sexta-feira, 18 de julho de 2008

Uso de força e ostensividade na ação policial[*]

Jacqueline Muniz

Domício Proença Júnior

Eugenio Diniz

Março de 1999

É curioso que a percepção do problema do uso da força pela polícia e a discussão de sua propriedade no Brasil se dêem com base na ingenuidade perigosa que não distingue – ou não quer distinguir – o uso da violência (um impulso arbitrário, ilegal, ilegítimo e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo e idealmente profissional). Esta situação é agravada pela ausência de um acervo reflexivo cientificamente embasado e informado pela realidade comparativa com outros países, o que abre espaço para comportamentos militantes e preconceituosos[1].

De fato, as intervenções, tecnicamente corretas do ponto de vista da ação policial, têm sido lançadas à vala comum da “brutalidade policial” e erigidas em símbolo de uma mítica banalização da violência, que explicaria o atual estado da criminalidade em nossas cidades. O ônus desta indistinção é imenso para a sociedade, sobretudo para as organizações policiais, que se vêem na situação impossível de ter que tomar decisões em ambientes de incerteza e risco sem qualquer critério que as oriente quanto à propriedade das alternativas adotadas. Indo mais longe, este equívoco tem se materializado em falsas questões, onde se enxergam antinomias que a realidade evidencia como unidades.

Assim, erigem-se falsas contradições, como as que polarizam “polícia força versus polícia serviço”, ou, de forma ainda mais grave, “operacionalidade versus direitos humanos”, perdendo-se de vista a especificidade originária das polícias como organizações de força comedida, inteiramente voltadas para a “proteção social”. Vê-se como muito deste debate tem servido para mascarar a centralidade do respaldo pela força na realidade do trabalho de polícia e do provimento de ordem pública colocando essa discussão no âmbito do amadorismo.

Como resultado, evidencia-se um senso comum que considera a força como exclusivamente presente de forma episódica e pontual, ou seja, no seu extremo letal. Até porque são os episódios do emprego da arma de fogo, assim como os equivocados modelos repressivos que apresentam maior tangibilidade na perversa contabilidade da segurança pública. Voltarei a este ponto mais adiante. Por esta lógica, a força só se faria presente naqueles episódios propriamente repressivos como os “confrontos armados”, os crimes “violentos” em andamento, etc. De um lado, este tipo de enquadramento perde de vista um fato básico: no momento de interação com a população, a perspectiva do uso da força, se necessário, está posta por antecipação incluindo aí a sua própria iminência ou possibilidade. É, de fato, o que faz com que o cidadão “chame a polícia”. É porque o policial está legalmente autorizado ao uso da força que ele pode intervir abrindo possibilidades de resolução dos conflitos que vão desde a negociação até a imposição de formas e alternativas pacíficas de obediência.

De outro lado, este senso comum não percebe o quanto a possibilidade de compelir, se necessário, viabiliza a possibilidade mesma dos atendimentos assistenciais e auxiliares, chamados vulgarmente de tarefas residuais de polícia e que representam a maior parte do pronto emprego policial. Há momentos, exatamente nestas situações, em que o policial assume o papel de um coordenador que decide o que será feito, comanda as ações e determina os comportamentos. Este é o caso, por exemplo, de um socorro a vítimas de acidente de trânsito: parar o trânsito, cercar a área, afastar os transeuntes, chamar a ambulância, assegurar o seu acesso, lidar com parentes e vítimas, respaldar as decisões médicas dos atendentes, coordenar o apoio para um trânsito rápido até o hospital, e mesmo colaborar para a presteza do atendimento das vítimas. Tudo isso seria impossível sem a perspectiva de compelir, o que pressupõe, uma vez mais, a possibilidade do uso de força para obter obediência.

Nesse sentido, fica evidente a impropriedade de considerações que ambicionam, contraditoriamente, o provimento de ordem pública sem a possibilidade do recurso à força, ignorando o papel desta como uma ferramenta imprescindível de mediação entre conflitos de interesse. Ora, diante de uma realidade conflituosa, se nenhum dos lados dispõe da força, e nenhum dos lados está disposto a conceder, resta apenas a solução violenta que cabe enfatizar: uma solução arbitrária, ilegal, ilegítima e amadora.

Por outro lado, a falsa expectativa do especialista, do médico numa situação emergencial, por exemplo, ignora a presteza dependente da força que está dada previamente – afinal, chamou-se por socorro. De forma análoga, perde-se de vista o papel diretivo da autoridade, uma vez mais sustentado pela possibilidade de compelir, em algo tão simples quanto orientar o tráfego em um sinal quebrado. Assim se vê como a força que respalda a autoridade de polícia é inseparável de todas as suas ações, ainda que permaneça, é importante frisar, como potencial na maioria dos casos, incluindo aí a maioria das ocorrências propriamente criminais. Quando este falso bom senso contamina as próprias organizações policiais, a questão se reveste de uma dramaticidade ainda maior. Ao tomarem, de boa fé, a idéia de que o uso da força só se daria de forma episódica, tópica e extrema, na sua versão letal, os policiais acabam por excluir de suas técnicas um elemento central para a boa resolução de seu trabalho: o uso comedido da força. Por conta disso, a discussão sobre o uso de força é parte indissociável da reflexão sobre o ciclo completo abordagem policial – em seu sentido técnico, a norma ou guia de comportamento na relação entre o policial e uma dada circunstância. Quando se tenta estabelecer práticas de abordagem em que a força estaria excluída exceto em direta proporcionalidade a ameaça oferecida pelo oponente, retira-se da polícia toda iniciativa profissional de uso comedido e adequado da força principalmente no campo da prevenção e dissuasão. De fato, acaba por se remover das organizações policiais uma parte importante de sua superioridade de método diante das situações de desordem, conflito e ilícito, vulnerabilizando os policiais na razão direta da gravidade da ameaça enfrentada. Não é demais lembrar que os índices de vitimização policial, que inclui o famoso “tiro amigo”, têm sido extremamente elevados nas grandes cidades brasileiras.

Mas voltando a questão das falsas pressuposições quanto ao uso da força nos meios de força comedida ou policiais, nota-se que nas ocorrências que envolvem situações de prestação de auxílio ou assistência, esta inadequação procedimental é igualmente grave. Até porque, tratam-se de situações difusas de baixo poder ofensivo e cujos processos decisórios ou discricionários policiais estão confinados à invisibilidade seja para a corporação policial, seja para a opinião pública. Essa inadequação e ainda mais dramática quando o uso concreto da força adquire centralidade. Aqui a ambigüidade dos procedimentos multiplica as possibilidades de ação violenta, ou melhor, as oportunidades para ao uso amador, ilegítimo, ilegal da força.

Assim, ao contrário do que espera o falso bom senso, isto é mais grave ainda naquelas interações corriqueiras entre policiais e cidadãos – situações de baixa visibilidade e que não envolvem o emprego da arma de fogo. Normalmente inscritos no universo difuso e volátil dos conflitos e das desordens – cabe ressaltar que tratam-se de eventos que não encontram tradução na racionalidade jurídica -, esses episódios escondem o amplo uso inadequado da força. Geralmente, essas situações aparecem, nos registros de ocorrência, quando notificados, ora como “desacato à autoridade”, ora como “abuso de autoridade”.

É importante salientar que as organizações policiais ostensivas não podem prescindir de um enquadramento que permita ao agente de ponta, diante da situação concreta, articular todos os recursos de que dispõe de forma a poder preservar e sustentar a ordem pública. Muitas vezes, isto se perde quando se considera equivocadamente que qualquer uso de força consiste, a priori, em uma manifestação de violência policial. De fato, o que está em jogo é exatamente a capacidade de a organização dispor de um acervo de conhecimentos e técnicas que qualifiquem e orientem a ação do policial de ponta, permitindo-lhe aplicar a medida suficiente e comedida de força numa dada ocorrência singular. Percebe-se assim como a ausência de uma regulação formal do que sanciona ou não o uso de um determinado nível de força tende a levar a um emprego máximo de força. Normalmente, vários recursos estão disponíveis ao policial, e lhe permitem trazer à lembrança dos envolvidos numa dada situação o seu respaldo pela força até o seu emprego concreto. Pode-se perceber a presença desta possibilidade desde o momento da existência de polícia (e o risco de repressão), passando pelo chamado – ou ameaça de chamado – da polícia, até a chegada do policial fardado, incluindo sua aproximação, seu posicionamento físico em relação à situação, seus movimentos corporais, sua intervenção no tom de voz e na forma discursiva adequados, a iminência do uso e o uso de força física, do cassetete, da arma de fogo, da solicitação de reforço. Note-se que numa técnica de abordagem madura, não se trata de um gradiente nem obrigatório e nem inexorável, mas de uma palheta de alternativas que busca produzir obediência em sintonia com a dinâmica do evento em curso. A definição das diversas normas e procedimentos que uma dada força considera corretos para seu pessoal em suas relações com o público é uma das variáveis centrais quer de uma doutrina de policiamento quer da política de segurança de uma dada região.

Ao se tomar, portanto, a ação policial através de uma perspectiva que confunde iniciativas operacionais (ações de prevenção, tais como programas anti-drogas ou uma blitz rotineira; ações de repressão, como a resposta a um assalto a banco, por exemplo) com as necessidades táticas da abordagem, abre-se a porta para uma contaminação profunda do preparo dos policiais. De fato, percebe-se como acaba por se reificar mais uma instância em que a prescrição do comando será, necessariamente, contraditada pelas decisões dos policiais de ponta. A realidade cotidiana e complexa do trabalho ostensivo de polícia demonstra que a coisa é outra: Será que numa ação de prevenção, prescinde do uso de força? Será que numa ação de repressão, usa-se necessariamente arma de fogo?

Vê-se como a realidade do uso comedido de força pode determinar que o policial tenha que se defender a tiros contra uma ameaça durante um programa anti-drogas ou, simplesmente, durante uma blitz; ou que a simples chegada da polícia militar leve os assaltantes a se renderem. O correto reconhecimento de que o trabalho policial ostensivo, mesmo na sua vertente anti-criminal, não se reduz à repressão é um passo importante e correto. Agora, querer deduzir daí situações que correspondem necessariamente a uma forma de emprego de força é um grave equívoco que compromete não só o necessário profissionalismo das atividades policiais, como de resto as interações cotidianas e pervasivas com os cidadãos. Não é demais enfatizar que estas visões ingênuas e amadoras do componente da força não correspondem ao dia-a-dia das diversas atividades de polícia e muito menos encontram respaldo na literatura científica sobre polícia.

Um outro ponto importante e diretamente conectado á conceituação sobre o uso da força e sua centralidade nas ações de polícia e no provimento democrático e contemporâneo de ordem pública, reporta-se ao descompasso, ou melhor o gritante contraste entre ostensividade formal das ações policiais militares de ponta e a baixa visibilidade de maior parte dessas ações. Por um lado, a presença uniformizada e capilar dos PMs os faz uma presença palpável no dia-a-dia. Tanto na ocupação de seus postos quanto nas rondas, ou quanto nos momentos em que atendem às ocorrências e têm o direito de acionar suas sirenes, a PM se faz presente em nossa percepção. Assim, a tendência natural é imaginar que a esta ostensividade institucionalmente programada corresponderia um elevado grau de visibilidade no que diz respeito à natureza e resultados de suas ações. Por outro lado, porém, o falso bom senso predominante vincula as ações da PM exclusivamente ao combate ao crime.

Como as conseqüências e o impacto do policiamento ostensivo na atividade criminal são, em boa parte dos casos, não registráveis (como registrar um assalto abortado porque havia policiais próximos? Como registrar um homicídio que não ocorreu porque alguém gritou que a patrulha estava chegando?) e o trabalho que não é vinculado à atividade criminal não é percebido pela população e por parcela dos policiais como trabalho policial, a ênfase organizacional tende a ser concentrada nas estatísticas e registros de ações propriamente repressivas ao crime.

De fato, o que parece mais imediatamente perceptível no âmbito da segurança pública são aquelas ações que podem vir a ser objeto de ação legal, tais como os flagrantes, as prisões, as detenções, as apreensões etc. Com isso, obscurece-se o amplo espectro do trabalho ostensivo em favor das atividades reativas e repressivas, que, num ciclo vicioso, tendem a ser novamente reforçadas organizacionalmente. Desta forma, porém, perderam-se os mecanismos pelos quais se pudesse registrar a maior parte das atividades ostensivas de polícia. Como resultado, o provimento de ordem pública e o policiamento ostensivo passam a ser subvalorizados diante da contabilidade das ações repressivas e daquelas que constituem infração penal, com isso prejudicando o trabalho preventivo e subvertendo a destinação constitucional das polícias militares. Este não é um problema trivial, sobretudo quando a opinião pública e os tomadores de decisão cobram uma maior “produtividade” das organizações policiais, e ponderam os recursos a serem destinados a estas agências pelos resultados que elas deveriam produzir. Essa produtividade só pode ser medida em termos daquelas ações que produzem registros, o que leva a uma distorção evidente: se apenas se contabilizam, por exemplo, as prisões, induzem-se a comportamentos que podem ir desde desvirtuamentos da própria função de preservação da ordem pública (“deixa começar senão não conta ponto”) até o estímulo à produção espúria de resultados (“prende, mesmo que depois tenha que soltar”). A inexistência de instrumentos de mensuração adequados à complexa realidade do trabalho ostensivo deixa as PMs na desconfortável situação de, se atenderem bem ao seu trabalho, serem consideradas ociosas, improdutivas, onerosas e, no limite, desnecessárias. Daí deriva o drama, muito sentido pelos policiais que valorizam o papel preventivo e reconhecem a necessidade de a PM atender à diversidade dos chamados que lhe são feitos. A maior parte do trabalho policial formalmente ostensivo acaba sendo invisível para a sociedade, ao passo que eventuais excessos e abusos, atos violentos nas ações repressivas, repercutem enorme e negativamente por toda a sociedade. O uso de força (ameaça incluída), onipresente em toda ação policial, passa a ser discriminado como algo intrinsecamente maléfico. De fato, pode-se perceber como um único fato espetacular pode contaminar inclusive as organizações que não estavam envolvidas na situação concreta – os acontecimentos na Favela Naval, em São Paulo, mostrados na televisão, contribuíram para uma piora da imagem da PM de outros estados junto a seu público, sem que nenhuma delas estivesse envolvida. Assim, a dificuldade no uso adequado de força e a invisibilidade da maior parte do trabalho policial passam a ser as questões centrais pelas quais a discussão conseqüente e democrática da ação policial tem que se iniciar em nosso país.

[1] Normalmente a produção sobre o uso comedido da força, e os gradientes estratégicos e táticos do seu emprego reportam-se, em sua maioria, ao estudo das forças tarefas que refletem apenas realidades extraordinárias e excepcionais do trabalho policial. Os estudos sobre a atividade ostensiva ordinária e cotidiana de polícia, inscrita no ambiente contingente, volátil e incerto que conformam as dinâmicas da ordem pública nas ruas não tem sido ainda satisfatoriamente contemplado. Curiosamente este é o estado da arte de polícia ou das forças comedidas cujo balcão de atendimento é capilarizado, individualizado e ambulante, sendo, por excelência, o lugar concreto do indispensável exercício da discricionariedade e da autoexecutoriedade policial.

[*] Artigo publicado no periódico Conjuntura Política. Boletim de Análise - Departamento de Ciência Política da UFMG, BELO HORIZONTE,pp:22-26, 20 de abril de 1999.

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