Domício Proença Júnior
Agosto de 2006.
O que ocorre em São Paulo tem uma repercussão econômica crucial. Independentemente de suas causas, o precedente do uso do terror está em vigor. Uma São Paulo chantageável pelo crime compromete os valores e as regras que estruturam e reproduzem a vida em comum, torna incertas as trocas sociais, abala a viabilidade de empreendimentos, sabota investimentos e ameaça a economia nacional.
A Segurança Pública é condição imprescindível para a sustentação da ordem social. Garante a previsibilidade das interações sociais e, com isso, a estabilidade para a produção e distribuição da riqueza. Trata-se da infra-estrutura primeira das atividades econômicas. Aceitar instâncias de terror criminoso cristaliza uma percepção generalizada de ameaça, sentida como onipresente e temida como onipotente. Não ceder ao terror exige saber como enfrentá-lo.
Um dos grandes perigos do terror é a possibilidade do seu sucesso e permanência. Tudo depende de como se responde a ele. Existem rumos capazes de dar conta do terror no Estado Democrático de Direito, superiores em suas metas e métodos. Suas metas são as mais elevadas e perenes, subordinando e conformando as prioridades do presente ao respeito aos direitos humanos, à liberdade, à igualdade e à justiça. Seus métodos são superiores porque subordinados às metas, atentos para que meios não contradigam fins.
O primeiro passo é a tomada de responsabilidade pelo Governo do Estado, que se propõe e compromete com a composição dos recursos e da força do Estado Democrático de Direito. Isso se traduz na mobilização política da Assembléia Legislativa, das Prefeituras, Câmaras Municipais, Ministério Público, Judiciário, e, onde oportuno, da União. Depende de transparência, construída pela responsabilização política a cada passo, pela conseqüente prestação pública de contas, explicitando o calendário da produção das iniciativas que dêem resposta e previnam novos ataques.
Com transparência de propósitos e ações, sobretudo em situações de grave perturbação da ordem pública, pode-se mobilizar a participação cooperativa dos cidadãos na tarefa prioritária de atendimento as vítimas e o suporte da mídia no esclarecimento à população de medidas preventivas que estão ao seu alcance. É preciso que o governante torne claro quem são os responsáveis por tais iniciativas, dando-lhes missão e meios. Estas iniciativas devem incluir um relatório detalhado dos fatos; a articulação de um dispositivo emergencial de intervenção; a prioridade na ação policial legítima, legal, transparente e aberta a controles internos e externos na identificação, investigação e processo dos autores dos ataques. Importantes em si mesmas, são iniciativas que sustentam ainda a identificação de mecanismos de alarme capazes de dar resposta e idealmente de impedir novos ataques. Essa agenda contrapõe o caráter súbito, velado e imprevisível dos ataques aos passos deliberados, transparentes e intrinsecamente previsíveis do Estado Democrático de Direito sob o Império da Lei.
Há quem se impaciente e proponha que o Estado responda aterrorizando o terror, revidando um golpe com dois golpes. Propõe aplacar o clamor social através de espetáculos exemplaristas, justiceiros, ecoando e reforçando preconceitos e intolerâncias na Sociedade, prometendo segurança. Isso é um equívoco. Promete segurança no mesmo fôlego em que destrói a Segurança Pública ao tolerar a suspensão do Estado Democrático de Direito. Dá carta branca às ações violentas contra “os criminosos”, contra quem seja descrito assim por motivos preconceituosos ou oportunistas. Além de incapaz de produzir segurança, traz consigo as conseqüências nefastas da autorização e da legitimação da arbitrariedade. Tem-se, com isso, o pior dos mundos possíveis: um mundo sem rendição, imprevisível, sem garantias. Um mundo cujas regras do jogo não vão além do imediato. Um mundo no qual as violências e as violações são as moedas de troca. Um mundo de ruptura do pacto social, de interações instáveis e acordos provisórios que não resistem ao próximo medo, à próxima chantagem, à próxima onda de temor. Um mundo orientado pela desconfiança e risco generalizados, que inviabiliza solidariedades, alianças e contratos.
Seja pervertendo as forças públicas, seja açulando arranjos privados, este é o rumo da Proteção, em que a segurança é destituída da sua dimensão pública. Os recursos de proteção são desiguais e excludentes. Dependem da capacidade de acumulação de poder e armas pelos diferentes grupos sociais, operando pela lógica da intolerância e da discriminação. Proteger não é prover segurança. A base de seu funcionamento é a ameaça concreta e constante. Conduz à sujeição dos indivíduos, ao abandono das garantias individuais e coletivas. A lógica da proteção, incapaz de promover a segurança coletiva, introduz o medo como conselheiro, a violência como cotidiano e o terror como horizonte.
A Proteção só protege quem paga por ela e a ela se subordina. Ameaça a todos porque atua contra quem possa, de acordo com apetites de poder e interesses de ocasião, ser considerado “inimigo”, “perigoso”, ou “indesejável”, ao arrepio da Lei. Aceitar a Proteção é privatizar a segurança de maneira perversa, é abandonar a Segurança Pública. A promessa de excepcionalidade é falsa, porque a escolha pela Proteção faz corriqueiros métodos intrinsecamente antidemocráticos e potencialmente totalitários. Leva à beira do abismo da aceitação do domínio de pedaços de nossas cidades por “senhores da proteção”, acima e fora da lei, sejam agentes do Estado ou não. Essa é a ameaça da Proteção, maior que a do terror: legitimar a ação de grupos armados orientados por interesses privados ou projetos particulares de poder.
Jacqueline Muniz - Professora-Doutora da Universidade Cândido Mendes. Foi diretora da SENASP/MJ e Coordenadora de Segurança Pública e Justiça do Estado do Rio de Janeiro. É sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina.
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