quinta-feira, 17 de julho de 2008

Sobre Polícia e Politicagem [*]

Jacqueline Muniz Domício Proença Júnior

Agosto de 2007

A questão é política. Só compreendendo isso é que se pode ter esperança de controle das oportunidades de violação, venalidade e violência policiais. Porque o uso do “poder de polícia”, sua apropriação em poder da polícia ou dos policiais obedecem a dinâmicas que vão desde a governança até o policiamento na esquina.

Discutir o “poder de polícia” é questionar, alterar ou validar os poderes do Estado para a coerção legal e legítima. É assegurar que a polícia cumpra o seu mandato sem que ela sirva à tirania do governante, a opressão por policiais ou seja apropriada por grupos privados.

Não temos, no Brasil, expressão inequívoca do mandato policial. A Constituição (art.144) restringe-se a delimitar quase-monopólios do policiamento público entre corporações. O Código Tributário (art. 78, 1966) define poder de polícia de modo tão abrangente e abstrato que serviria a qualquer Estado, forma de governo, ou a qualquer coerção estatal “em razão de interesse público”.

O poder de polícia “acontece” nas ruas. O conteúdo técnico policial está entregue à “prática pela prática na prática” das trajetórias profissionais. Polícias e policiais constroem o seu fazer diante de referências legais frágeis, visões políticas fugazes e institucionalidade débil dos procedimentos operacionais, sob baixa visibilidade social.

Fala-se muito da remoção de “maçãs podres”. Fala-se pouco de porque as maçãs apodrecem. É que no barril há lugares, há relacionamentos, que convidam ao apodrecimento.

“Tirar polícia” é um aprendizado doloroso para um jovem policial, que vai desvelando a realidade brasileira: “a polícia tem vários patrões”. No início de carreira, aprende que é preciso “correr atrás” da alimentação, porque a polícia “tem cobertor curto” e não pode custear todas as refeições. Na zona de trabalho há que encontrar um doador de “quentinhas” para quem “está de serviço”. Esta cortesia pode incluir o cigarro e a cerveja, e mesmo agrados a um superior, um amigo, um familiar.

Aprende também que, para trabalhar, tem que atender a outras carências, ampliar a rede de colaboradores que ofertem passagens gratuitas em ônibus ou vans, pequenos consertos de mecânica da viatura ou do carro particular. Isso demanda deferência para quem “têm consideração” com o policial: uma presença mais freqüente, a rapidez de um “B.O.”, a “quebra de uma multa”, a solução de uma “questão na justiça”. Logo percebe que essa teia de relacionamentos abre um sem-número de oportunidades, mais expressivas quanto mais distantes da obrigação do trabalho policial, mais rentáveis quanto mais próximas de suas competências profissionais neste convívio com a “clientela de baixo”.

Ainda que não seja assim em outros países, fazer segurança privada é proibido aos policiais no Brasil, porque se entende ser um conflito de interesses com a missão pública. Contudo, o “direito adquirido” do “bico” é tolerado e, por vezes, tratado como uma política salarial informal e velada, um meio digno de buscar o sustento sem “cair na bandidagem”.

O jovem policial que “entra na segurança”, vai se dando conta que se enredou numa malha invisível de favores e favorecimentos que se estabelece e se expande. Quem “entra no bico” “deve muito e a todo mundo na polícia”: o colega que “arrumou a segurança”, o superior que acomoda o turno, “o colega que “tira plantão” no seu lugar. Torna-se refém e partícipe de um tráfico de influências. Vê-se compelido a respeitar o “código do silêncio”, a fazer vistas grossas diante de “desvios de conduta” mais graves que o “bico”.

O “bico” coloca o policial entre a convivência e a conivência com os abusos e apropriações do poder de polícia. Uma “convivência forçada” com práticas clandestinas e ilegais, que fomenta conivências mais ou menos envergonhadas com outras “irregularidades” como as “comissões” de jogos ilegais, os “acertos” na prisão de pessoas ou na apreensão de ilícitos. Ou como as “milícias”, ligas comunitárias de “autodefesa”, organizadas por policiais em favelas no Rio, que monopolizam recursos públicos de segurança e os redistribuem, mediante taxas, como arranjos privados de proteção.

Vê-se que as fronteiras entre o “bico” e outros negócios “mais irregulares” vão ficando mais difíceis de estabelecer, distinguir e sustentar do que se acreditava. Ilegalidades e licenciosidades privilegiadas vinculam, dentro e ao lado das polícias, patrões e clientes que convertem, de forma deliberada ou não, o poder de polícia em mercadoria: a “clientela do lado”.

É possível que o jovem policial comece a “confiar desconfiando” de seus próprios pares e dos cidadãos que policia. O receio de vir a ser envolvido, de estar com colegas errados na situação e hora erradas, o leva a tentar “ uma colocação” fora do policiamento ou da polícia. Para “virar peixe” é preciso ter um “Q.I. alto”, ter “Quem Indique” ou possa garantir o “desvio de (sua) função”. Há nomes, grupos e aparatos partidários dos que estiveram, estão ou podem estar em posição de mando ou condução dos pleitos policiais: a “clientela de cima”.

Constroem-se, assim, vínculos que mobilizam policiais para contribuir com o “caixa dois” de campanhas eleitorais. O transporte e a arrecadação irregular, em dinheiro, convidam a que isso seja feito por quem possui a “condição de autoridade” e tem trânsito com as clientelas do lado e a baixo. Esta é uma deferência valiosa: quem poderia melhor atuar como coletor de impostos informais que os investidos do poder de polícia?

O amadurecimento de um policial inclui a identificação de distintas redes de influências com os quais vai se deparando. Como agir? Como sobreviver as “carteiradas”? Fechar os olhos, resistir, aceitar, negociar? Decide-se olhando para baixo, para cima, para o lado.

“O que atrapalha é a política” é o desabafo policial que sintetiza este emaranhado de patrões, clientes e carteiradas, que sabotam os mecanismos interno e externo que deveriam controlar a polícia, ocultando ao limite suas práticas. O que sobra, então, da expectativa de controle?

Sobra um barril “contaminado pela politicagem”, com algumas “maçãs podres” a menos conforme a ocasião. Sobrevivem expedientes informais, heterodoxos e invisíveis de controle, abertos à convivência conivente, sujeitos à barganha entre “muitos patrões”. Todos ficam inseguros. O(a) cidadão(ã) sente-se inseguro(a) diante da sua polícia; a polícia insegura em sua ação; o(a) governante receoso das conseqüências de qualquer ação policial; os parlamentares, inermes em seu papel fiscalizador; o Judiciário, incapaz de avaliar o mérito da ação da polícia.

A (pro) atividade “operacional” pode soar invasiva e até “ingrata” com os que se revezam como clientes e patrões. Torna-se mais prudente ser a “polícia do (ou que chega) depois”. A “boa ocorrência policial” tende a ser a que “ninguém viu”, aquela que mútuas “considerações” são capazes de “acertar o resultado” construindo algum “saldo operacional” que “mostre serviço”.

Compreende-se o ceticismo policial frente aos “planos de segurança” dos governantes, o cinismo policial diante da busca de controle real da ação policial. Pois estabelecer rumos sem dar conta da “politicagem” faz suspeitar que isso seja só “para inglês ver”. A política pública faz-se grandiloqüente, buscando segurança na imprecisão do que se propõe a fazer, e oportunista, apostando em sucessos eventuais, reações salvacionistas ou adesões à “moda” do momento.

[*] Artigo publicado na Revista Carta Capital, 15 de agosto de 2007, ANO XIII, N0. 457, pp: 40-41.

Jacqueline Muniz é professora do Mestrado em Direito da UCAM. Domício Proença Jr. é professor da COPPE/UFRJ. São diretores científicos do IBCC.

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