legais que concedam uma margem de manobra decisória aos seus operadores, de modo que eles possam, em diversas fases do processo de investigação, identificação de autoria e formação de culpa legal, estimular, amparados na lei, a cooperação de indivíduos condenados e que cumprem pena, de suspeitos de crimes, de criminosos confessos, de cidadãos que exercem atividades informais ou clandestinas, de pessoas que se encontram em uma situação irregular com os as leis civis, de imigrantes ilegais, etc. O fato dos agentes da lei poderem "negociar" a cooperação de indivíduos em conflito com a lei, oferecendo alternativas e benefícios legais, juridicamente autorizados, abre a oportunidade de se melhorar a eficiência das atividades de polícia criminal no que diz respeito a investigação não só da delinqüência convencional, mas também dos chamados crimes organizados. Uma das queixas mais freqüentes dos policiais de ponta é a de que boa parte das dificuldades que encontram para obter a colaboração formal de pessoas que estão ou que se acreditam em conflito com a lei, resulta do fato de que eles têm pouco a oferecer a elas. Na prática, estas pessoas, tendo pouco a ganhar e muito a perder aproximando-se formalmente da polícia e da justiça, optam racionalmente por não cooperar com os agentes da lei ou por ajudá-los apenas de maneira informal. Afinal, como convencer um imigrante ilegal a testemunhar no tribunal? Como convencer um cidadão que possui um bar não legalizado a fornecer informações sobre um certo suspeito? Como conseguir que um vendedor ambulante sem licença para trabalhar na rua conte um crime que ele presenciou? Um dos caminhos possíveis para ampliar os canais para a obtenção de informações criminais qualificadas e validadas pela justiça é desenvolver estratégias que possibilitem a cooperação não só dos cidadãos em dia com a justiça, mas também daqueles que se encontram em conflito com a lei. Por último cabe ressaltar que a legalização da negociação pode concorrer para prevenir atitudes policiais corruptas e ameaçadoras tais como ações coercitivas não autorizadas, métodos policiais heterodoxos de coleta de informações e depoimentos que incluem a concessão de vantagens ilegais, etc. | § Uma importante vantagem derivada da concessão de benefícios legais aos cidadãos em conflito com a lei que cooperam com a justiça, é a possibilidade de regular e emprestar transparência e confiabilidade as ações discricionárias dos agentes da lei, sobretudo, às decisões policiais. Em função do fato da polícia atuar no calor dos acontecimentos e não apenas pós-fato como os operadores da justiça, o recurso da barganha e da negociação é parte indissociável do trabalho real da polícia. Mesmo quando não está legalmente amparada, a barganha permanece sendo utilizada informalmente para, paradoxalmente, fazer cumprir a lei. Uma vez que seria ilusório e ingênuo suprimir as esferas de discricionariedade do trabalho policial, parece mais oportuno criar expedientes normativos que possam regulamentá-la. Até porque a sua ausência, contribui para projetar as práticas policiais em uma espécie de "alegalidade" que favorece a paralisia decisória. |
V. Definição dos amparos legais para as testemunhas e seus familiares que estão sob grave ameaça ou risco de vida. Uma das grandes limitações enfrentadas pelos programas de proteção a testemunhas, iniciativas bastante recentes em alguns países latinos, é a ausência de expedientes legais que garantam, nos casos de grave ameaça à vida, a oportunidade, por exemplo, de mudança radical de vida das testemunhas e seus dependentes amparada pelo estado. Muitos programas experimentam dificuldades reais de conseguir garantir a segurança dos seus beneficiados, pela falta de recursos legais que permitam a mudança de nome das testemunhas e, por conseguinte, de todos os seus registros de identificação civil e criminal. Ainda que apenas uma pequena parte dos casos contemplados pelos programas necessitem desta forma de proteção, parece oportuno dispor deste tipo de expediente, entre outros que se mostrem necessários, já que mais relevante que a quantidade de casos cobertos, é a importância qualitativa deles para o sistema de justiça criminal. A definição legal dos tipos de amparos legais fornecidos pelo estado, da sua abrangência e duração, parece-nos indispensável para não só para garantir os recursos financeiros necessários, como também para obter a adesão de testemunhas chave. | |
VI. Autorização constitucional para que estados e municípios possam criar suas próprias forças policiais. Em alguns países, os principais entraves à implementação de reformas estruturais nos sistemas policiais resultam de restrições previstas na constituição. No caso do Brasil, além da carta constitucional determinar um sistema policial, composto de duas polícias estaduais de ciclo incompleto - a polícia militar, responsável pelo policiamento ostensivo e a polícia civil, responsável pelas atividades de polícia criminal -, ela impede os municípios de poderem criar suas próprias polícias. Deste tipo de limitação legal, resulta toda sorte de problemas que vão desde os graves conflitos de competência entre as polícias até a incapacidade deste sistema de prover serviços de segurança adequados à realidade das grandes cidades e regiões metropolitanas. Este certamente não é um problema específico do Brasil. Em muitos países europeus, ora a legislação omite de forma deliberada a participação dos estados e municípios no provimento da segurança pública, ora ela delega um caráter secundário e residual ás chamadas guardas municipais. É inegável que as municipalidades têm, cada vez mais, assumido um papel central na vida dos cidadãos e, por conseguinte, na organização política dos estados contemporâneos. Em razão do papel direto e executivo que as cidades exercem sobre a qualidade de vida das suas populações, parece inevitável que os municípios, locais onde o crime e a violência, de fato, acontecem, possam exercer algum grau de influência nas polícias e em suas políticas de policiamento. Não se trata aqui de propor, por antecipação, uma espécie de municipalização das organizações policiais nacionais ou estaduais. Até porque existem alternativas de modelos de sistemas policiais capazes de atender às especificidades de cada país, tais como o tipo de organização do estado (unitário ou federativo), o tamanho do território e da população, etc. Trata-se apenas de sustentar a importância da elaboração de emendas constitucionais que possam flexibilizar e descentralizar as rígidas estruturas da segurança pública, de forma a possibilitar, conforme a pertinência, o desenvolvimento de arranjos que contemplem todas as esferas de organização administrativa do Estado (união, estados e municípios). |
VII. Definição das competências do Ministério da Justiça (ou do Interior) no que concerne a segurança pública e as organizações policiais estaduais ou municipais. É evidente que um dos problemas que afetam diretamente a elaboração de políticas de segurança pública e a sua efetiva implementação por parte, por exemplo, das organizações policiais, é a imprecisão da linha de condução da autoridade nas diversas esferas da organização do Estado e, por sua vez, as conseqüentes indefinições quanto aos níveis institucionais de responsabilização e prestação de contas dos distintos órgãos que compõem o sistema de segurança pública. Tanto nos sistemas policiais centralizados, Quanto naqueles descentralizados pode-se observar, mesmo que em proporções diferenciadas, a existência de lacunas, sobreposições e dispersões na cadeia de autoridade. A adoção de uma perspectiva sistêmica das estruturas de segurança pública ajuda a identificar o tipo de responsabilização que se deseja para cada esfera executiva da máquina estatal. Parece óbvio que tanto nos sistemas policiais federais, quanto nos estaduais ou municipais, o poder central deva exercer um lugar importante na condução dos problemas atinentes ao provimento de segurança pública. Seria oportuno, portanto, que órgãos de natureza civil como os ministérios da justiça ou do interior, conforme o país em questão, assumam responsabilidades executivas e diretas na coordenação das agências de segurança pública que ultrapassem o papel tradicional de apenas recomendar orientações gerais às polícias. Neste sentido, consideramos adequado que a instância federal, além de controlar as polícias sob seu comando direto, possam ter, por exemplo, as seguintes competências: 1. Formular e difundir diretrizes políticas, doutrinárias, organizacionais, educacionais, administrativas, tecnológicas, etc., para as agências de segurança pública. 2. Fiscalizar, inspecionar e realizar auditorias nas organizações policiais e nas empresas privadas de vigilância. 3. Editar normas gerais para o funcionamento das organizações policiais como, por exemplo, a definição de regras relativas a aquisição, controle, manutenção e utilização de armamentos e munições autorizados para as polícias; a criação de um código nacional de referência sobre o uso legal e legítimo da força pelos agentes da lei; a elaboração de um código nacional de ética para os agentes da lei. 4. Estabelecer critérios gerais e específicos de avaliação de desempenho das agências de segurança pública, considerando não só o que "as polícias fazem", mas também "como elas fazem". 5. Estabelecer expedientes de prestação regular de contas. 6. Estabelecer formas de penalização e premiação (administrativa, financeira, etc.) para as agências de segurança pública que seguem ou não as diretrizes e normas estabelecidas, bem como os convênios e termos de cooperação firmados. 7. Realizar investimentos e alocar recursos financeiros adicionais nas organizações policiais ou programas específicos das polícias que reflitam as prioridades da política nacional de segurança pública. 8. Promover e apoiar estudos e pesquisas que possam contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal e segurança pública. | § Assimilação pelos ministérios da justiça ou do interior de funções mais executivas na coordenação da política de segurança pública, não deve ferir a autonomia administrativa conferida aos estados e municípios em relação as suas agências policiais. Muito menos deve estabelecer uma cadeia de comando e controle paralela sobre as polícias. O seu lugar em uma estrutura integrada e cooperativa de coordenação, é o de situar-se como o último nível de autoridade e responsabilização. Como tem demonstrado inúmeras experiências, a reestruturação das competências dos ministérios afetos à segurança pública tem sido bastante útil para conter certos efeitos perversos como, por exemplo, i) a politização ou a partidarização política das polícias pelos poderes regionais e locais; ii) a fragmentação e a heterogeneidade excessivas de doutrinas, normas procedimentos, treinamento e práticas policiais existentes em sistemas policiais altamente descentralizados; iii) a baixa transparência, a ossificação e a autonomização excessivas dos modelos policiais centralizados. |
VIII. Qualificação dos condicionantes legais que definem a responsabilidade penal o policial que produziu uma vitimização fatal no cumprimento da lei. Nem sempre as legislações penais e processuais penais são suficientemente claras quanto a responsabilização penal dos policiais que, nas ações de imposição da lei, provocam vitimizações fatais em outros agentes da lei e, principalmente, em cidadãos. A baixa precisão jurídica de uma questão tão delicada como esta, tem propiciado interpretações díspares e contraditórias entre os magistrados, representantes do ministério público, policiais, etc., que comprometem, entre outras coisas, 1) a tradução positiva e prática das determinações legais previstas para estes casos em métodos adequados de atuação policial e estratégias continuadas e eficazes de treinamento e requalificação dos policiais; 2) a elaboração de normas administrativas e instruções operacionais efetivas pelos departamentos de polícia; e 3) a eficiência dos órgãos de auditoria, investigação e correção internos e externos. A falta de um mínimo de consenso entre as órgãos da justiça criminal e dos seus atores, no que diz respeito a certas externalidades da ação policial e as suas formas de enquadramento legal tem custado caro para todos, sobretudo para os policiais que, frente a debilidade das regras e dos seus critérios de aplicação, procuram, com boas razões, evitar maiores complicações em suas carreiras, desenvolvendo expedientes de sobrevivência e auto-proteção dentro de suas organizações que tanto fragiliza a cadeia interna de comando e controle, quanto reforça a adesão indesejada a práticas policiais reativas e de baixa visibilidade. |
II - Intervenções administrativas.
Propostas | Observações: |
I. Reestruturação dos sistemas policiais. Ao nosso ver, a redefinição de um sistema policial nacional e, por sua vez, a escolha do modelo mais oportuno para um determinado país, em particular aqueles de regime democrático, deve considerar alguns pontos importantes: § O sistema policial atual, sua tradição histórica, sua estrutura e cultura organizacionais, os efetivos policiais, suas carreiras, seus direitos adquiridos, seus custos, etc., no sentido de buscar, a partir de um diagnóstico consistente do que já existe e está em operação, elaborar expedientes legais e normativos, assim como ferramentas administrativas e operacionais que incorporem e viabilizem, de fato, o processo de transição para um novo modelo de sistema policial desejado. Administrar as rupturas que as mudanças provocam sem perder de vista os níveis concretos de continuidade com as estruturas e rotinas do sistema que se quer transformar, é parte indissociável do processo de mudança, particularmente em grandes organizações como as polícias. Muitos fracassos no processo de reforma policial podem ser creditados a uma espécie de desatenção quanto ao desenvolvimento de ferramentas de transição que possam, na prática, garantir não só os rumos acertados da mudança, mas também o funcionamento razoável dos órgãos policiais sob intervenção. Cabe ainda destacar que a negligência com o passado e o presente das organizações policiais que são alvos da reforma, contribui, entre outras coisas, para a sedimentação de resistências corporativas e para a falta de comprometimento dos policiais com a execução das antigas e novas rotinas estabelecidas. § O controle efetivo das organizações policiais de forma a reduzir, no limite do possível, as oportunidades de instrumentalização política das polícias. Uma das questões que desafiam os estados democráticos diz respeito a como garantir a subordinação das polícias seja nos períodos de estabilidade da vida democrática, seja naquelas situações de crise, nas quais a sustentação das instituições democráticas passa a depender, em boa medida, da fidelidade e do profissionalismo das agências policiais, sobretudo no que se refere a aplicação das normas legais e das regulamentações vigentes. O desafio democrático de "não produzir controle demais, nem controle de menos" reflete a busca de um sutil e indispensável equilíbrio que visa: i) evitar o controle excessivo exercido pelos poderes políticos que faz com que as polícias se afastem das expectativas sociais e das demandas cotidianas dos cidadãos, para servirem com prioridade o estado ou os interesses das coalizões dos poderes políticos; e ii) impedir a debilidade estrutural ou a falta de controle que propicia a perigosa autonomização das polícias tanto em relação às pressões dos poderes políticos, quanto aquelas exercidas pelos cidadãos. § O tipo de ordenação político-administrativa do Estado aparece como um aspecto fundamental no que se refere a seleção de alternativas de sistemas policiais mais adequados a cada país ou sociedade. Considerando que as polícias são, talvez melhor que outros órgãos públicos, a representação concreta do Estado na vida dos cidadãos, parece oportuno que as organizações policiais devam estar razoavelmente alinhadas com as transformações ocorridas ou desejadas na arquitetura estatal, seus níveis de administração política e suas respectivas competências. A responsabilidade e a autonomia asseguradas aos municípios e estados (ou províncias) em relação ao poder central, apresentam-se como variáveis importantes para se avaliar a maior ou menor pertinência de se adotar ou combinar certos elementos presentes em vários sistemas policiais. Para fins de ilustração cabe situar que um sistema policial pode ser: 1. Monista, dual ou plural. 2. Federal, estadual ou municipal. 3. Centralizado, misto ou descentralizado. 4. Com maior ou menor autonomia operacional. 5. Com missões amplas ou limitadas. § Um outro aspecto tão importante e decisivo quanto os demais, diz respeito ao tamanho territorial do estado e da sua população. A km2 do país, dos estados e municípios, assim como o tamanho de suas respectivas populações, influenciam de forma direta o tipo de sistema policial. E isto de tal maneira que a existência de uma única organização policial, por exemplo, pode ser encontrada não só em países cujos sistemas políticos foram ou permanecem autoritários, mas também naqueles estados democráticos que são muito pequenos e pouco populosos. Levando-se em consideração os pontos acima mencionados, pode-se dizer que um programa de reestruturação das polícias deve procurar responder se elas estão suficientemente estruturadas, organizadas e controladas para atender com eficiência, integridade, transparência e qualidade as demandas dos cidadãos. Na prática, isto se traduz em procurar, através de um conjunto de intervenções, reduzir os graves efeitos perversos evidenciados pelas mais diversas experiências históricas. Vejamos aqui dois exemplos opostos e radicais: § Sistema federal com uma única polícia. Os sistemas que possuem uma única polícia são, por conseqüência, altamente centralizados. Apesar de um corpo único de polícia ser mais fácil de ser controlado pelo poder central, de impossibilitar os conflitos de atribuições e de territórios de atuação, e de evitar a duplicidade de recursos policiais, as desvantagens associadas a este modelo são enormes e bastante custosas para se procurar mantê-lo ou adotá-lo em países com território e população significativos. Alguns dos seus efeitos perversos merecem ser mencionados: 1. Uma polícia única e centralizada possibilita um crescimento desenfreado do seu efetivo, o que inviabiliza o seu controle e, por conseguinte, a sua gestão. A desproporção entre o seu tamanho, o tamanho do país e o da população, possibilita o surgimento de uma burocracia poderosa e resistente, difícil de ser administrada e reformada. Resulta daí que uma polícia única e centralizada só permanece razoavelmente gerenciável enquanto seus efetivos não se tornam desmedidos. 2. A ausência de competição com outras agências policiais, faz com que os corpos únicos de polícia desfrutem de uma hegemonia ameaçadora às instituições democráticas. Sozinhas em seu território, as polícias únicas detém o monopólio de poderes que, na prática, transformam-se em privilégios estimulados pela formação de clientelas cativas e dependentes, incluindo aí os próprios poderes políticos e o judiciário. 3. As polícias únicas possibilitam o surgimento de estruturas sindicais poderosas e de larga escala, capazes de desafiar os poderes constituídos e de "chantagear" as autoridades políticas. Nestes sistemas, a força corporativa cresce demasiadamente por conta do monopólio exercido no território, tornando a organização policial opaca e indevassável aos olhos do estado e do público. A enorme proximidade da polícia única com o poder central, e os possíveis elos de dependência deste último com ela, fazem com que as suas reivindicações sejam tratadas como grandes "negócios de estado", superiores às demandas da sociedade. 4. As polícias únicas tendem a experimentar graus elevados de autonomização tanto em relação ao próprio estado, quanto em relação à população, comprometendo o exercício dos controles interno e externo. Motivadas a atuar fundamentalmente em causa própria, as polícias únicas constituem sistemas fechados e auto-referidos, pouco afeitos a mudanças, sobretudo no que diz respeito às suas normas e procedimentos operacionais. 5. As prioridades dos corpos únicos de polícia tendem a se distanciar das expectativas e demandas sociais. Como as carreiras e as estratégias de ascensão profissional são definidas a partir do poder central, os executivos de polícia tendem a privilegiar ações com visibilidade política, em detrimento das tarefas convencionais e cotidianas de policiamento voltadas para a administração da segurança pública. Em outras palavras, as polícias únicas tendem a emprestar menor relevância as suas missões propriamente policiais, optando gradativamente por superestimar e assimilar outras missões de caráter político. Neste tipo de sistema, as intervenções em conflitos políticos e as atividades de espionagem interna tendem a ser estimuladas e valorizadas, sobretudo como recursos de pressão corporativa. 6. As polícias únicas, além de serem organizações grandes, pesadas, refratárias e muito caras, tornam-se, com o tempo, pouco confiáveis para o estado e, sobretudo, para os cidadãos. Portadoras de uma baixa credibilidade, estas agências tendem a compensar a falta de legitimidade perdida com a sua crescente autonomização, estimulando performances "pseudo-produtivas" e protegendo comportamentos autoritários e personalizados entre os seus integrantes. § Sistema policial pluralista e local. No extremo oposto do modelo único e centralizado de polícia, têm-se os sistemas policiais descentralizados e compostos por inúmeras polícias que, em sua maioria, caracterizam-se como agências locais e regionais. Apesar de mais permeáveis ao controle externo e às pressões dos grupos sociais, dos políticos, etc., os sistemas policiais plurais e altamente descentralizados também apresentam uma série de problemas que merecem ser corrigidos ou contornados. Dentre os efeitos indesejáveis mais freqüentes nestes sistemas, destacamos: 1. A simples adoção de um sistema policial pluralista e local não pressupõe que as organizações policiais locais ou regionais tornem-se descentralizadas, racionalizadas e otimizadas internamente. As polícias locais podem ser tão burocratizadas e fechadas quanto uma polícia nacional. Isto porque a burocratização das polícias não resulta apenas da sua subordinação exclusiva ao poder central. Resulta também e, fundamentalmente, do seu modelo organizacional, da sua doutrina, do seu tamanho, do seu nível de diferenciação espacial (tarefas por unidade), do seu grau de diferenciação ocupacional (especialização e serviços), da estrutura da sua cadeia interna de comando e controle, dos níveis internos de autonomia decisória, dos seus critérios de promoção, da sua permeabilidade à participação comunitária, enfim, das suas prioridades organizacionais e das formas de emprego dos recursos policiais. E isto de tal forma que tanto os departamentos policiais de larga escala (metropolitanos), quanto os departamentos policiais de cidades pequenas, podem, em função, por exemplo, de seu insulamento institucional, tornar-se organizações fechadas com fins em si mesmas. 2. Um dos problemas dos sistemas policiais plurais e locais é a dificuldade de integrar os seus níveis de coordenação de forma a ultrapassar o isolamento institucional propiciado pela dimensão local. Algumas experiências históricas deixaram evidente o caráter difuso dos níveis de responsabilização e subordinação das polícias locais (e regionais) seja no que se refere aos poderes executivos (municipal, estadual ou federal), seja no que se refere às agências da justiça criminal e as comunidades. A imprecisão e mesmo a ausência de uma estrutura sistêmica e integrada de coordenação têm propiciado: i) o surgimento de conflitos de natureza operacional, resultantes da falta de padrões comuns de atuação entre as várias polícias; ii) a sedimentação de conflitos de competência em relação as atribuições das polícias, sua complementaridade, etc. ; iii) a indefinição dos níveis de responsabilização e prestação de contas em virtude, ora da ausência de uma linha precisa de autoridade e comando, ora da sobreposição de linhas de comando e autoridade paralelas e conflitantes; e, por fim, iv) a sedimentação de rivalidades estruturais entre os distintos poderes executivos e entre as próprias polícias locais. 3. Apesar de mais eficazes no que diz respeito ao exercício do controle social local, as polícias locais correm o risco de que sua autonomização excessiva em relação às outras instâncias da estrutura política-administrativa do estado, as transformem em células estanques e isoladas, pouco capacitadas para lidar com a criminalidade e a violência urbana itinerante, isto é, com os fluxos criminais migratórios ou com as dinâmicas criminais que ultrapassam a localidade. Encerradas em territórios limitados, as polícias locais quando ausentes de esferas superiores e integradas de coordenação, enfrentam dificuldades reais para lidar com problemas que rompem com as suas fronteiras territoriais formais. Tal limitação tende a ser mais crítica nas atividades de polícia criminal voltadas para o enfrentamento não apenas da delinqüência convencional itinerante, mas, sobretudo, das dinâmicas criminais organizadas e trans-locais como o tráfico de drogas, armas, bens, pessoas, etc. 4. A fragmentação excessiva dos sistemas policiais plurais e locais propicia o isolamento institucional das polícias, favorecendo a cristalização de rivalidades que se expressam, por exemplo, no baixo nível de cooperação entre as forças policiais. Um outro problema grave derivado da proliferação desmedida de agências policiais é a conseqüente debilidade da indispensável rotina de comunicação entre as organizações. Note-se que a precariedade da comunicação entre as polícias locais, compromete não só o aperfeiçoamento dos métodos e práticas policiais promovido pelo intercâmbio policial, como também a eficácia das rotinas de polícia criminal. Neste particular, pode-se dizer que a constituição e atualização de uma base integrada de dados criminais fica comprometida, assim como as atividades rotineiras de inteligência e investigação criminal dos departamentos de polícia. 5. Os sistemas policiais plurais e locais tendem a possuir um alto grau de heterogeneidade quanto aos níveis de especialização, diversificação e abrangência dos serviços oferecidos pelos departamentos de polícia. A disparidade existente na capacidade das polícias de acompanhar as transformações e o crescimento das demandas comunitárias, sobretudo entre as polícias das grandes e pequenas cidades, resulta, em boa medida, da discrepância dos recursos financeiros dos municípios e estados para a adequada manutenção de suas forças policiais. A capacidade diferenciada dos poderes locais de efetuar investimentos em suas polícias, dificulta o estabelecimento de padrões de qualidade mais homogêneos entre os departamentos de polícia e, por sua vez, a definição de um conjunto de critérios de avaliação de desempenho policial comuns e válidos para todas as polícias. Um outro aspecto importante é que a fragmentação extrema do sistemas policiais, ao gerar recursos financeiros precários para as polícias pequenas e de porte médio, faz com que elas sejam incapazes de desenvolver políticas coerentes de recrutamento e formação de pessoal, assim como de fazer uso de inovações tecnológicas voltadas para o trabalho policial, etc. 6. As polícias locais são mais suscetíveis de sofrerem um processo de "politização por baixo". Em outras palavras, as polícias locais, porque subordinadas exclusivamente ao poder municipal ou regional, tornam-se mais facilmente reféns do clientelismo político e do paroquialismo. A sua instrumentalização pelas elites políticas locais favorece, por exemplo, o "encobrimento" político do tráfico de influência e os desvios de conduta praticados pelos policiais para atender demandas político-partidárias. 7. Caráter descentralizado dos sistemas policiais plurais e locais não garante que as demandas sociais sejam automaticamente mais consideradas do que nos modelos centralizados. Do mesmo modo, a descentralização, por si mesma não garante uma maior eficácia no que diz respeito ao controle do comportamento policial e ao funcionamento dos serviços policiais mais transparente aos olhos do público. Em um plano geral, uma das principais tendências das reformas policiais contemporâneas, tem sido a adoção de um "modelo sistêmico e integrado” que, suficientemente dinâmico e flexível, possa, por um lado, assimilar um horizonte de aperfeiçoamento regular com reformas ou intervenções continuadas e, por outro, aproveitar as virtudes dos sistemas pluralistas e locais, corrigindo os seus efeitos indesejáveis. O atual sistema policial inglês, considerado por vários estudiosos e executivos de polícia como "o modelo mais bem acabado de descentralização", serve como uma inspiração importante no que diz respeito, por exemplo, à integração sistêmica das suas 43 agências policiais e a construção de um relacionamento harmônico entre os poderes central e local para fins de controle das polícias. De acordo com alguns estudos históricos, um dos pontos fortes da "descentralização policial à moda inglesa" foi e tem sido a capacidade política das elites e da sociedade inglesa de sustentar a unidade do estado através da negociação e do estabelecimento de compromissos claros entre o poder central e os poderes periféricos ou locais. E isto de tal forma, que as polícias inglesas nasceram locais e procuraram manter-se assim até hoje, resistindo às diversas ondas de centralização dos sistemas policiais europeus ocorridas no século passado, ondas estas motivadas pela instrumentação política da percepção coletiva de insegurança. Em um universo no qual o sistema policial descentralizado faz parte da tradição política, pode-se melhor observar o desenvolvimento de ferramentas voltadas para a contenção do movimento centrífugo e de outros efeitos indesejáveis que a descentralização tende a promover. Com esta orientação, a Inglaterra tem procurado aperfeiçoar o seu sistema descentralizado, desenvolvendo instâncias e expedientes intermediários entre os níveis central e comunal. Vejamos alguns exemplos práticos: § Para superar o isolamento, a competência territorial limitada das polícias locais e possibilitar o enfrentamento dos crimes de escala e da criminalidade itinerante, foram criados os regional crime squads. Tratam-se de estruturas policiais integradas e regionais cujas competências territoriais são mais amplas que as das polícias locais. Compostos por integrantes das polícias locais, os regional crime squads configuram-se como inter-forças ou forças tarefas especializadas que dão suporte às polícias locais, e cuja coordenação tem o poder central (Home Office) como nível último da linha de subordinação. § Cada vez mais o sistema descentralizado inglês tem convivido com a ampliação dos poderes do Ministério do Interior ou Home Office. No que diz respeito a gestão das unidades policiais, foram instituídos comitês ad hoc e de composição mista que possibilita o controle e a fiscalização pelo Home Office, ao mesmo tempo que garante a participação dos poderes locais, dos policiais e da comunidade. Estes comitês, via de regra, são compostos por juizes de paz, representantes eleitos dos conselhos das cidades e condados (2/3 dos membros) e policiais. § O governo central também criou leis que possibilitam a uniformização do sistema policial, sobretudo no que diz respeito à instituição de padrões comuns de atuação policial em toda a Inglaterra. O estímulo à uniformização de doutrinas, de rotinas e procedimentos operacionais, etc. é feito através de subsídios, ou melhor, da transferência de recursos financeiros adicionais para as polícias locais e também pela implantação de um sistema central de inspeção dos órgãos policiais. § Simultâneo ao processo de irrigação de recursos financeiros, o poder central ampliou o seu poder de cobrança e supervisão, cobrindo todo o sistema policial inglês. Reiterando a política do "valor do dinheiro público", o Home Office implantou uma política sistemática de avaliação dos custos e dos resultados obtidos pelas polícias. § A criação pelo Home Office de um setor de estudos e pesquisas policiais aplicadas não só tem apoiado a política de avaliação, com a elaboração de indicadores de perfomance policial, como também tem fornecido suporte técnico às polícias. § No que diz respeito à profissionalização dos policiais, o governo central tem feito investimentos no sistema educacional policial, procurando influir, por exemplo, no estabelecimento de critérios meritocráticos de recrutamento e seleção dos futuros policiais. Nesta mesma direção, o governo central ocupou-se de definir e regulamentar a carreira dos policiais. § Uma outra linha de ação do governo central foi a definição e a regulamentação dos direitos e deveres trabalhistas dos policiais. Aqui se incluem as normas relativas à sindicalização e a restrição do direito de greve. Neste campo de intervenção também se inclui a constituição de instâncias de negociação com os policiais, com o intuito de canalizar as suas demandas trabalhistas e desenvolver formas negociadas de resolução dos impasses. Como se pode observar os esforços ingleses caminham na direção de aprimorar o seu sistema plural e descentralizado, procurando, através do desenvolvimento de esferas de integração das polícias, construir uma unidade para o sistema policial respeitando a diversidade das realidades das organizações policiais comunais. As prioridades do poder central parecem voltar-se, mais atentamente, para aquelas áreas que o sistema descentralizado deixa a desejar como, por exemplo, as estruturas de comando e controle, a qualidade do ensino policial, assim como a elaboração e difusão de doutrinas, normas e instruções operacionais afins. | § A politização das polícias é sobretudo um problema de natureza política. Ela depende principalmente do grau de confiança que os governantes tem relação aos seus governados. Quanto maior a suspeita do estado em relação às suas instituições e aos cidadãos, maior será a ingerência política no cotidiano das polícias. O inverso também é procedente, isto é, quanto maior é a desconfiança dos cidadãos no estado e nos governantes, maior será a possibilidade de que estes últimos instrumentalize as polícias. § A questão das relações entre o sistema político e as estruturas policiais não se limita à forma, mais ou menos democrática, do regime político. Por conta disso, o debate em torno da reforma policial deve ocupar-se também da capacidade dos sistemas policiais de cumprir suas missões em termos de eficácia , eficiência e de qualidade do serviço. Neste particular, a burocratização e a autonomização tornam-se aspectos muito relevantes, assim como as questões administrativas, gerenciais, tecnológicas, filosóficas, etc. Em uma frase, a "democratização" dos estados e, por sua vez, a "democratização" das polícias não é garantia para se obter sistemas policiais mais confiáveis e eficazes. § Parece prudente dizer que qualquer proposta de reforma policial deve considerar o poder dos interesses corporativos e as correntes ideológicas existentes dentro dos aparelhos policiais. Tais elementos podem comprometer substancialmente o programa de reformas estabelecido. § É importante atentar para o fato de que os esforços de "desmilitarização" de um sistema de polícia única, mesmo que necessários, são insuficientes para conter os efeitos perversos de instituições de larga escala que exercem o monopólio do poder de polícia. As experiências históricas demonstram que mesmo as grandes organizações policiais portadoras de uma arquitetura civil, quando possuidoras do monopólio territorial, apresentam os mesmos problemas de controle e gestão que costumamos identificar nas organizações militarizadas. § Note-se que naqueles países europeus e latinos cuja hegemonia do estado se deu através da imposição violenta ou da negociação autoritária, observou-se, curiosamente, o florescimento de estruturas policiais altamente militarizadas, burocratizadas e centralizadas. § O caráter descentralizado da polícia não a inscreve necessariamente em um quadro comunal. Para tanto, é preciso que nesta organização descentralizada, a doutrina policial e o exercício das atribuições incorporem as prioridades e demandas comunitárias na forma de gestão e planejamento dos recursos e serviços policiais. Também é oportuno que além de um papel consultivo, as comunidades possam exercer, de fato, sua capacidade de controle externo das ações policiais. Caso contrário poderá se ter organizações que, em razão do seu tamanho e do seu grau de especialização, são descentralizadas e, ao mesmo tempo, dissociadas das comunidades as quais prestam serviços. |
II. Estruturação dos serviços de inteligência e investigação criminal.
Muitos fatores parecem ter colaborado para que os serviços de inteligência e investigação criminal das polícias, sobretudo os das polícias latinas, tenham sido, durante um bom tempo, marcados pelo improviso, pelo amadorismo e pela indefinição. Em muitos casos, a militarização e a centralização dos sistemas policiais, a instrumentalização das polícias para fins alheios à sua vocação civil, tais como as atribuições militares de defesa nacional e interna, e as tarefas de polícia política, comprometeram a profissionalização das atividades de polícia criminal, dificultando a sedimentação de valores organizacionais orientados pela integridade, confiabilidade e eficiência das investigações policiais, e da conseqüente elucidação de crimes. A falta de credibilidade das polícias junto às suas comunidades, acabou por funcionar como uma espécie de círculo vicioso, no qual os efeitos perversos derivados da sua pouca legitimidade acabaram servindo para reiterar, e mesmo ocultar, o despreparo técnico, a debilidade dos métodos de investigação, a baixa produtividade e o alto e injustificado custo dos serviços de polícia criminal.
É, precisamente, num ambiente como este que se pôde assistir a disseminação do falso e perigoso pressuposto de que as informações criminais constituindo um "segredo pessoal" do investigador não poderiam constar em uma base de dados acessível a todo o sistema policial, mesmo que submetidas a critérios seletivos de uso e segurança. A "mística" criada em torno da figura do detetive resulta, em boa parte, do monopólio individual das informações sobre crimes, autores e suspeitos exercido pelos investigadores, as Quais, por razões óbvias, deveriam pertencer não aos indivíduos mas a organização policial. Note-se que quanto maior é o controle e o uso personalizado e privatista das informações criminais levantadas, maiores são as oportunidades de "negócios clandestinos e ilegais" e, por conseguinte, mais frágeis e violáveis se tornam as atividades policiais de suporte à justiça criminal. Considerando que, de todas as atividades policiais, as tarefas especializadas de polícia criminal são aquelas que possuem o menor grau de visibilidade externa e que afetam de forma contundente a liberdade e as garantias dos indivíduos, mostra-se indispensável, para qualquer programa de reforma, intervir em uma área tão sensível e crítica.
A utilização de recursos tecnológicos disponíveis no mercado, tais como a montagem de uma base de dados, e a utilização de softwares de identificação e análise criminais, são sempre muito úteis para o trabalho de inteligência e investigação policiais. Contudo, tão ou mais importante que as inovações tecnológicas é, em alguns casos, a criação de um setor de inteligência criminal ou a sua reestruturação. As experiências têm demonstrado que a bem intencionada aquisição de tecnologia se separada de uma adequada reengenharia dos serviços de inteligência criminal, da otimização de suas rotinas, da revisão e racionalização de suas práticas, tem servido apenas para enfeitar o problema. Na prática, a introdução isolada de inovações tecnológicas, além de conservadora, já que pouco altera o modus operandis dos policiais, acaba infelizmente sendo desperdiçada, servindo quase sempre para "informatizar o caos". Se esta observação procede, parece importante que os reformadores realizem um diagnóstico bastante acurado dos serviços de inteligência e investigação criminal, procurando, por exemplo, identificar o volume de casos recebidos, os recursos policiais lotados nestes serviços, os gargalos produzidos no fluxo do trabalho policial, a quantidade de pendências, as formas pelas quais os casos foram resolvidos, a divisão do trabalho entre os investigadores e a forma como eles trabalham, os métodos de coleta, análise e investigação utilizados, os níveis de convergência das atividades de inteligência criminal com as normas e regras em vigor no departamento de polícia, etc. Acreditamos que a realização de uma primeira radiografia dos serviços de polícia criminal, nela incluindo o mapeamento dos casos de violação policial, será indispensável para estabelecer os rumos específicos da mudança e a sua necessidade de investimentos de curto, médio e longo prazos.
Um ponto que não dever ser esquecido no processo de reforma dos serviços de inteligência e investigação criminal é a adoção de uma perspectiva sistêmica e integrada de ação que possa não só devolver o controle das informações às instituições policiais, como também garantir a cooperação cotidiana vertical entre os vários níveis hierárquicos e a cooperação horizontal tanto entre investigadores de unidades distintas, quanto entre este últimos e os patrulheiros que, por força de seu trabalho nas ruas, acabam fazendo investigações preventivas e preliminares.
É importante também salientar que no processo de reestruturação dos serviços policiais criminais, deve-se buscar distinguir, com objetividade, as competências e as esferas de atuação dos serviços de inteligência policial ou criminal dos serviços propriamente de investigação. A confusão e, em muitos casos, a sobreposição das distintas rotinas de inteligência e de investigação têm custado caro as organizações policiais, seja na dificuldade de explicar os seus gastos, seja na dificuldade de apresentar resultados satisfatórios. Ainda que os serviços de inteligência e investigação tenham como matéria-prima a coleta, a análise e o uso de informações, suas finalidades, atribuições, métodos e rotinas são bastante diversos. Em verdade, os resultados que produzem operam em ordens temporais muito distintas. Diferente dos setores de investigação que trabalham no calor dos acontecimentos, o setor de inteligência policial não vive sob a pressão de produzir resultados imediatos sobre o varejo da criminalidade cotidiana. Neste sentido, os analistas de inteligência criminal estão mais distantes da dimensão operacional rotineira dos demais policiais e, consequentemente, seus poderes de polícia tendem a ser mais restritos. É evidente que em um sistema estruturado de inteligência e investigação criminal, o conhecimento produzido pelos analistas criminais, tornam-se indispensáveis tanto no trabalho diário dos investigadores quanto no planejamento do policiamento de rua. Do mesmo modo, as investigações efetuadas pelos detetives e as informações qualitativas levantadas pelos patrulheiros constituem fontes privilegiadas para o trabalho de inteligência policial. Por conta disso, a cooperação entre estes segmentos é fundamental. Como é sabido, mesmo nas polícias de ciclo policial completo, observa-se uma forte rivalidade entre o setor de inteligência e os setores de investigação e patrulha. Uma boa parte desta rivalidade improdutiva pode ser creditada aos conflitos de competência derivados da falta de delimitação institucional destes setores e da sua conseqüente ausência de comunicação. Algumas estratégias administrativas adotadas para harmonizar estas esferas do trabalho policial são: i) emprestar uma identidade institucional distinta para os setores de inteligência e investigação; e ii) definir no quadro da organização a carreira de analista criminal, abrindo a possibilidade de contratação lateral de civis e a oportunidade real de assimilação, através da ascensão profissional pelo mérito, de investigadores e patrulheiros.
III. Revisão, sistematização e internalização das normas e procedimentos dos departamentos de polícia e de seus integrantes. Uma das muitas medidas de reforma policial que podem ser adotadas no curto prazo, diz respeito a necessidade de atualizar, validar e sistematizar as normas e os procedimentos adotados pelas agências policiais. Trata-se de um tipo de intervenção de baixo custo que pode gerar efeitos positivos imediatos tanto para a imagem da organização quanto no comportamento profissional dos policiais. É notório que as divergências internas e externas quanto às formas de atuação policial autorizada ou não autorizada, que as polêmicas criadas sobre o emprego individual do poder de polícia, e que os conflitos de interpretação sobre a validade legal e técnica dos erros e acidentes de trabalho, resultam, por um lado, da existência de normas ambíguas, ultrapassadas e contraditórias e, por outro, da proliferação e da dispersão de regras de instrução operacional que dificultam o conhecimento aprofundado e a sua internalização pelos policiais. Um outro problema a ser destacado em relação a importância da atualidade, da coerência e da aplicabilidade das normas e procedimentos policiais, diz respeito à realidade tangível do trabalho policial. A natureza dinâmica, volátil e, em muitos casos, inesperada e emergencial dos eventos sociais com os quais a polícia lida, aponta para a necessidade de que as normas que regem a atuação policial possam acompanhar, sempre que possível, as transformações ocorridas no ambiente social. O descompasso entre as normas e os procedimentos policiais adotados e as expectativas sociais acerca da atuação da polícia, tem um papel decisivo no que diz respeito ao grau de consentimento dos cidadãos. E isto de tal forma que mesmo aquelas polícias que acreditam agir segundo critérios legais e técnicos, podem conviver com níveis elevados de desautorização social de suas práticas. Certamente este é um cenário comprometedor para as polícias, uma vez que abre-se aqui a oportunidade de se multiplicar as interações conflitantes e mesmo violentas com os cidadãos. Cabe também assinalar que a atualização e a sistematização das normas e procedimentos policiais facilita a administração das organizações policiais, particularmente o cumprimento das orientações e políticas definidas pelas chefias que passam a poder contar com um instrumento de gestão disseminado por toda a organização policial. Afinal instruções confusas e normas obscuras tendem a motivar não só o desenvolvimento de rotinas informais, quanto a opção acomodada e conveniente dos policiais pela passividade e reatividade. Um dos caminhos frutíferos para informar ao público interno das polícias que "as coisas estão mudando" é anunciar e publicar, de forma clara e sistematizada, "as novas regras do jogo". Para tanto parece oportuno constituir uma comissão composta por executivos de polícia dos vários serviços prestados e pertencentes aos diferentes níveis hierárquicos, cuja tarefa será, em um curto intervalo de tempo, produzir um documento completo e revisado das normas e procedimentos policiais válidos para todo o departamento de polícia. | § Os esforços de atualizar e sistematizar as normas organizacionais, não devem se restringir às questões administrativas e operacionais. Eles devem procurar incluir, por exemplo, o trabalho de revisão e implantação de um código disciplinar para os policiais, que seja realista, aplicável e, por sua vez, que guarde sintonia com a sua missão, a realidade do seu trabalho, os seus direitos como cidadão e as expectativas da sociedade. Sabe-se que nas organizações policiais extremamente militarizadas, os códigos disciplinares ocupam-se mais de prevenir e punir comportamentos militares indesejáveis, do que os comportamentos policiais inadequados. Resulta daí duas perspectivas inconciliáveis e conflitantes: aquela que valoriza a disciplina do quartel ou a vida intra-muros, e aquela que ocupa-se do exercício das atividades propriamente policiais ou da interação dos policiais com os cidadãos. Na prática, isto reforça a debilidade das estruturas organizacionais de comando e controle, favorecendo a cristalização de esferas de licenciosidade e de mecanismos corporativos de auto-proteção entre comandantes e comandados. Em algumas organizações policiais o trabalho de revisão e atualização do código disciplinar tem sido realizado através de uma comissão independente, composta por policiais de todos os níveis hierárquicos, de suas representações classistas e de atores da sociedade civil. Tudo indica que este tipo de composição tenha facilitado a produção de questões consensuais e a rapidez na elaboração das propostas alternativas. |
IV. Reestruturação dos órgãos de assuntos internos e fiscalização. Uma das dificuldades mais freqüentes enfrentadas pelas organizações policiais reporta-se, 1) a sua capacidade limitada de gerar respostas conseqüentes no que diz respeito à identificação e apuração dos crimes praticados por policiais, e 2) ao trabalho de supervisão e fiscalização das unidades policiais e de seus integrantes. Consideradas pelos policiais da ponta da linha como duas áreas antipáticas da administração policial, elas costumam ser vistas com maus olhos dentro e fora das polícias. No interior das organizações policiais, os serviços de investigação e fiscalização do público interno tendem a ser apreendidos como partidários porque acredita-se que eles são mais utilizados como um poderoso instrumento de perseguição. Já para o público externo, eles costumam ser percebidos como ineficientes porque tenderiam a ser corporativos, burocratizados e tolerantes com os desvios de conduta e com as faltas administrativas dos policiais. A despeito (ou não) da existência e da gravidade de evidências que confirmem uma performance vingativa com policiais "limpos" ou uma postura complacente com policiais "sujos", os questionamentos e as desconfianças acerca da integridade e da eficiência dos instrumentos de controle interno são, por natureza, inevitáveis. Por conta disso, devem ser assimilados como um indicador da necessidade de um constante aperfeiçoamento nesta área da administração policial. Afinal, os expedientes internos de controle podem ser classificados como a "polícia da polícia" ou a "polícia que policia a si mesma". Talvez por isso, muitos especialistas julguem que seja quase impossível obter a transparência e a imparcialidade dos órgãos de investigação interna e fiscalização, e creditem uma esperança maior nos expedientes de controle externo. Todavia, é conveniente assinalar que os estudos contemporâneos de polícia não endossam esta perspectiva pessimista. Inversamente, eles dedicam aos instrumentos de controle interno um lugar fundamental e estratégico na redução dos crimes praticados por policiais e de suas faltas administrativas. Há algumas boas razões para isso. A primeira delas, reporta-se à própria eficiência dos instrumentos de controle externo. Para atingir os seus objetivos, os instrumentos de controle externo, sejam eles exclusivos para as polícias ou não, dependem concretamente do funcionamento competente dos órgãos de controle interno. A ausência de uma estrutura interna de controle atuante ou a debilidade de suas rotinas e procedimentos, compromete a capacidade real de resposta das agências externas de controle. E isto de tal forma que, naquelas polícias onde o sistema de investigação e fiscalização dos policiais é fraco, observa-se que os órgãos externos de controle não conseguem ir muito além do que tentar “dar alguma satisfação ao público” e procurar demonstrar que, pelo menos, “estão fazendo a sua parte”. Este é um tipo de problema previsível, uma vez que as agências de controle externo dependem, sobremaneira, da cooperação institucional e, em muitos casos, da “boa vontade” das organizações policiais para garantir o prosseguimento conseqüente das denúncias, suspeitas e reclamações efetuadas pelos cidadãos. Por serem, na prática, não só fornecedoras de matéria-prima para os órgãos de controle interno, mas também, e fundamentalmente, receptoras regulares dos produtos produzidos por eles, as agências de controle externo guardam uma relação de dependência considerável com os primeiros. Resulta daí que parte do seu êxito e de sua credibilidade junto aos cidadãos depende, tanto da sua própria capacidade de monitorar o trabalho realizado pelos órgãos internos da polícia, quanto da capacidade destes órgãos conseguirem realizar o seu trabalho com isenção, presteza e transparência. Se esta ponderação é pertinente, pode-se dizer que os órgãos de controle externo fortes devem contar com interlocutores dentro das polícias também fortalecidos e capazes de desempenhar, cada vez melhor, suas atribuições. Uma outra razão importante para se investir na reestruturação dos órgãos policiais de controle interno, se refere à óbvia constatação de que, por melhores que sejam os seus arranjos organizacionais e maiores os seus poderes, os instrumentos externos de controle tendem a produzir efeitos preventivos bastante limitados sobre o comportamento dos policiais. Por se caracterizarem como órgãos distintos e independentes das polícias, as agências externas de controle não têm poder executivo sobre as organizações que monitoram. Na realidade, elas pouco podem interferir no dia a dia das organizações policiais. Em outras palavras, os órgãos externos de controle afetam de forma muito indireta as doutrinas, normas e rotinas policiais, os procedimentos adotados pelos departamentos de polícia, os requisitos de ascensão profissional, a cultura organizacional, os programas de policiamento, as políticas de recrutamento, seleção e formação educacional, etc. Neste sentido, sua indispensável contribuição para a redução dos casos de violência e corrupção policiais tende a ser mais reativa do que pró-ativa. Isto significa dizer que os órgãos de controle externo são, em virtude de sua própria natureza, mais eficazes nas ações de repressão aos policiais identificados como “desviantes”, do que naquelas ações cotidianas de prevenção à transgressão, voltadas para toda a polícia. Inversamente, os instrumentos internos de controle, caracterizados institucionalmente como parte integrante da administração policial, podem e devem produzir efeitos preventivos e repressivos bem mais amplos dentro de suas organizações policiais. Em razão de sua vinculação institucional, eles podem atuar “antes” e “durante” a ocorrência” de um crime policial ou de uma indisciplina. Além de poder produzir respostas eficientes para os casos de violência e corrupção policiais denunciados, os instrumentos internos de controle podem contribuir, de uma forma mais direta, para a realização de mudanças comportamentais dentro das polícias. Para se conferir um tratamento pró-ativo ao problema do desvio de conduta policial, que não se limite a reagir aqueles episódios já ocorridos ou que estão acontecendo, e que foram denunciados seja para um órgão externo de controle, seja para um órgão interno da polícia, é importante contar com uma estrutura de controle e fiscalização integrada não só aos outros setores do departamento de polícia, mas também aos canais externos de controle existentes. Para tanto, algumas iniciativas mostram-se interessantes: § Para garantir a eficiência, a imparcialidade e a credibilidade interna e externa dos órgãos internos de controle, algumas organizações policiais têm optado por vincular o seu departamento de assuntos internos diretamente à chefia geral de polícia. A subordinação do órgão de controle interno ao nível máximo da linha de autoridade policial possibilita a redução de rivalidades com as chefias intermediárias, já que evidencia uma posição clara na cadeia de comando e controle da organização. Uma outra vantagem derivada da vinculação do órgão de controle interno à chefia geral, é a concessão de prestígio institucional e a demonstração para todo o corpo funcional, de que os funcionários que trabalham no controle interno desfrutam de todo apoio do chefe de polícia e, de que este tem um real interesse na eficiência e na integridade deste órgão. Naquelas polícias que ainda não contam com um sistema de controle interno profissional, criar uma força-tarefa vinculada à chefia, tem-se apresentado como um caminho conseqüente para o seu enraizamento institucional. Em uma área tão sensível e fundamental quanto a do controle interno, mostra-se importante que os policiais convidados a criar este setor sejam de extrema confiança do chefe de polícia e dos reformadores. § Levando-se em conta o caráter controverso expresso na sentença "polícia que policia a polícia", e, sobretudo, as suas implicações práticas em termos, por exemplo, do isolamento institucional sentido por seus executores, das estratégias corporativas e de auto-proteção desenvolvidas pelos policiais, etc., parece adequado mobilizar esforços para a profissionalização das atividades de controle interno. A possibilidade de profissionalização destas atividades inaugura-se com o reconhecimento institucional de que elas constituem um serviço especializado de polícia, assim como as equipes anti-distúrbios, anti-bombas, etc. E isto de tal forma que trabalhar no setor de assuntos internos passa a contar ponto para a ascensão profissional dos policiais. Pode-se perfeitamente imaginar que a chefia do setor de assuntos internos seja um dos percursos nobres para se chegar a postos mais elevados dentro da organização policial, incluindo a própria chefia geral de polícia. A consolidação desta alternativa de percurso institucional pressupõe a definição do perfil profissional de entrada que os candidatos policiais devem possuir para concorrer a uma vaga no departamento de assuntos internos. Alguns requisitos são óbvios. Vejamos alguns exemplos: 1) os candidatos devem ter pelo menos 1/3 do tempo de serviço dentro da polícia; 2) os candidatos podem ser patrulheiros ou investigadores, isto é podem ter saído de qualquer área de atuação policial; 3) os candidatos, além da experiência de policiamento, devem possuir experiências associadas à administração policial; 4) os candidatos devem ter sido aprovados nos cursos de especialização oferecidos pela estrutura de ensino policial; 5) os candidatos devem possuir uma ficha disciplinar exemplar; e 6) os candidatos devem ter uma conduta ética inquestionável. No sentido de garantir uma pluralidade na composição organizacional do departamento de assuntos internos, pode-se fazer uso dos recursos de recrutamento lateral para a contratação de profissionais civis qualificados. O contato entre policiais e outros profissionais tem-se apresentado como uma das alternativas férteis para abrir a polícia ao mundo externo e reduzir os efeitos indesejáveis do corporativismo e do isolamento institucional. § Um outro ponto fundamental para a reestruturação ou a criação do departamento de assuntos internos, é a sua distinção e autonomia em relação a outros setores da burocracia policial, sobretudo aqueles que também estão voltados para a produção do controle organizacional. Estamos nos referindo a necessária e saudável separação das atividades de investigação interna daquelas relativas, por exemplo, a supervisão das rotinas policiais. Em muitas organizações policiais, como é o caso de algumas polícias no Brasil, um único setor costuma agregar as atividades de correição, inteligência, contra-inteligência e supervisão operacional. Apesar de aparentar reduzir custos com pessoal, este tipo de arranjo institucional, além sofrer de hipertrofia de poderes e rotinas que desafia a própria cadeia de comando, costuma ser também bastante oneroso para as organizações policiais. Note-se que a multiplicidade de atribuições, em muitos casos díspares, revela um baixo grau de especialização da organização policial que compromete tanto a necessária racionalização e a conformidade de procedimentos, quanto a capacidade de gerar resultados conseqüentes. É preciso salientar que a assimilação por um único órgão de funções conflituosas, tende a desorganizar o próprio processo de trabalho. Isto se expressa de forma aguda quando se confunde, por exemplo, as atividades de correição com aquelas relativas à supervisão operacional. Apesar destas áreas aparecerem, à primeira vista, como restritivas ou como expedientes de controle para os policiais, as rotinas de supervisão cumprem propósitos distintos na organização policial e, por conta disso, geram resultados radicalmente diferentes. Contrariando as atividades de investigação interna e de correição cujo resultado último é a identificação e a punição de um policial, o indispensável trabalho cotidiano de supervisão lida de uma forma propositiva com o dia-a-dia da organização policial. Neste sentido, tem-se menos a busca e a investigação de condutas erradas, e mais uma rotina pró-ativa e pedagógica que visa auxiliar os policiais, no cumprimento de suas atividades diárias. Isto significa dizer que o trabalho de supervisão, principalmente aquele realizado pelos profissionais que estão na ponta da linha, produz controle menos por uma atuação repressiva e mais por uma intervenção preventiva, estimulando positivamente à ação policial. Face ao exposto, pode-se dizer que a confusão organizacional entre o trabalho de investigação interna e o de supervisão, não só compromete a capacidade da organização contar com a cooperação dos próprios policiais na identificação de desvios de conduta, como também inviabiliza o exercício profissional do controle e da fiscalização cotidiana dos serviços policiais. § Hoje, parece ser lugar comum constatar que parte do sucesso do controle interno pode ser creditada as estratégias informais realizadas pelos policiais durante o cumprimento de suas rotinas. Determinadas posturas cotidianas adotadas pelos policiais durante o trabalho, tais como um olhar de reprovação para o colega, a explicitação de uma advertência, a oferta um conselho, a revelação de uma suspeita, etc., costumam ter um impacto preventivo que não deve ser menosprezado. Até porque mesmo os melhores expedientes formais de controle interno são suscetíveis a falhas. É, pois, evidente que o desenvolvimento do auto-controle, da mútua vigilância, assim como a internalização da disciplina profissional, são aspectos importantes para qualquer profissão que desfrute de um alto grau de discricionariedade e que lide com níveis elevados de risco e incerteza. Também é fato que estes aspectos só tendem a prosperar naquelas organizações que possuem uma linha definida de comando e autoridade. Por esta razão, mostra-se indispensável definir e regulamentar, com objetividade e clareza, os níveis de responsabilização individual dos policiais no exercício de suas atribuições. A falta de uma estrutura interna de responsabilização e cobrança diretas das ações dos policiais, favorece a sedimentação de estratégias individuais e coletivas de ocultação das responsabilidades individuais. E isto é de tal forma grave que acaba por comprometer a devida apuração dos fatos e a justa punição dos policiais que cometeram alguma transgressão. | § A ausência de um sistema de comando e controle adequado à realidade da organização policial reforça e amplia as esferas de invisibilidade do trabalho policial, permitindo tanto a institucionalização de comandos paralelos orientados por laços pessoais de lealdade, quanto a estruturação de práticas informais e não legais constituídas pelo consentimento entre as chefias intermediárias e seus subordinados. § Para muitos especialistas, um dos caminhos para se tentar resolver vários problemas que geram a baixa eficiência dos órgãos de controle interno, seria criar uma carreira própria para função de “corregedor de polícia”. Acredita-se que com o estabelecimento de um concurso público para os cargos do departamento de assuntos internos, pode-se garantir estabilidade, proteção e autonomia aos profissionais selecionados. Apesar de interessante, a implantação desta proposta pode gerar efeitos indesejáveis. Dentre eles podemos destacar a capacidade extremamente limitada de renovação dos funcionários. É preciso considerar que um departamento de assuntos internos consome uma quantidade muito modesta de profissionais e, que estes, em função dos seus direitos trabalhistas, só irão deixar os seus cargos no momento da aposentadoria. Tal ordem de constrangimento faz com que as vagas e os concursos sejam esporádicos, e que um determinado grupo de profissionais possa permanecer durante décadas monopolizando um setor chave da polícia. É óbvio que este tipo de situação possibilita, ao longo do tempo, não só a criação de um verdadeiro "feudo" institucional suscetível a fabricação de clientelas , como também um tipo de independência excessiva e perigosa porque capaz de concentrar muito poder e, com isso, fragilizar toda a cadeia de comando e controle das polícias. Tendo em vista que o setor de assuntos internos incide sobre uma área crítica da administração policial, parece sensato que a gestão deste departamento deva ser regularmente renovada, através da definição prévia de períodos de permanência de seu corpo funcional. Trata-se aqui de introduzir expedientes que evitem a sedimentação de hábitos e práticas questionáveis e heterodoxas. |
V. Reestruturação do sistema de ensino policial.
É fato que as mudanças introduzidas em organizações de larga escala como as polícias, encontram-se inevitavelmente associadas a intervenções nos processos de formação, capacitação e reciclagem dos funcionários. Tanto a aquisição de uma inovação tecnológica, quanto a realização de uma simples mudança em uma norma operacional, exigem investimentos paralelos e simultâneos na requalitificação e treinamento de pessoal. Se podemos falar de um ponto comum entre as mais distintas reformas efetuadas nas polícias, este se reporta às ações no campo da formação profissional. Não é demais ressaltar que, nos últimos setenta anos, o movimento de transformação da condição policial de "ofício" para o status "profissão" foi acompanhado da criação de uma estrutura formal de ensino policial. Face a natureza dinâmica e mutável da realidade do trabalho policial, um dos itens mais fortes de um programa de reforma diz respeito às iniciativas no campo da educação. Pode-se dizer que este é um dos caminhos mais férteis para se promover mudanças profundas e cotidianas nas organizações, nos seus valores, no comportamento dos seus membros, etc. Muito se pode fazer no âmbito da formação profissional. Pode-se, por exemplo, combinar intervenções estruturais e conjunturais, ao mesmo tempo em que se trabalha com iniciativas de curto, médio e longo prazos. É evidente que todas as iniciativas desenvolvidas no campo da educação policial devem ter como pano de fundo a perspectiva da educação continuada e qualificada ao longo das carreiras policiais.
No que diz respeito à reestruturação ou mesmo a criação de uma estrutura de ensino policial, pode-se listar algumas iniciativas que tem sido adotadas em vários sistemas policiais com uma arquitetura pluralista e local. Como veremos, boa parte destas iniciativas contam com a ação integrada dos poderes central, regional e local. Vejamos:
§ Constituir uma comissão inter-ministerial composta pelos ministérios da educação e da Justiça ou interior que, sob o comando deste último, torne-se responsável pela formulação das diretrizes básicas do ensino policial, pela fiscalização das estruturas de ensino policial, etc. Seria oportuno que esta comissão desenvolvesse um programa de avaliação regular da qualidade sistema de ensino policial que incluísse alguns itens como 1) corpo docente, 2) corpo funcional, 3) os alunos, 4) as estruturas, instalações e equipamentos, etc. Deve-se iniciar, tão logo quanto possível, um trabalho de revisão curricular da formação policial no país, de forma a construir uma proposta de currículo mínimo que possa, respeitando as singularidades regionais, ser comum a todas as polícias.
§ A construção de um sistema de ensino policial nacional, composto de escolas federais, regionais e locais, deve promover a integração destas unidades através da definição de uma linha de subordinação e responsabilização que inclua todas as esferas de governo.
§ Criação pelo governo federal de centros de excelência para formação policial. Através destas instituições de ensino busca-se, por exemplo, 1) constituir e sedimentar uma cultura profissional comum a todas as organizações policiais; 2) reduzir os custos dos estados e municípios com a formação policial, melhorando a qualidade do ensino; 3) facilitar a integração e o intercâmbio entre as polícias locais; 4) aproximar as academias policiais das universidades e centros de pesquisa. Estes centros de referência devem também se ocupar de complementar a formação regular dos policiais, promover cursos especializados, desenvolver ferramentas pedagógicas de aprendizagem, produzir e publicar literatura especializada, desenvolver pesquisas aplicas, etc. A quantidade de centros e a sua localização, deve considerar o tamanho do país e da população, a quantidade de polícias locais, etc.
§ Possibilitar que as polícias locais de médio e pequeno porte possam, através de convênios entre os seus municípios, constituir institutos regionais e descentralizados de formação policial. Tal oportunidade possibilita a ampliação de receita e a oportunidade de oferta de ensino de melhor qualidade. Com esta agregação de esforços e recursos pode-se, por exemplo, implantar uma nova filosofia de treinamento de abordagem policial e uso de arma de fogo, através de centros de simulação que contam com cenários e pista de reação dinâmicas e mais realistas, que superam em muito a qualidade dos treinamentos convencionais realizados de forma estática nos stands de tiro. As estruturas educacionais inter-forças, montadas a partir de acordos formais entre as autoridades federais, estaduais e municipais, pressupõe tanto a integração dos investimentos, quanto o estabelecimento de uma coordenação conjunta mediada pelo ministério da justiça ou do interior.
§ Estimular a parceria das instituições de ensino policial com as universidades e centros de pesquisa regionais. Pode-se com esta iniciativa agregar competências, reduzir custos, democratizar o conhecimento científico, alterar os processo de socialização dos policiais com o convívio com o mundo civil, romper o isolamento social das polícias, atender demandas imediatas de treinamento e qualificação de larga escala, etc.
§ Garantir recursos financeiros próprios para as escolas policiais. Um dos grandes problemas das academias de polícia é a falta de autonomia orçamentária. A ausência de recursos exclusivos, faz com que as escolas de polícia não consigam implementar e dar continuidade a uma política educacional. Via de regra, elas trabalham na base do improviso e do voluntarismo. Boa parte das escolas de polícia no Brasil não possui um quadro docente profissional regular que atenda aos requisitos acadêmicos. Na pratica, estas escolas contam somente com "instrutores" policiais e com professores universitários que ministram algumas palestras gratuitas. Do mesmo modo, estas escolas de polícia sequer possuem uma biblioteca especializada e atual para os alunos policiais. É sabido também que muito do conhecimento é transmitido quase que exclusivamente por meio oral.
§ Possibilitar a autonomia administrativa para as escolas policiais, de forma a evitar a falta de continuidade das políticas educacionais e a interferência corporativa das chefias policiais sobre o processo de formação policial.
§ Desenvolver programas em parceria com a sociedade civil para ampliar o nível de instrução formal dos policiais da base organizacional. Em muitas polícias, uma boa parte dos policiais possuem apenas o ensino fundamental, o que compromete a capacidade de aprendizagem de conhecimentos mais especializados de polícia, a ascensão profissional e, principalmente, a sua auto-estima. Programas de elevação da educação formal de adultos realizados nos próprios locais de trabalho têm dado certo em várias polícias, particularmente no Rio de Janeiro, onde este trabalho tem sido realizado na Polícia Militar em parceria com a ONG Viva Rio e a Fundação Roberto Marinho pertencente a maior rede de televisão do país.
§ Desenvolver, em parceria com a sociedade civil, programas de qualificação profissional voltados para alfabetizar os policiais no mundo da informática. Hoje, a maior parte dos recursos tecnológicos disponíveis às polícias depende que os usuários dominem, pelo menos, os conhecimentos básicos de computação. É indispensável que o processo de informatização das rotinas policiais se faça acompanhar de um amplo programa de capacitação e atualização profissionais. Pode-se aqui, como em outras iniciativas de qualificação da mão de obra policial, buscar recursos federais do ministério do trabalho.
§ Para suprir as carências profissionais identificadas na rotina dos departamentos de polícia, deve-se, paralelo às intervenções estruturais, promover um cronograma de cursos rápidos e workshops temáticos que possam reciclar todos os policiais e conscientizá-los sobre o programa de reformas policiais. O estímulo para a participação nestas estratégias educacionais de sensibilização pode ser o pagamento de horas de trabalho extras.
§ Um ponto importante para consolidar uma política de formação profissional policial é associar todas as promoções da carreira policial aos ciclos de formação educacional existentes, de forma que as mudanças de função ou nível hierárquico tenham como pré-requisito a elevação do nível de formação profissional.
§ Uma das questões que preocupam os executivos de polícia e os reformadores, diz respeito ao tempo de formação inicial que os recrutas ou os candidatos a policiais devem receber na primeira etapa de suas vidas profissionais. Tão ou mais importante que a duração da primeira formação recebida pelos policiais é o modo como esta etapa se articula com as demais e, fundamentalmente, como os ciclos de formação profissional se articulam com as demandas dos departamentos de polícia. Na Inglaterra, por exemplo, a formação inicial dos policiais varia de dois a cinco meses, conforme a organização policial. Note-se que este tempo é considerado muito curto quando comparado com o padrão usual da Europa continental. Por outro lado, o sistema inglês é considerado um dos mais elaborados quando se considera a formação educacional permanente oferecida. Alguns pontos acerca da formação educacional inglesa merecem ser mencionados. O primeiro é que a formação educacional inglesa segue toda a carreira policial, e está divida em ciclos cuja alternância entre eles é preenchida por estágios práticos e tempo de serviço executado em algum setor da polícia. O segundo aspecto importante é que os ciclos educacionais condicionam todas as promoções previstas na carreira policial. Tal exigência, na prática, induz os profissionais de polícia a seguir os níveis de formação profissional oferecidos. O terceiro aspecto também interessante é que os policiais são motivados a ingressar nas universidades para continuar os seus estudos, posto que a formação superior recebida na escola de polícia possui equivalência com a titulação universitária inicial. Um quarto aspecto relevante é o ethos civil conferido à formação policial que facilita bastante a aproximação com a sociedade. Da breve apreciação de algumas características do sistema educacional inglês pode-se concluir que existem outras variáveis mais relevantes que a duração temporal dos ciclos de formação como, por exemplo, 1) a formulação de uma doutrina educacional compatível com as necessidades profissionais de uma polícia que atua em um cenário político democrático e contemporâneo; e 2) a existência de etapas sucessivas e coerentes de formação que sintonizadas com a complexidade do trabalho policial vão, gradativamente, ampliando e diversificando os conhecimentos e as habilidades necessárias para a execução das especialidades policiais.
Levando-se em conta que boa parte das polícias latinas ainda não possui uma estrutura de ensino que atenda às expectativas sociais e dos próprios profissionais de polícia, parece oportuno desenvolver ferramentas pedagógicas que permitam responder às carências de qualificação evidenciadas no desempenho das rotinas policiais. Estamos nos referindo ao desenvolvimento de expedientes de ensino à distância. A elaboração e a distribuição de manuais e cartilhas temáticas que contenham um suplemento de avaliação da aprendizagem do seu conteúdo, pode ser um recurso bastante útil para reciclar regularmente todos policiais da base, sobretudo aqueles que trabalham em regiões distantes. Da mesma forma, o desenvolvimento de programas rápidos e regulares de treinamento no próprio local de trabalho, pode tanto facilitar a uniformidade de procedimentos operacionais, quanto dirimir dúvidas acerca do “melhor modo” de executar um determinado serviço policial.
VI. Política de diversificação de recrutamento de pessoal nas polícias.
A implantação de uma política de diversificação de recrutamento, tem-se caracterizado como um dos procedimentos institucionais mais adotados para promover a desejada democratização das organizações policiais contemporâneas. Há boas razões para isto. Os estudos dedicados a compreender a natureza e os tipos de interação estabelecidos entre os policiais e os cidadãos, têm demonstrado que os comportamentos abusivos e desrespeitosos de parte a parte, a cristalização de preconceitos mútuos, a pouca legitimidade dos agentes da lei, etc., resultam, em boa medida, da imensa disparidade existente entre a composição social das organizações policiais e a diversidade sócio-cultural encontrada nas comunidades policiadas. É fato que, por diversas razões históricas e políticas, as polícias foram sendo conduzidas a um processo gradativo de afastamento da sociedade e de uma conseqüente descaracterização de sua identidade comunitária. E isto de uma tal forma que as polícias, a medida em que foram se tornando refratárias às conquistas sociais e distantes das transformações ocorridas no mercado da cidadania, foram também ficando cada vez mais isoladas, desacreditadas e, por sua vez, ineficientes. Certamente, os esforços atuais de re-fundação do "lugar da polícia" na vida democrática têm levado em conta a necessidade dimensionar, em novas bases, as relações entre polícia e sociedade. Um conjunto de iniciativas relacionadas à seleção de pessoal para as polícias caminham nesta direção. Vejamos algumas delas:
§ Política afirmativa de inclusão de mulheres. Muitos departamentos de polícia, além de universalizar o acesso a carreira policial, têm adotado um sistema de cotas para mulheres nos concursos públicos, de forma a poder garantir e ampliar a proporção de mulheres dentro da força policial. Alguns países chegaram a definir o percentual de mulheres policiais a ser alcançado a cada governo, e a estabelecer uma carreira policial única para homens e mulheres. Esta foi uma conquista importante já que um dos aspectos da tradição cultural das polícias é o "sexismo" e o chamado "machismo".
§ Política afirmativa de inclusão de minorias étnicas e sexuais. Muitos países, sobretudo aqueles que possuem uma pluralidade étnica e racial, têm, nos últimos vinte anos, procurado criar expedientes que garantam a ingresso nas polícias de seus integrantes. Foram implementadas vários esforços para facilitar o ingresso nas polícias de negros, descendentes de imigrantes, indígenas, homossexuais, etc. Dentre eles destacam-se as campanhas sistemáticas de sensibilização destas clientelas e o estabelecimento de cotas por postos policiais. No caso dos EUA, estas iniciativas demonstram hoje os seus frutos em relação à população afro-americana: a proporção atual de policiais negros está bem próxima do percentual de negros na população americana.
§ Recrutamento de civis. A contratação de "civis" pelos departamentos de polícia não só para exercer as atividades internas ou as atividades-meio da administração policial, mas também para participar dos programas comunitários, tem-se mostrado um expediente muito interessante pelas seguintes razões: 1) reforça a abertura da polícia para o mundo externo e possibilita uma renovação de valores; 2) libera mão de obra policial para as atividades propriamente policiais; 3) reduz as despesas com recursos humanos, já que os profissionais civis têm garantias trabalhistas e patamares salariais distintos dos policiais; 4) diversifica o quadro de pessoal porque possibilita o ingresso de outras profissões cujas habilitações técnicas são necessárias à administração da organização policial; 5) contribui para ampliar o grau de especialização dos serviços policiais.
§ Contração de estagiários. Uma das formas de se estabelecer um intercâmbio frutífero com as universidades e centros de pesquisa, é criar um programa de estágios para estudantes universitários nas organizações policiais. Se, por um lado, as áreas técnicas e administrativas da organização policial tendem a se beneficiar dos conhecimentos trazidos pelos estagiários, por outro, este tipo de iniciativa contribui para ampliar o interesse científico e acadêmico pelos assuntos policiais.
§ Serviço civil voluntário. Uma outra estratégia de incorporação de pessoal civil à organização policial é a seleção de cidadãos interessados em prestar serviços voluntários, por tempo parcial. Estes indivíduos podem ser recrutados nas próprias comunidades onde a polícia já possui algum programa especial ou pretende desenvolver projetos de orientação comunitária. O voluntários escolhidos por suas comunidades e avalizados pelo departamento de polícia, poderiam se dedicar àquelas atividades comunitárias que dispensam poder de polícia como organizar reuniões com as lideranças da comunidade, identificar as prioridades e demandas locais, divulgar as iniciativas da polícia, estabelecer contados com vítimas diretas e indiretas de crime, etc. A participação de civis nestas tarefas, além de ajudar a fortalecer os vínculos da policia com sua clientela, contribui para reduzir a sobrecarga do trabalho policial.
VII. Programa de monitoramento e avaliação de performance policial. Pode-se hoje dizer que a ausência de critérios objetivos e tecnicamente adequados de avaliação de performance, é uma das graves limitações existentes nas organizações policiais. Em verdade, a falta de um sistema confiável e realista de monitoramento e avaliação do trabalho policial tem comprometido a capacidade das polícias de justificar a sua estrutura, o seu efetivo, suas despesas, seus investimentos, seus resultados e, no limite, a sua própria pertinência. Face a dimensão complexa da produção da segurança pública e as cobranças impostas pela vida democrática, as estratégias tradicionais usualmente empregadas pelas polícias para se obter mais recursos e poderes tem redundado em fracassos retumbantes. Quase sempre alimentadoras do medo e da insegurança coletiva, as formas convencionais de pressão policial acabam gerando um grande desgaste político e, pior, acabam reforçando a descrença e desconfiança públicas. Mesmo que pareça óbvio, cabe salientar que qualquer organização é passível de ser avaliada. No caso específico das polícias, a implantação de um programa de avaliação de sua performance tende a possibilitar um significativo salto de qualidade nos seus relacionamentos com as autoridades governamentais, os políticos, os cidadãos, os meios de comunicação, etc. A adoção de indicadores de desempenho pelas polícias tem implicações práticas muito importantes, posto que eles constituem uma ferramenta útil para 1) orientar o planejamento; 2) apontar as questões críticas da administração policial; 3) identificar os problemas comunidades que merecem uma atenção especial; 4) orientar o desenvolvimento de critérios mais acurados de avaliação; 5) mapear as rotinas se quer manter, corrigir, reformular, incluir ou inovar; 6) motivar comportamentos policiais desejáveis; 7) demonstrar os níveis de eficácia e eficiência alcançados; 8) prestar contas ao governo e ao público; etc. Por conta disso, um programa de avaliação da performance policial, deve procurar caracterizar o que a polícia realmente está fazendo para atender sua missão ou destinação. Isto para poder melhor expressar os serviços policiais oferecidos. É evidente que tão importante quanto a Quantidade de serviços prestados, é a forma pela qual eles foram realizados. Neste sentido, os critérios de avaliação devem considerar não só os resultados quantitativos das atividades policiais, mas também os processos qualitativos que possibilitaram a produção destes resultados. Levando-se em conta a complexidade do trabalho policial, mostra-se mais prudente trabalhar com um conjunto diversificado de critérios que possam mensurar tanto o que a administração policial tem feito para atender as demandas por seus serviços, quanto o que a organização policial tem alcançado junto as comunidades. | |
VIII. Política de uso da força. Os constantes casos de violação das garantias individuais e coletivas praticadas por policiais, em particular o emprego de recursos desproporcionais e violentos na interação diária com os cidadãos, têm-se caracterizado tanto como um dos problemas gerenciais mais críticos enfrentados pelos gestores das polícias, quanto como a principal questão que mobiliza os mais distintos segmentos sociais em torno da necessidade de uma reforma estrutural das organizações policiais. Os estudos etnográficos que temos desenvolvido junto às polícias brasileiras sinalizam que os efeitos perversos da ação individual, capilarizada e cotidiana dos policiais não resultariam apenas da sobrevivência de concepções autoritárias acerca do papel da segurança pública e da função das organizações policiais. Resultariam, também, da ausência, no interior das polícias, de uma tradição reflexiva sobre o caráter central do uso da força nas atividades policiais e, por sua vez, das oportunidades de seu emprego como um recurso legal, legítimo, comedido, proporcional e provocado. Parece-nos evidente que esta lacuna tem prejudicado o processo mesmo de profissionalização das agências policiais, sobretudo no que se refere a construção de um acervo atualizado de normas, métodos e práticas úteis e validadas, que se mostrem capazes de dialogar com a diversidade e a complexidade dos eventos sobre os quais as polícias atuam. E isto é de tal maneira crítico para as polícias ostensivas que, além de apresentarem padrões expressivos de violação motivada dos direitos dos cidadãos, elas também possuem cifras significativas de violação não intencional. Este é o caso, por exemplo, dos inúmeros "acidentes de trabalho", sobretudo com uso da arma de fogo, que produzem um saldo preocupante de vitimizações de cidadãos e também dos próprios policiais. Não difícil constatar que a discussão sobre o emprego da força pelas polícias ainda constitui uma "novidade" na América Latina. Quase sempre tratamos esta questão de uma forma secundária, incipiente e em muitos casos impressionista. Salvo exceções, costumamos confundir o uso legal e legítimo da força com os impulsos violentos e amadores dos policiais. Por um lado, esta imprecisão têm comprometido a possibilidade de se formular uma política de uso da força que reflita os compromissos do estado democrático e as demandas cidadãs. Por outro, tem dificultado a elaboração de instrumentos profissionais de controle e avaliação que, de fato, considerem o que as polícias “realmente fazem” ou “podem fazer” à luz de sua missão e mandato. Em nossas conversas informais com os policiais de distintas polícias, têm ficado evidente a demanda destes atores por conhecimentos e ferramentas que contribuam para qualificar os processos de tomada de decisão policial, elaborar e respaldar as alternativas pacíficas de obediência às leis e, por fim, emprestar transparência e confiabilidade às interações com os cidadãos, tanto nas situações de baixo teor ofensivo quanto naquelas identificadas como de alto risco. Em razão do interesse manifesto dos policiais por questões relativas ao uso da força, apostamos que os investimentos realizados neste campo inaugurem um caminho frutífero e possível para que o respeito aos direitos humanos deixe de ser apenas um expediente retórico e decorativo e torne-se, de fato, uma prática construtiva enraizada nas atitudes policiais cotidianas. Nos últimos anos muitos departamentos de polícia tem emprestado uma atenção especial á problemática do uso da força, procurando desenhar políticas institucionais coerentes com os protocolos legais internacionais e nacionais. Estas políticas são traduzidas em normas objetivas que orientam a constante atualização dos métodos de abordagem policial. Uma parte destas normas, inspiradas no diploma da ONU que trata dos "Princípios Básicos sobre Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei" , ocupa-se de regulamentar o emprego da força letal. Vejamos o exemplo da polícia de Houston que, na década de 80, estabeleceu as seguintes regras: 1. "Os agentes de polícia não devem atirar, exceto para protegerem a si mesmos ou outra pessoa de morte iminente ou de grave ferimento físico. 2. Os agentes de polícia devem disparar suas armas de fogo somente quando, ao fazê-lo, não ponham em risco pessoas inocentes. 3. Os agentes de polícia não devem disparar suas armas de fogo para ameaçar ou subjugar pessoas cujas ações são lesivas à propriedade ou nocivas a si mesmas mas que não representem ameaça iminente de morte ou de sério dano físico ao policial ou a outras pessoas. 4. Os agentes de polícia não devem disparar suas armas de fogo para subjugar um suspeito em fuga que não represente ameaça imediata de morte ou de grave dano físico. 5. Os agentes de polícia não devem disparar suas armas de fogo num veículo em movimento a não ser que seja absolutamente necessário para proteger a vida do policial ou de outros cidadãos. 6. Um chefe que esteja no local pode autorizar os agentes de polícia a disparar suas armas para pôr fora de ação um veículo, somente se a ação continuada do veículo for uma ameaça direta à vida do policial ou de outrem. 7. Os agentes de polícia não devem disparar tiros de advertência. 8. Os agentes de polícia não devem sacar ou exibir suas armas de fogo, a não ser que haja uma ameaça ou uma causa provável para crer em ameaça iminente à vida." | § Uma das estratégias mais adotadas por vários administradores de polícia para definir o conjunto de regras básicas para o emprego da arma de fogo, tem sido envolver o departamento de polícia no debate, com a constituição de um grupo de trabalho dedicado a coletar, analisar e sistematizar as sugestões e críticas recebidas dos policiais. A partir de rodadas de discussão interna e do levantamento de documentações de outras polícias, o grupo de trabalho teria ainda a responsabilidade de apresentar uma proposta preliminar a ser discutida com o alto comando da organização. |
IX. Criação ou restruturação das agências e serviços de ciência forense.
Do mapeamento que realizamos na internet sobre a experiências internacionais no campo da ciência forense, consideramos, para fins de ilustração, mencionar os exemplos inglês, canadense e americano. Acreditamos que uma descrição sucinta destes exemplos possa sinalizar alguns pontos importantes no que se refere às oportunidades de reestruturação dos serviços forense:
FORENSIC SCIENCE SERVICE (FSS) NA INGLATERRA. No Reino Unido, o Serviço de Ciência Forense (Forensic Science Service - FSS) constitui a principal e maior agência pública prestadora de serviços periciais. Conforme relata sua Website, trata-se de um organismo nacional que opera em bases completamente comerciais, e está voltado primeiramente para beneficiar o sistema de justiça criminal da Inglaterra. Desfruta de uma reputação internacional como um líder na provisão de ciência forense, particularmente no uso da tecnologia do DNA e na interpretação de evidências científicas. Esta agência está diretamente vinculada à Home Office que coordena, supervisiona e audita todas as 53 organizações policiais do Reino Unido. O FSS é, portanto, um órgão executivo da Home Office, desde 1991, que fornece suporte de ciência forense para as polícias e outras agências públicas nacionais e internacionais, e que realiza consultorias, qualifica profissionais e desenvolve pesquisas. Para ofertar serviços periciais de alta qualidade, por exemplo, às polícias, o FSS possui 6 laboratórios operacionais espalhados pela Inglaterra e equipados com equipamentos de última geração e cientistas (e técnicos) altamente qualificados. O FSS consiste em um serviço nacional que tem a sua base central funcionando em Londres. Cabe salientar, que a maior parte de seus quadros é composta de civis compostos de pesquisadores doutores e técnicos capacitados nas mais distintas áreas periciais.
· O principal propósito do FSS é servir à administração da justiça, fornecendo principalmente suporte científico na investigação de crimes e na interpretação de evidências científicas úteis à corte/tribunal. Tal como é apresentado em seus objetivos, os serviços periciais devem ser feitos com qualidade, eficiência, efetividade e, principalmente, economia de custos.
· O padrão de excelência obtido em âmbito nacional possibilitou, a partir de 1999, que o FSS passasse a dispor de um fundo de recursos próprios. É importante mencionar que tal como ocorre com as outras agências públicas inglesas, em particular com as polícias inglesas, o FSS produz anualmente um relatório público de prestação de contas. Uma espécie de anuário estatístico que descreve desde a aplicação dos recursos, o volume de serviços prestados, as metas atingidas, etc. Estes relatórios estão disponíveis na Internet, na website do FSS.
· Faz parte da política “The value of public money” adotada pelo serviço público na Inglaterra, a transparência e o adequado emprego do dinheiro público. Nesse sentido, o FSS deve perseguir alguns objetivos: excelência a baixo custo, imparcialidade, autonomia, independência, integridade e confiabilidade científica na produção dos laudos.
· Ainda que independentes, os cientistas do FSS realizam um trabalho afinado com os policiais, sobretudo no que se reporta às perícias de local ou “scene crime”. Nessas atividades parece ser uma regra a cooperação estreita entre os cientistas forenses e os policiais.
· Um outro aspecto importante, é que o FSS cobre uma variedade expressiva de análises periciais que são não só úteis ao trabalho policial e jurídico criminal, como também necessários em casos civis e privados. A Website do FSS descreve de forma suscita ás capacidades acumuladas por esta agência.
· A estruturação do FSS como uma agência pública com um expediente comercial e, por conseguinte, competitivo, possibilita que ele busque também fontes de receita no mercado através de serviços prestados a órgãos particulares e outras agências públicas e privadas internacionais. Assim, além da demanda interna das agências de law enforcement, o FSS oferta serviços de qualificação, treinamento, assessoria, consultoria para as polícias inglesas, para as organizações de ciência forense e outras agências internacionais. Vale insistir: o FSS compete no mercado por clientes e excelência de serviços. Hoje ele é reconhecido como líder no mercado de serviços forense para as forças policiais na Inglaterra.
· Atualmente o FSS emprega cerca de 2000 pessoas, das quais 1200 são cientistas reconhecidos em seus campos de conhecimento. Nota-se aqui a extrema preocupação com a qualificação profissional do profissionais de perícia. Aliás, a Inglaterra possui Colleges especializados na produção de conhecimento científico forense, capazes de formar quadros de alta qualidade. O mercado para profissionais em ciência forense na Inglaterra é também extremamente atraente. Isso se reflete, por exemplo, no alto índice de elucidação de crimes obtidos pelas polícias inglesas.
· É importante chamar a atenção para o fato de que o sistema inglês admite outras agências menores públicas e privadas competindo no mercado pela realização de perícias. Perícias relacionadas às questões sanitárias e de meio ambiente, por exemplo, podem ser oferecidas por distintos institutos, incluindo laboratórios das universidades. Alguns departamentos policiais, através de convênio ou consórcio com outros departamentos de polícia, mantém os seus modestos laboratórios forense para dar conta das atividades periciais mais rotineiras. Assim, no modelo inglês há, portanto, a oportunidade de consórcios de forças policiais locais para a manutenção de laboratórios forense, assim como certas atividades realizadas pelos laboratórios das universidades. Por esta razão, muitos pesquisadores civis são contratados pelas forças policiais, incluindo aí o trabalho fotográfico e as atividades de coleta de impressões digitais.
· Mostra-se oportuno destacar que, no caso inglês, as atividades de perícia (criminal e médico-legal) e as atividades de identificação criminal e civil parecem ser realizadas por agências distintas e não necessariamente policiais. Tudo parece indicar que a parte relativa á identificação criminal, conta com o suporte científico, mas é efetuada principalmente pelas forças policiais. Já as atividades propriamente periciais são simultaneamente realizadas por uma agência pública nacional e por laboratórios forense menores pertencentes a organizações policiais menores ou à universidades e institutos civis.
· É também importante destacar que as atividades de ciência forense, face à exigência de um alto grau de especialização técnica e qualificação científica, estão logicamente mais próximas de instituições produtoras de ciência (Universidades, Colleges e laboratórios) do que das organizações policiais, ainda que os seus serviços voltem-se para o suporte à justiça criminal. Em outras palavras, merece registro a íntima aproximação dos serviços policiais (identificados como forense science) com o mundo científico. Certamente essa importante característica pode ajudar a compreender a ausência de monopólio das polícias, ou de uma polícia em relação às demais, no que concerne à produção de laudos criminais científicos.
FORENSIC SERVICE E CRIMINAL RECORDS NO CANADÁ. No Canadá, os principais e notórios serviços de ciência forense e de identificação criminal estão estruturados em dois departamentos distintos da Real Polícia Montada do Canadá (Royal Canadian Mounted Police RCMP-GRC). Trata-se, portanto, de programas de caráter nacional ofertados a todas as províncias canadenses. De acordo com as informações obtidas na website oficial da RCMP, os referidos departamentos são apresentados da seguinte forma:
· The Forensic Laboratory Services Directorate (FLSD) - O FLSD é parte integrante do programa de serviços nacionais prestados pela Polícia Montada. Os seus serviços estão disponíveis para todas as agências policiais canadenses, para os tribunais e outras agências governamentais.
· The Information and Identification Services Directorate (IISD) - O IISD pertence à estrutura de inteligência criminal da Polícia Montada. As atividades de identificação civil e criminal fazem parte de um setor desse departamento nacional intitulado CANADIAN CRIMINAL RECORDS INFORMATION SERVICES (CCRIS). É o CCRIS que gerencia a Central Depositária de Informações dos Registros Criminais, incluindo as informações relativas às impressões digitais dos cidadãos. Uma variedade de outros serviços relacionados aos registros criminais também é ofertada pelo CCRIS. Como exemplo vale citar os arquivos de crianças desaparecidas e a assistência técnica oferecida, nesse campo, a todas as agências policiais. A Website da RCMP não traz informações mais detalhadas sobre o CCRIS, exceto essas que aqui foram apresentadas. Evidentemente que a partir delas não se pode saber se os arranjos policiais locais possuem estruturas menores e complementares de produção dos serviços de identificação civil e criminal, tal como se pode inferir do sistema inglês. Entretanto, pelo fato do sistema policial canadense priorizar a localidade/comunidade, é bem provável que além do recurso do convênio com a Polícia Montada, os departamentos regionais e locais apresentem outras formas de suprir as suas necessidades em Termos de suporte em ciência forense.
No que concerne aos serviços forenses efetuados pela FLSD (Forensic Laboratory Services Directorate), outras informações interessantes estão disponibilizadas. Vejamos:
· Atualmente a FLSD possui 5 laboratórios forenses regionais (Vancouver, Edmonton, Regina, Winnipeg e Halifax) e 1 laboratório central sediado em Ottawa. Os laboratórios regionais possuem aproximadamente 300 profissionais lotados como cientistas forenses, técnicos forenses e pessoal administrativo.
· De acordo com as informações disponibilizadas pela Real Polícia Montada, a FLSD distingue-se de outros serviços forenses internacionais, por que ela incorpora em sua estrutura uma seção de apoio e suporte operacional disponível a todos os seus clientes. Esse grupo de suporte operacional é responsável, por exemplo, pela supervisão e fiscalização da qualidade dos recursos científicos utilizados nos laboratórios regionais. No intuito de produzir o estado-da-arte da ciência forense, suas obrigações também incluem: 1) Pesquisa e desenvolvimento; 2) treinamento; 3) Fiscalizar a qualidade da segurança; 4) monitorar e validar os procedimentos adotados; e 5) certificar a qualidade de todos os serviços prestados pelos laboratórios regionais.
· Um outro aspecto interessante da estrutura da Diretoria de Serviços de Laboratório Forense (FLSD), é a existência de um Centro de Informação Científica (Scientific Information Centre), localizado na sede da FLSD, em Otawa. Entre outras coisas, esse Centro possui uma biblioteca atualizada e, com isso, oferta serviços de consulta para os especialistas que trabalham nos laboratórios regionais e nos Serviços de Identificação, assim como para os policiais da RCMP, outros policiais e pesquisadores externos. Esse serviço de pesquisa à literatura customizada fornecida a todos os clientes da FLSD permite o acesso on-line a centenas databases multidiciplinares, técnicos e científicos.
· Note-se que faz parte da missão dos laboratórios forenses a manutenção do alto nível de excelência científica dos serviços prestados. A existência de um grupo voltado para a avaliação e fiscalização dos procedimentos adotados e, também, de um Centro de Informação Científica corroboram essa preocupação. E isto é de tal maneira levado a sério que a FLSD é, assim como os serviços forenses ingleses, integrante da International Society for Forensic Science (ISFH) .
· É importante salientar que os Laboratórios Forenses da Polícia Montada do Canadá empregam tanto policiais quanto membros civis que sejam especialistas e/ou técnicos que possuam as devidas qualificações profissionais e o tempo de experiência exigido para sua admissão.
· A enorme preocupação da FLSD com a alta qualificação dos profissionais que serão empregados nos seus laboratórios fica evidente, por exemplo, pelos níveis de exigência estabelecidos para os candidatos civis e/ou policiais. Uma vez fazendo parte do quadro de cientistas e técnicos dos laboratórios regionais, esses profissionais deverão ser reciclados e capacitados regularmente.
· Apesar da ausência de informações substantivas, pode-se deduzir que é bem provável que o sistema canadense de prestação de serviços periciais e de identificação, combine a existência de órgãos nacionais e regionais pertencentes a RCPM, com outros laboratórios periciais menores vinculados ás unidades policiais locais. Também é bem provável que outros serviços periciais relacionados á saúde pública, ao meio ambiente, aos alimentos sejam realizados por outros órgãos públicos não integrantes das polícias. Uma vez que os serviços periciais da Polícia Montada dirigem-se apenas à esfera governamental, é bastante plausível que outros laboratórios particulares existam para atender à demanda civil.
CIÊNCIA FORENSE NOS EUA . As atividades de ciência forense nos Estados Unidos parecem ser bastante diversificadas, compreendendo um conjunto de entidades públicas e privadas, policiais e civis, etc. Trata-se de um modelo misto e descentralizado capaz de atender à estrutura de segurança pública do país que conta com aproximadamente 20 mil departamentos de polícia independentes e com leis criminais estaduais. Não muito distante do que se pôde observar na Inglaterra, os Estados Unidos colocam-se na vanguarda da ciência forense, possuindo, por exemplo, estruturas universitárias capazes de colocar no mercado doutores e mestres altamente qualificados nos mais diversos ramos científicos que conformam as atividades periciais. O universo de produção e análise de laudos científicos encontra-se também aberto ao mercado, não configurando um monopólio seja das instituições públicas, seja de tal ou qual força policial. Neste sentido, o arranjo americano admite laboratórios nacionais, regionais e locais voltados para as atividades periciais. No intuito de ilustrar a diversidade das opções americanas no âmbito policial, serão mencionados aqui 3 exemplos: O Laboratório do FBI, o Laboratório do Condado de Dade e o Laboratório do Departamento de Polícia de Yonkers.
· FBI LABORATORY - O FBI laboratory constitui um dos mais amplos e diversificados laboratórios no mundo, sendo considerado o mais completo laboratório forense nacional. Ele realiza exames de evidência livre de encargos para as agências públicas federais, estaduais e para as forças policiais. Em 1981 a Academia do FBI, em Quântico, Virgínia, criou o Laboratory`s Forensic Science Research and Training Center, voltado para o desenvolvimento de novas tecnologias e métodos, e para a qualificação de seus especialistas e de profissionais de outras agências e países. Conforme discriminado na Website, o laboratório do FBI disponibiliza gratuitamente os seus serviços para:
1. Os escritórios do FBI e seus agentes;
2. Promotores, tribunais militares, outras agências federais que tratam de assuntos civis e criminais;
3. Todas as agências policiais estaduais, regionais e municipais no que concerne a assuntos criminais.
Ainda no que se refere à oferta de serviços, o Laboratório do FBI estabelece as seguintes restrições:
1. Não se realiza exames de evidências que já foram submetidas ao mesmo tipo de exame solicitado, exceto naqueles casos em um novo exame mostra-se indispensável;
2. Não se realiza exames que podem ser realizados de forma qualificada por laboratórios locais;
3. Não se realiza exames para agências públicas não federais cujo assunto é civil.
· MDPD CRIME LAB - O MDPD Crime Lab, como próprio nome já indica, pertence ao Departamento de Polícia Metropolitana de Miami-Dade. Para melhor situar o Crime Lab, é importante mencionar que ele é parte de um grande Departamento de Polícia. A área sob a responsabilidade do MDPD incorpora o município de Dade e mais 26 municipalidades, as quais estão incluídas as cidades de Miami e Miami Beach. Esse território corresponde a uma população de cerca de 2 milhões de pessoas. O MDPD Crime Lab apresenta um completo serviço pericial que, conforme a descrição, é capaz de atender à demanda de sua área de atuação. O laboratório tem equipamentos científicos de última geração e emprega 39 cientistas cujo nível educacional corresponde ao doutorado em ciências físicas e biológicas. A missão desse laboratório é principalmente fornecer suporte técnico e científico para a comunidade de law enforcement, ou melhor, para o sistema de justiça criminal regional.
· FORENSIC SCIENCE LABORATORY NEW YORK - Este laboratório pertence ao Yonkers Police Departament e fornece uma variedade de serviços periciais necessários à rotina policial. Trata-se de uma unidade de porte discreta especializada em análises simples e complexas de cenas de crime, incluindo fotografia forenses, videoteipe, interpretações de manchas de sangue, reconstruções de trajetórias, etc. Ocasionalmente os seus serviços são estendidos a outras jurisdições tais como as de responsabilidade dos promotores distritais da cidade de Nova York, a Polícia do Estado de New York, o Departamento de Polícia de Metro North, etc. Esse laboratório, assim como outros mais robustos, cumpre as exigências de qualidade na prestação dos seus serviços, como também é submetido regularmente ao processo de certificação e acreditação de suas atividades.
Do que foi possível avaliar, os departamentos de polícia americanos dispõem de autonomia inclusive para montar seus laboratórios forenses de forma individualizada ou em parceria com outras agências de law enforcement. Pode-se também concluir que as grandes forças policiais americanas como as de New York, Chicago, Los Angeles possuem seus serviços forenses. Todavia, tal possibilidade não exclui a oportunidade de que as mais distintas agências como, por exemplo, as universidades e centros de pesquisa possam prestar serviços periciais ora solicitados pela justiça criminal, ora para agências voltadas para o controle de alimentos, a saúde pública, o meio ambiente, etc.
No que concerne às atividades de identificação criminal, pode-se inferir que elas façam parte das estruturas de inteligência policial das polícias americanas. Hoje, boa parte das agências policiais americanas dispõem de softwares de administração das rotinas policiais e aplicativos associados voltados exclusivamente para as atividades de inteligência, na qual se incluem a consulta de cadastros atualizados de autores e suspeitos.
Parecem ser características indispensáveis das agências que prestam serviços periciais, a confiabilidade e a credibilidade dos laudos científicos realizados. Em termos de requisitos formais, isso poderá significar, por um lado, a garantia formal de autonomia, independência e neutralidade da agência pública ou privada prestadora de serviços forenses. Por outro, deverá implicar na construção e manutenção de um expressivo padrão de excelência técnico-científica dos profissionais lotados nestas instituições. Sob esse aspecto, cabe salientar que a concepção de uma estrutura de carreira secundada pelos requisitos universitários mostra-se muito oportuna.
Vê-se que não é necessário que os peritos ou cientistas forenses sejam "policiais", podendo eles serem civis com as devidas qualificações exigidas. Pode-se, por exemplo, pensar em uma estrutura que pressuponha uma carreira própria para técnicos, cientistas e pessoal administrativo. Tal possibilidade supõe uma indispensável distinção entre os profissionais que realizam apenas um trabalho pericial e aqueles que realizam serviços propriamente policiais e, que por isso, necessitam fazer uso do "poder de polícia", portar distintivo, arma de fogo, etc. Dito de outra forma, os profissionais cujo trabalho é técnico-científico, podem ficar dispensados dos poderes concedidos aos agentes da lei. É evidente que nada impede um policial, portador dos requisitos acadêmicos, de ingressar na carreira de cientista ou técnico forense, tal como ocorre, por exemplo, no Canadá. Apenas é preciso enfatizar que a carreira pericial é uma carreira própria em todas as suas especialidades, e está formalmente mais próxima da rotina dos centros de pesquisa e universidades, do que da rotina policial, ainda que esta última se beneficie da primeira.
[1] Texto escrito sob encomenda realizada pelo Centro de Estudos de Segurança Cidadã - CESC, Santiago, Chile, 2002.
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