domingo, 20 de julho de 2008

"Polícia brasileira tem história de repressão social" - Entrevista Ano 2001

http://www.comciencia.br/entrevistas/jacquelinemuniz.htm

Polícia brasileira tem história de repressão social

Na opinião de alguns estudiosos do tema segurança pública, as questões relativas à violência no Brasil podem ser compreendidas e analisadas não apenas através dos problemas econômico sociais, mas também a partir do contexto histórico e cultural do nosso país. Este mesmo grupo associa a pesquisa sobre segurança pública, a cidadania e as organizações policiais como ferramentas fundamentais que devem interagir para o surgimento de soluções inovadoras nesta área.

Jacqueline Muniz, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro, é uma das pessoas que defende esta forma de analisar e buscar soluções para a violência urbana. Antropóloga e cientista política, Jacqueline Muniz trabalhou como diretora geral de pesquisa na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro durante a gestão de Luiz Eduardo Soares, desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre segurança pública e participação civil no Movimento Viva Rio, no ISER (Instituto de Estudos da Religião) e como participante do Centro de Estudos Estratégicos da UFRJ. Nos últimos anos, tem ministrado palestras e cursos de pós-graduação ou técnicos para as Polícias Militares de diversos estados brasileiros. Abordando sua experiência na área de segurança pública, Jacqueline Muniz concedeu a seguinte entrevista para a revista Com Ciência:

Com Ciência -A que se atribui o problema da distância entre a polícia e a comunidade e o medo que os cidadãos têm da polícia? Jacqueline Muniz - Ao longo de quase 160 anos da história das organizações policiais no Brasil estas organizações estiveram voltadas para a proteção do Estado contra a sociedade. Em outras palavras, desde que foram criadas, até mais ou menos a década de 1970, elas foram, por força de lei, forçadas a abandonar o seu lugar de polícia em favor de um outro lugar, que é de instrumento de imposição da ordem vinda do Estado. O fazer polícia significando defender o Estado contra o cidadão é algo que está bastante claro na farta documentação histórica, legal e formal existente. Assim, o processo de afastamento da polícia com relação a sociedade se dá desde a fundação das organizações policiais. A idéia que se tinha, e que vigorou por um bom tempo, é que as organizações policias deveriam se proteger de uma sociedade insurreta, rebelde e isso poderia contaminá-la ou poluí-la. Não foi apenas o processo de militarização recente da segurança pública que afastou a polícia da comunidade, como se costuma dizer, mas a disciplinarização da sociedade, o esforço de uma lógica liberal autoritária, tanto em relação a ela, como em relação as organizações policiais. Isso se refletiu na crise identitária das organizações policias hoje, no Brasil contemporâneo da redemocratização. As organizações policiais, basicamente as ofensivas, foram por força da lei abandonando o lugar de polícia, das atividades cotidianas e foram se dedicar a atividade de força combatente.

Ao invés da ordem pública e ordem social ser algo constituído pela sociedade, algo legítimo e legal, ela foi constituída de forma impositiva, de cima para baixo. A história das polícias modernas e contemporâneas é muito clara, trata-se de um momento decisivo, que surge de um desafio: como produzir paz com paz, como construir alternativas pacíficas de obediência à lei num estado liberal, como administrar conflitos de natureza civil, e não bélica, no interior da vida em sociedade. O que está na base da ferramenta polícia é a conquista e ampliação dos direitos sociais, políticos e civis. Populações foram para as ruas para se opor à presença do exército nas ruas, e hoje ainda vemos atores ou segmentos defendendo de forma conservadora e imprudente a presença das forças combatentes na gestão e administração da segurança pública.

Com Ciência - Como a sra avalia a atuação da polícia brasileira no decorrer da nossa história? Jacqueline Muniz - Elas foram, ao longo de 160 anos, mais instrumentos militares do que propriamente organismos policiais Guardadas as devidas proporções e diferenças, o mesmo se deu com as polícias civis que foram prestar outros serviços ao Estado que não segurança pública. Ao longo da tradição brasileira se confundiu segurança pública com segurança interna e defesa nacional. Numa sociedade em que estas noções e conceitos estão confundidos, a segurança é assunto exclusivo e reservado do Estado, e não cabe e nem compete perceber o cidadão como um cliente desta polícia. O cliente dos mecanismos de regulação social se torna o próprio Estado. É evidente que isto criou este hiato histórico entre a polícia e a comunidade.

O que dá razão de ser da polícia e dá origem as organizações policiais modernas é uma premissa básica: "a polícia é o público e o público é a polícia". Contudo no caso brasileiro, as nossas organizações, apesar de serem bicentenárias, são apenas balzaquianas no que diz respeito à tentativa de serem polícias de verdade.

Esta confusão custa muito caro à sociedade brasileira, aos governantes e às organizações policiais que, hoje, quando abrem as portas para a sociedade a encontram mais complexa, com conflitos e dinâmicas diferenciadas daquelas vistas pela última vez em 1840. Os problemas têm magnitudes e complexidades distintas e isso é um desafio, em função do próprio mercado de demanda da cidadania. Só se pode falar de polícia em Estado de direito, pois no momento em que ele é suprimido, que se tem cidadania restritiva, o lugar de polícia fica comprometido. Porque o que difere polícia de exército e dos meios combatentes, é que ela é uma ferramenta civil que presta serviços civis à sua comunidade.

É como se a sociedade fosse composta por elementos suspeitos, que variam de acordo com o que é tido como suspeito em cada época, sejam eles capoeiras, negros alforriados, comunistas, desempregados ou bandidos. Ao invés dos conflitos serem um motor positivo de construção dos vínculos sociais e da sociabilidade, ele se torna algo a ser extirpado.

Esta é uma história de conflito, animosidade e preconceito, seja das organizações policiais em relação às suas comunidades, ou das comunidades em relação as suas polícias. Se, de um lado, os policias em suas organizações foram condicionados a se afastarem de suas comunidades de origem e a experimentar uma espécie de isolamento social, de outro lado, a sociedade foi socializada entendendo que a polícia "está do outro lado", era contra nós, era algo do Estado ou do governo, contra a sociedade.

Com Ciência - É possível reverter este quadro tendo uma causa histórica e cultural tão enraizada na sociedade brasileira,? Jacqueline Muniz - Com certeza é. Eu sou extremamente otimista e acho que do mesmo modo que as 53 polícias inglesas ou as 17 mil polícias americanas ao longo de sua história aprenderam a ser polícia, com seus erros e acertos, buscando essa interação com o principal produtor de segurança pública que é o cidadão, aquele que melhor e mais experimenta segurança e insegurança no seu dia-a-dia, isso pode funcionar para o Brasil também. Prescindir da participação do cidadão é restringir por excelência a eficácia, eficiência e efetividade da polícia. A razão da qualidade é a credibilidade e a confiança pública. É isso o que funda o lugar de polícia e a distingue de qualquer outro instrumento regulatório do Estado.

No nosso caso, é necessário que olhemos para a nossa experiência buscando alternativas conseqüentes e responsáveis de administração da segurança pública, onde a polícia tem um papel executivo e direto, mas não tem o papel principal, que é da comunidade. As crises de segurança pública quando se deram em outros países, como Alemanha, EUA e Canadá apresentaram um problema de mentalidade. Foram feitos, nestes locais, investimentos substantivos em capacitação profissional, alta tecnologia, melhorias salariais e condições de trabalho. Contudo, não se modificou a filosofia de ação e a concepção do que era segurança pública. Isso ampliou os gastos com o setor tornando-o oneroso e com baixos resultados.

O retorno à comunidade é uma estratégia de sobrevivência das organizações policiais na contemporaneidade. Viver em sociedade, onde o conflito é peça estruturante da vida comum, administrar conflitos no interior da vida social, pressupõe a presença da polícia como ator executivo, capaz de articular demandas diferenciadas entre as comunidades. Os países que tomamos como exemplo e citamos como referência viveram uma crise que não é diferente da que vivemos. Retornar à comunidade é retornar à base, porque a comunidade é a infra-estrutura pela qual a polícia atua. Desprezar a comunidade ou o cidadão como seu principal cliente, e o cotidiano e a realidade destas comunidades, é inviabilizar a própria ação conseqüente de polícia, seja em ações dissuasivas, repressivas ou preventivas. Não existe nenhuma ação de polícia que prescinda da participação da comunidade, isso é condição de eficiência, o que dá o salto de qualidade em termos de profissão e de segurança e redução do agravamento do temor.

Com Ciência - Em que medida a senhora acha que as pesquisas sobre violência podem ajudar a reverter esta crise? Jacqueline Muniz - Não se pode pensar na segurança pública, uma área sensível que se liga diretamente com as nossas expectativas sociais, com a nossa liberdade de ir e vir, com o direito à vida, e desenhar projetos ou programas na área de segurança pública sem diagnósticos tecnicamente orientados. Hoje, já existe um salto de qualidade no debate público da segurança, exatamente porque já se começou a reconhecer no debate público a existência de um tripé formado pelas idéias: quem produz a segurança pública é o cidadão, a comunidade; as agência públicas e civis prestadoras de serviços essenciais conformam a infra-estrutura da ação de polícia; e, em terceiro lugar, as organizações policiais e as universidades têm um lugar decisivo na formulação de diagnósticos, no desenvolvimento de ferramentas, na elaboração de pesquisas aplicadas que sejam capazes de iluminar caminhos, subsidiar o debate público ou a opinião pública e os tomadores de decisão. Não se pode pensar polícia e segurança pública dissociados de ciência. As pesquisas permitem a correção de rota, uma melhor identificação das demandas, o entendimento das singularidade e especificidade das realidades de segurança pública no Brasil. Elas contribuem para a transparência e integridade do sistema de segurança pública.

Com Ciencia - Como a questão salarial pode influir na questão da corrupção da polícia ou no desempenho policial? Jacqueline Muniz - No Brasil, não existem estudos conclusivos que demonstrem correlação direta entre corrupção e baixos salários. Das pesquisas e estudos que tenho notícia no campo da segurança pública, posso dizer que esta relação não é de causa e efeito, uma maneira simplificada que às vezes aparece na fala dos formadores de opinião e mesmo dos profissionais de polícia. Essas questões estão muito mais associadas ao universo da cultura organizacional das instituições e a ética profissional. O departamento de polícia de Nova Iorque, o primeiro departamento profissional de polícia dos EUA, foi ao longo de muitos anos considerado o departamento mais corrupto e violento, aquele sobre o qual se achava que não existia saída. Nas décadas de 60 e 70 este departamento vivenciou um conjunto de reformas que contou com o aumento progressivo do patamar salarial. Mas isso não implicou melhoria do serviço prestado, e muito menos modificações nos indicadores de violência, criminalidade e desordem pública. É evidente que os salários têm um peso importante, até porque antes de tudo o policial é um cidadão e trabalhador, discutir direitos humanos significa discuti-los dentro e fora da polícia. Mas pensar que aumentar salários na polícia reduz as oportunidades de comportamento violento e corrupto na polícia é uma verdade parcial. Este é apenas um discurso retórico importante do ponto de vista da militância, das atividades classistas dos policiais. É possível ter profissionais bem pagos, mas péssimos no exercício de sua profissão, em qualquer profissão. No caso brasileiro, o problema da corrupção é agravado pela falta de mecanismos de controle interno. Confunde-se mecanismos profissionais de controle da ação da polícia com instrumentos disciplinares. É importante desenvolver instrumentos de gestão que sejam capazes de iluminar o que a polícia faz no cotidiano. No Brasil, temos um desafio, pois não temos indicadores satisfatórios da eficiência e performance da polícia, temos apenas os indicadores de criminalidade por ela cometida.

Temos uma espécie de grande iceberg, em que o trabalho cotidiano tanto da polícia militar quanto civil, padecem de um alto grau de invisibilidade institucional e pública. Quanto maior é o grau de invisibilidade, maior é a desconfiança, menor é a credibilidade e menor é o controle. Temos que romper com duas tradições que vem formando a concepção de segurança pública, em particular das polícias no Brasil: uma percepção militarizada da segurança e da ordem pública e uma percepção penalista/punitiva da segurança pública. Essas duas formas de entendimento se misturam na prática, gerando a ocultação, colocando na clandestinidade e na ilegalidade a atividade de polícia. Hoje, se a polícia civil quiser trabalhar bem, com eficiência, vai ter que romper com a lei e com seus procedimentos internos, que não mais refletem nem os desafios internos que elas enfrentam, nem as demandas externas da sociedade. Para fazer um trabalho tecnicamente qualificado vai ter que rasgar os seus regulamentos disciplinares que não refletem o cotidiano e a realidade do trabalho polícia.

Não se pode dissociar o aumento salarial de um plano de carreira para o policial. O salário não dá retorno para a carreira policial apenas melhora qualidade de vida individual, mas não dá um salto qualitativo do ponto de vista das organizações. É preciso associar isso à critérios de meritocracia, formas de ascensão e a um processo educativo continuado.

Com Ciência- Qual o limite entre o uso legítimo da força e aquele que é considerado abusivo? Jacqueline Muniz- Este é um ponto crítico e quando se discute organização policial no Brasil deveria se discutir o projeto de força. Parte dos problemas que enfrentamos hoje com relação ao abuso da autoridade policial, e sua expressão última que é a brutalidade e a violência policial resultam da ausência de uma reflexão substantiva sobre o emprego qualificado e comedido da força. A polícia é justamente um meio de força comedida, que atua na legalidade e na legitimidade dadas pela conciliação na prática dos requisitos do consentimento público. Não se pode pensar polícia que não seja neste intervalo, senão não é polícia, é outra coisa qualquer que vigia, que bate, que oprime.

Não existe ação de polícia, seja ela investigatória, repressiva, preventiva ou dissuasória que prescinda do uso ou da expectativa do emprego da força comedida. A diferença entre o uso da força e a violência é que a força pressupõe superioridade e método, força significa respeito aos direitos humanos, é o que dá razão de ser ao Estado, o monopólio legal do uso da força que respalda a autoridade e o enraizamento desta autoridade legal, universal e legítima no cotidiano dos cidadãos. Para isso, se desenvolvem método, doutrinas e tecnologias que fazem com que a polícia seja um organismo mais qualificado que o cidadão comum para esta atuação.

O ato violento é universal no sentido perverso, porque todos nós podemos usar. Ele é amador, ilegal, ilegítimo, improdutivo. Nossa tradição é usar violência para conter violência, que é algo incompetente e desqualifica uma atividade fundamental da polícia que é a atividade repressiva qualificada. Existe lugar para as ações repressivas dentro do mundo democrático, este mundo não é sem lei, regras e instrumentos regulatórios. Contudo, eles estão subordinados a estes dois limites, legalidade e legitimidade. O uso comedido e qualificado da força qualifica e distingue as organizações policiais dos exércitos e outras formas combatentes. O problema do Brasil é que, infelizmente, não temos uma tradição de uso da força que está em qualquer atividade da polícia, quando um policial cumprimenta um cidadão é uso da força. Estamos acostumados a pensar no uso da força apenas no seu sentido mais trágico, que o irreversível, a morte ou uma lesão grave.

Parte destes abusos de autoridade e deste excesso, resulta de uma cultura institucional militarizante e de uma carência de método. Os manuais de instrução da polícia brasileira datam da década de 60 ou 70, quando nem todo mundo era cidadão. É evidente que temos aí sucessivos impasses. Pior que um policial mal informado e mal pago é um policial inseguro na tomada de decisão em tempo real, que é algo que singulariza a polícia. Nesse contexto, precisam ser claros os procedimentos legais e legítimos. É preciso avançar bastante no código do processo penal, porque o que está ali previsto é insuficiente para desenhar procedimentos e técnicas de abordagem sejam de alto ou baixo risco.

É por isso que as polícias brasileiras não conseguem ou têm dificuldade em implantar e sustentar programas reais e efetivos de policiamento comunitário. Ele pressupõe descentralização, autonomia decisória do profissional de ponta. Autonomia é proporcional ao grau de responsabilização, controle e monitoramento. Os mecanismos de controle são débeis porque eles não são profissionais. Se a doutrina de emprego de força não está em sintonia com a demanda da vida social e com as expectativas das demandas cidadãs, então ela sempre estará na contra mão, erra-se por antecipação. Isto faz com que qualquer policial lúcido e sensato opte por ser a polícia de depois e não do antes e do durante. Espera-se o fato ocorrer porque é mais seguro atuar depois que o crime ocorreu do que atuar na imprevisibilidade da ação delituosa, contravencional ou desordeira. É preciso ter uma filosofia clara do emprego da força. Não tendo isso o profissional vive permanentemente num dilema. Qualquer comandante de polícia e delgado sabe, no seu íntimo, que não se controla o policial, não porque este ele seja rebelde, corrupto ou violento, mas porque não se dispõe de instrumentos e mecanismos de controle, supervisão e monitoramento e de uma doutrina clara de uso de força.

Na opinião de alguns estudiosos do tema segurança pública, as questões relativas a violência no Brasil podem ser compreendidas e analisadas não apenas através dos problemas econômico sociais, mas também a partir do contexto histórico e cultural do nosso país. Este mesmo grupo associa a pesquisa sobre segurança pública, a cidadania e as organizações policiais como ferramentas fundamentais que devem interagir para o surgimento de soluções inovadoras nesta área.

Jacqueline Muniz, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) (http://www.ucam.edu.br/cesec) da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro, é uma das pessoas que defende esta forma de analisar e buscar soluções para a violência urbana. Antropóloga e cientista política, Jacqueline Muniz trabalhou como diretora geral de pesquisa na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro durante a gestão de Luís Eduardo Soares, desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre segurança pública e participação civil no Movimento Viva Rio, no ISER (Instituto de Estudos da Religião) e como participante do Centro de Estudos Estratégicos da UFRJ. Nos últimos anos, tem ministrado palestras e cursos de pós-graduação ou técnicos para as Polícias Militares de diversos estados brasileiros. Abordando sua experiência na área de segurança pública, Jacqueline Muniz concedeu a seguinte entrevista para a revista Com Ciência:

Com Ciência -A que se atribui o problema da distância entre a polícia e a comunidade e o medo que os cidadãos têm da polícia? Jacqueline Muniz - Ao longo de quase 160 anos da história das organizações policiais no Brasil estas organizações estiveram voltadas para a proteção do Estado contra a sociedade. Em outras palavras, desde que foram criadas, até mais ou menos a década de 1970, elas foram, por força de lei, forçadas a abandonar o seu lugar de polícia em favor de um outro lugar, que é de instrumento de imposição da ordem vinda do Estado. O fazer polícia significando defender o Estado contra o cidadão é algo que está bastante claro na farta documentação histórica, legal e formal existente. Assim, o processo de afastamento da polícia com relação a sociedade se dá desde a fundação das organizações policiais. A idéia que se tinha, e que vigorou por um bom tempo, é que as organizações policias deveriam se proteger de uma sociedade insurreta, rebelde e isso poderia contaminá-la ou poluí-la. Não foi apenas o processo de militarização recente da segurança pública que afastou a polícia da comunidade, como se costuma dizer, mas a disciplinarização da sociedade, o esforço de uma lógica liberal autoritária, tanto em relação a ela, como em relação as organizações policiais. Isso se refletiu na crise identitária das organizações policias hoje, no Brasil contemporâneo da redemocratização. As organizações policiais, basicamente as ofensivas, foram por força da lei abandonando o lugar de polícia, das atividades cotidianas e foram se dedicar a atividade de força combatente.

Ao invés da ordem pública e ordem social ser algo constituído pela sociedade, algo legítimo e legal, ela foi constituída de forma impositiva, de cima para baixo. A história das polícias modernas e contemporâneas é muito clara, trata-se de um momento decisivo, que surge de um desafio: como produzir paz com paz, como construir alternativas pacíficas de obediência à lei num estado liberal, como administrar conflitos de natureza civil, e não bélica, no interior da vida em sociedade. O que está na base da ferramenta polícia é a conquista e ampliação dos direitos sociais, políticos e civis. Populações foram para as ruas para se opor à presença do exército nas ruas, e hoje ainda vemos atores ou segmentos defendendo de forma conservadora e imprudente a presença das forças combatentes na gestão e administração da segurança pública.

Com Ciência - Como a sra avalia a atuação da polícia brasileira no decorrer da nossa história? Jacqueline Muniz - Elas foram, ao longo de 160 anos, mais instrumentos militares do que propriamente organismos policiais Guardadas as devidas proporções e diferenças, o mesmo se deu com as polícias civis que foram prestar outros serviços ao Estado que não segurança pública. Ao longo da tradição brasileira se confundiu segurança pública com segurança interna e defesa nacional. Numa sociedade em que estas noções e conceitos estão confundidos, a segurança é assunto exclusivo e reservado do Estado, e não cabe e nem compete perceber o cidadão como um cliente desta polícia. O cliente dos mecanismos de regulação social se torna o próprio Estado. É evidente que isto criou este hiato histórico entre a polícia e a comunidade.

O que dá razão de ser da polícia e dá origem as organizações policiais modernas é uma premissa básica: "a polícia é o público e o público é a polícia". Contudo no caso brasileiro, as nossas organizações, apesar de serem bicentenárias, são apenas balzaquianas no que diz respeito à tentativa de serem polícias de verdade.

Esta confusão custa muito caro à sociedade brasileira, aos governantes e às organizações policiais que, hoje, quando abrem as portas para a sociedade a encontram mais complexa, com conflitos e dinâmicas diferenciadas daquelas vistas pela última vez em 1840. Os problemas têm magnitudes e complexidades distintas e isso é um desafio, em função do próprio mercado de demanda da cidadania. Só se pode falar de polícia em Estado de direito, pois no momento em que ele é suprimido, que se tem cidadania restritiva, o lugar de polícia fica comprometido. Porque o que difere polícia de exército e dos meios combatentes, é que ela é uma ferramenta civil que presta serviços civis à sua comunidade.

É como se a sociedade fosse composta por elementos suspeitos, que variam de acordo com o que é tido como suspeito em cada época, sejam eles capoeiras, negros alforriados, comunistas, desempregados ou bandidos. Ao invés dos conflitos serem um motor positivo de construção dos vínculos sociais e da sociabilidade, ele se torna algo a ser extirpado.

Esta é uma história de conflito, animosidade e preconceito, seja das organizações policiais em relação às suas comunidades, ou das comunidades em relação as suas polícias. Se, de um lado, os policias em suas organizações foram condicionados a se afastarem de suas comunidades de origem e a experimentar uma espécie de isolamento social, de outro lado, a sociedade foi socializada entendendo que a polícia "está do outro lado", era contra nós, era algo do Estado ou do governo, contra a sociedade.

Com Ciência - É possível reverter este quadro tendo uma causa histórica e cultural tão enraizada na sociedade brasileira,? Jacqueline Muniz - Com certeza é. Eu sou extremamente otimista e acho que do mesmo modo que as 53 polícias inglesas ou as 17 mil polícias americanas ao longo de sua história aprenderam a ser polícia, com seus erros e acertos, buscando essa interação com o principal produtor de segurança pública que é o cidadão, aquele que melhor e mais experimenta segurança e insegurança no seu dia-a-dia, isso pode funcionar para o Brasil também. Prescindir da participação do cidadão é restringir por excelência a eficácia, eficiência e efetividade da polícia. A razão da qualidade é a credibilidade e a confiança pública. É isso o que funda o lugar de polícia e a distingue de qualquer outro instrumento regulatório do Estado.

No nosso caso, é necessário que olhemos para a nossa experiência buscando alternativas conseqüentes e responsáveis de administração da segurança pública, onde a polícia tem um papel executivo e direto, mas não tem o papel principal, que é da comunidade. As crises de segurança pública quando se deram em outros países, como Alemanha, EUA e Canadá apresentaram um problema de mentalidade. Foram feitos, nestes locais, investimentos substantivos em capacitação profissional, alta tecnologia, melhorias salariais e condições de trabalho. Contudo, não se modificou a filosofia de ação e a concepção do que era segurança pública. Isso ampliou os gastos com o setor tornando-o oneroso e com baixos resultados.

O retorno à comunidade é uma estratégia de sobrevivência das organizações policiais na contemporaneidade. Viver em sociedade, onde o conflito é peça estruturante da vida comum, administrar conflitos no interior da vida social, pressupõe a presença da polícia como ator executivo, capaz de articular demandas diferenciadas entre as comunidades. Os países que tomamos como exemplo e citamos como referência viveram uma crise que não é diferente da que vivemos. Retornar à comunidade é retornar à base, porque a comunidade é a infra-estrutura pela qual a polícia atua. Desprezar a comunidade ou o cidadão como seu principal cliente, e o cotidiano e a realidade destas comunidades, é inviabilizar a própria ação conseqüente de polícia, seja em ações dissuasivas, repressivas ou preventivas. Não existe nenhuma ação de polícia que prescinda da participação da comunidade, isso é condição de eficiência, o que dá o salto de qualidade em termos de profissão e de segurança e redução do agravamento do temor.

Com Ciência - Em que medida a senhora acha que as pesquisas sobre violência podem ajudar a reverter esta crise? Jacqueline Muniz - Não se pode pensar na segurança pública, uma área sensível que se liga diretamente com as nossas expectativas sociais, com a nossa liberdade de ir e vir, com o direito à vida, e desenhar projetos ou programas na área de segurança pública sem diagnósticos tecnicamente orientados. Hoje, já existe um salto de qualidade no debate público da segurança, exatamente porque já se começou a reconhecer no debate público a existência de um tripé formado pelas idéias: quem produz a segurança pública é o cidadão, a comunidade; as agência públicas e civis prestadoras de serviços essenciais conformam a infra-estrutura da ação de polícia; e, em terceiro lugar, as organizações policiais e as universidades têm um lugar decisivo na formulação de diagnósticos, no desenvolvimento de ferramentas, na elaboração de pesquisas aplicadas que sejam capazes de iluminar caminhos, subsidiar o debate público ou a opinião pública e os tomadores de decisão. Não se pode pensar polícia e segurança pública dissociados de ciência. As pesquisas permitem a correção de rota, uma melhor identificação das demandas, o entendimento das singularidade e especificidade das realidades de segurança pública no Brasil. Elas contribuem para a transparência e integridade do sistema de segurança pública.

Com Ciencia - Como a questão salarial pode influir na questão da corrupção da polícia ou no desempenho policial? Jacqueline Muniz - No Brasil, não existem estudos conclusivos que demonstrem correlação direta entre corrupção e baixos salários. Das pesquisas e estudos que tenho notícia no campo da segurança pública, posso dizer que esta relação não é de causa e efeito, uma maneira simplificada que às vezes aparece na fala dos formadores de opinião e mesmo dos profissionais de polícia. Essas questões estão muito mais associadas ao universo da cultura organizacional das instituições e a ética profissional. O departamento de polícia de Nova Iorque, o primeiro departamento profissional de polícia dos EUA, foi ao longo de muitos anos considerado o departamento mais corrupto e violento, aquele sobre o qual se achava que não existia saída. Nas décadas de 60 e 70 este departamento vivenciou um conjunto de reformas que contou com o aumento progressivo do patamar salarial. Mas isso não implicou melhoria do serviço prestado, e muito menos modificações nos indicadores de violência, criminalidade e desordem pública. É evidente que os salários têm um peso importante, até porque antes de tudo o policial é um cidadão e trabalhador, discutir direitos humanos significa discuti-los dentro e fora da polícia. Mas pensar que aumentar salários na polícia reduz as oportunidades de comportamento violento e corrupto na polícia é uma verdade parcial. Este é apenas um discurso retórico importante do ponto de vista da militância, das atividades classistas dos policiais. É possível ter profissionais bem pagos, mas péssimos no exercício de sua profissão, em qualquer profissão. No caso brasileiro, o problema da corrupção é agravado pela falta de mecanismos de controle interno. Confunde-se mecanismos profissionais de controle da ação da polícia com instrumentos disciplinares. É importante desenvolver instrumentos de gestão que sejam capazes de iluminar o que a polícia faz no cotidiano. No Brasil, temos um desafio, pois não temos indicadores satisfatórios da eficiência e performance da polícia, temos apenas os indicadores de criminalidade por ela cometida.

Temos uma espécie de grande iceberg, em que o trabalho cotidiano tanto da polícia militar quanto civil, padecem de um alto grau de invisibilidade institucional e pública. Quanto maior é o grau de invisibilidade, maior é a desconfiança, menor é a credibilidade e menor é o controle. Temos que romper com duas tradições que vem formando a concepção de segurança pública, em particular das polícias no Brasil: uma percepção militarizada da segurança e da ordem pública e uma percepção penalista/punitiva da segurança pública. Essas duas formas de entendimento se misturam na prática, gerando a ocultação, colocando na clandestinidade e na ilegalidade a atividade de polícia. Hoje, se a polícia civil quiser trabalhar bem, com eficiência, vai ter que romper com a lei e com seus procedimentos internos, que não mais refletem nem os desafios internos que elas enfrentam, nem as demandas externas da sociedade. Para fazer um trabalho tecnicamente qualificado vai ter que rasgar os seus regulamentos disciplinares que não refletem o cotidiano e a realidade do trabalho polícia.

Não se pode dissociar o aumento salarial de um plano de carreira para o policial. O salário não dá retorno para a carreira policial apenas melhora qualidade de vida individual, mas não dá um salto qualitativo do ponto de vista das organizações. É preciso associar isso à critérios de meritocracia, formas de ascensão e a um processo educativo continuado.

Com Ciência- Qual o limite entre o uso legítimo da força e aquele que é considerado abusivo? Jacqueline Muniz- Este é um ponto crítico e quando se discute organização policial no Brasil deveria se discutir o projeto de força. Parte dos problemas que enfrentamos hoje com relação ao abuso da autoridade policial, e sua expressão última que é a brutalidade e a violência policial resultam da ausência de uma reflexão substantiva sobre o emprego qualificado e comedido da força. A polícia é justamente um meio de força comedida, que atua na legalidade e na legitimidade dadas pela conciliação na prática dos requisitos do consentimento público. Não se pode pensar polícia que não seja neste intervalo, senão não é polícia, é outra coisa qualquer que vigia, que bate, que oprime.

Não existe ação de polícia, seja ela investigatória, repressiva, preventiva ou dissuasória que prescinda do uso ou da expectativa do emprego da força comedida. A diferença entre o uso da força e a violência é que a força pressupõe superioridade e método, força significa respeito aos direitos humanos, é o que dá razão de ser ao Estado, o monopólio legal do uso da força que respalda a autoridade e o enraizamento desta autoridade legal, universal e legítima no cotidiano dos cidadãos. Para isso, se desenvolvem método, doutrinas e tecnologias que fazem com que a polícia seja um organismo mais qualificado que o cidadão comum para esta atuação.

O ato violento é universal no sentido perverso, porque todos nós podemos usar. Ele é amador, ilegal, ilegítimo, improdutivo. Nossa tradição é usar violência para conter violência, que é algo incompetente e desqualifica uma atividade fundamental da polícia que é a atividade repressiva qualificada. Existe lugar para as ações repressivas dentro do mundo democrático, este mundo não é sem lei, regras e instrumentos regulatórios. Contudo, eles estão subordinados a estes dois limites, legalidade e legitimidade. O uso comedido e qualificado da força qualifica e distingue as organizações policiais dos exércitos e outras formas combatentes. O problema do Brasil é que, infelizmente, não temos uma tradição de uso da força que está em qualquer atividade da polícia, quando um policial cumprimenta um cidadão é uso da força. Estamos acostumados a pensar no uso da força apenas no seu sentido mais trágico, que o irreversível, a morte ou uma lesão grave.

Parte destes abusos de autoridade e deste excesso, resulta de uma cultura institucional militarizante e de uma carência de método. Os manuais de instrução da polícia brasileira datam da década de 60 ou 70, quando nem todo mundo era cidadão. É evidente que temos aí sucessivos impasses. Pior que um policial mal informado e mal pago é um policial inseguro na tomada de decisão em tempo real, que é algo que singulariza a polícia. Nesse contexto, precisam ser claros os procedimentos legais e legítimos. É preciso avançar bastante no código do processo penal, porque o que está ali previsto é insuficiente para desenhar procedimentos e técnicas de abordagem sejam de alto ou baixo risco.

É por isso que as polícias brasileiras não conseguem ou têm dificuldade em implantar e sustentar programas reais e efetivos de policiamento comunitário. Ele pressupõe descentralização, autonomia decisória do profissional de ponta. Autonomia é proporcional ao grau de responsabilização, controle e monitoramento. Os mecanismos de controle são débeis porque eles não são profissionais. Se a doutrina de emprego de força não está em sintonia com a demanda da vida social e com as expectativas das demandas cidadãs, então ela sempre estará na contra mão, erra-se por antecipação. Isto faz com que qualquer policial lúcido e sensato opte por ser a polícia de depois e não do antes e do durante. Espera-se o fato ocorrer porque é mais seguro atuar depois que o crime ocorreu do que atuar na imprevisibilidade da ação delituosa, contravencional ou desordeira. É preciso ter uma filosofia clara do emprego da força. Não tendo isso o profissional vive permanentemente num dilema. Qualquer comandante de polícia e delgado sabe, no seu íntimo, que não se controla o policial, não porque este ele seja rebelde, corrupto ou violento, mas porque não se dispõe de instrumentos e mecanismos de controle, supervisão e monitoramento e de uma doutrina clara de uso de força.

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