terça-feira, 22 de julho de 2008

Os Direitos do Outros e Outros Direitos: Um Estudo sobre a negociação de conflitos na DEAMs/RJ

MUNIZ, Jacqueline . Os direitos dos outros e outros direitos: um estudo de caso sobre a negociação de conflitos nas DEAMs/RJ. In: Luiz Eduardo Soares. (Org.). Violência e Política no Rio de Janeiro. Ed.Relume & Dumará, 1996, pp: 125-164.

OS DIREITOS DOS OUTROS E OUTROS DIREITOS:

UM ESTUDO SOBRE A NEGOCIAÇÃO DE CONFLITOS NAS DEAMs/RJ[1]

Jacqueline Muniz Iuperj - 1994

A História de Qiu Ju

Numa pequena vila ao norte da China, Qiu Ju espera seu primeiro filho. E durante uma manhã de inverno, explode uma discussão entre Qinglai, seu marido, e Wang Shantag, o lider local:

Qinglai e o ancião Wang Shantag discordam quanto à utilização de uma pequena porção de terras e trocam ofensas. Wang, desmerecido como "reprodutor" - sua prole é constituída somente por mulheres - devolve a agressão "nos mesmos termos" chutanto os testículos de Qinglai.

Na aldeia todos concordam que ambos erraram, mas se espera do ancião, chefe da aldeia, maior discernimento e prudência. Como "não se faz isso com um homem", Qiu Ju considera excessiva a humilhação sofrida pelo marido. Ela quer um pedido de desculpas.

O casal ainda não tem filhos, mas Qiu Ju está nos últimos meses de gravidez. ( Na China, a lei determina que cada casal tenha apenas um filho. Entretanto, para os moradores da aldeia, mais importante do que seguir esta lei é ter um filho do sexo masculino.) Qiu Ju está preocupada: a possível vinda de um menino pode aumentar a inveja e o ressentimento de Wang. Será esta a sua única chance de engravidar? "Será que por causa desse chute seremos obrigados a respeitar o controle de natalidade?" Aumenta sua apreensão.

Após levar seu marido ao médico e atestar sua impossibilidade de trabalhar por algumas semanas, Qiu Ju, sempre acompanhada da cunhada adolescente, vai à presença do "juiz de paz" . Conhecedor da história da aldeia e de seus moradores, ele é o responsável pela manutenção da tradição, pela negociação dos pactos e dissipação dos rancores e desentendimentos. Ele reconhece que Wang abusou na punição imposta a Qinglai e propõe como um castigo justo o pagamento de uma multa de $ 200,00.

Qiu Ju, contudo, se satisfaria apenas com um pedido de desculpas. O juiz de paz vai pessoalmente conversar com Wang (este jamais é chamado a "depor") e diz tê-lo convencido. Mas, quando a protagonista vai receber o ressarcimento na casa do ancião, não o encontra arrependido: jogando as vinte notas de $10,00 no chão, ele quer vê-la humilhar-se vinte vezes diante dele. Qiu Ju não aceita a humilhação e declara guerra a Wang Shantag.

Desde então, o juiz de paz tenta, de diversas maneiras, encerrar a discórdia. Mas Qiu Ju está irredutível. Se na aldeia não há quem possa obrigar o ancião a se desculpar, o jeito é ir até a cidade. O caminho coberto de neve, a viagem dispendiosa, o medo da cidade grande não são suficientes para dissuadi-la. Nem mesmo os comentários jocosos de que seu marido virou "pau mandado", só fazendo o que ela quer, impedem Qiu Ju de buscar o seu intento. Qinglai tenta convencê-la a desistir: ele está quase bom e já foi recebido pelo ancião, tendo comido em sua casa. Mas, sem as desculpas, Qiu Ju não se dá por satisfeita. A batalha continua.

Idas e vindas, advogados, juízes, toda sorte de instâncias burocráticas. Tudo o que Qiu Ju consegue é um acréscimo de $50,00 à multa. Resta-lhe recorrer ao Tribunal do Povo. Ela o faz.

Chega o Ano Novo e com ele o filho - um menino - de Qiu Ju. O parto, no entanto, complica-se. O marido recorre ao ancião que, a princípio, se mostra resistente - "por que vocês não chamam o tribunal?" - mas acaba por socorrê-la.

O nascimento do desejado menino celebra um novo momento, o tempo do acordo. Se não fosse a ajuda de Wang, Qiu Ju sabe que teria morrido junto com a criança. Por isso, o ancião é o convidado de honra na comemoração do primeiro mês de vida de seu filho.

A solução privada do desentendimento, no entanto, é ignorada pelo mundo jurídico exterior. Os representantes do Tribunal do Povo haviam constatado que as dores que Qinglai sentia no peito eram consequência de uma costela fraturada. O que o "juiz de paz" identificara como um prenúncio "do rancor que oprime o peito" era, para o Tribunal, evidência suficiente para autorizar a prisão de Wang.

Em vez de ir à festa comemorar a reconciliação, o ancião é levado para a cadeia. Qiu Ju corre, tentando impedi-los. Tarde demais.

O Filme "A História de Qiu Ju", do diretor Zhang Yimou, com roteiro de Liu Heng, nos leva a acompanhar a longa peregrinação de uma aldeã chinesa por uma enorme rede de instâncias burocráticas, no intuito de resolver um caso de desrespeito aos padrões tradicionais de conduta, reguladores da vida comunitária em seu pequeno povoado.

Trata-se de uma fábula moderna sobre a incansável paciência chinesa. Sua narrativa lenta, linear, reforça a sensação de desconforto vivenciada pela protagonista em relação ao modo pelo qual sua "queixa" vai sendo processada, ou melhor, reinterpretada segundo a lógica institucional das diversas agências oficiais acionadas pela protagonista.

Qiu Ju insiste em querer apenas um pedido de desculpas. Entretanto, a transferência do caso para o mundo jurídico formal parece distanciá-la ainda mais de sua solicitação original. A legitimidade de sua demanda não encontra expressão dentro dos limites legais da justiça. Ao invés da desejada retratação lhe são oferecidas outras soluções.

O descompasso entre a expectativa de nossa heroína e as respostas jurídicas possíveis, vai sendo ampliado à medida que transcorre a narrativa. A reivindicação convertida em "denúncia pública" se autonomiza e prossegue seu curso institucional a despeito da reclamante: o recuo ao mundo informal não é capaz de fazer cessar a engrenagem judiciária. Estranha ao mundo exterior da legalidade, a resolução privada do conflito é ignorada. O caminho oficial que vai das multas à prisão não se deixa sensibilizar por um pedido de desculpas, apenas. Tarde demais!

***

O dilema apresentado pela "História de Qiu Ju" muito se aproxima das histórias que acompanhei nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher - DEAMs, em Caxias e Niterói, no Rio de Janeiro[2]. Durante o período em que estive no campo pude constatar que parte significativa das solicitações que chegavam à Delegacia - agência estatal sem poder judicante - parecia requerer soluções distintas daquelas oferecidas pela lógica-em-uso do mundo jurídico formal. Mesmo em alguns casos que diziam respeito à prática objetiva de ilícitos penais, podia-se notar que a demanda das reclamantes não requeria o processamento efetivo da lei. Este é o caso do drama de Dona Fátima[3]:

AS CINCO LATAS DE LEITE

Dona Fátima é uma jovem senhora de 18 anos, solteira, preta, que precisa dar sustento para a sua filhinha de 1 ano e 2 meses. Analfabeta, ela não tem medo de trabalho e ganha a vida como Camelô no centro de Caxias. Além de trabalhadora, Dona Fátima é crente e freqüenta a Universal do Reino de Deus. Conta que foi na Igreja do Bispo Macedo que ela encontrou resposta para o seu problema de cabeça: Dona Fátima, mesmo doente dos nervos, tem muita disposição para o serviço e luta com dificuldade para criar sua filha sozinha.

Tudo começou porque, na madrugada do dia da queixa, Dona Fátima foi até a casa de sua irmã pedir para que ela tomasse conta de sua filha. Vicente, muito embriagado, não concordou com o pedido da cunhada. Pronto, estava armada a confusão: Vicente gritando partiu para cima de Dona Fátima com uma faca na mão. Dona Fátima correu, sua irmã tentou separar, mas não houve jeito: "ele cortou um pedaço da minha orelha com a faca".

Dona Fátima conseguiu fugir e foi atendida no Posto de Saúde da redondeza. O médico que realizou os primeiros socorros sugeriu que ela procurasse um hospital e a "Delegacia da Mulher". Dona Fátima, então, esperou o dia clarear e foi tomar as devidas providências.

Na DEAM, ela contou que seu cunhado, apesar de trabalhar também como camelô, não gosta muito de serviço. Sr. Vicente tem 24 anos, é preto, limpo na polícia e, segundo Dona Fátima, a religião dele é a cachaça. Além de perdido pelo vício, seu cunhado tem problemas de cabeça e sofre perturbações espirituais que fazem com que ele tenha um comportamento muito agressivo.

A queixa da parte ofendida foi tipificada como ameaça e lesão corporal gravíssima pela detetive de plantão e seguiu o curso oficial. Afinal, as marcas no corpo e o sangue confirmavam que a ação delituosa tinha materialidade. Imediatamente foram efetuados o Registro de Ocorrência, a guia de encaminhamento ao Instituto Médico Legal, o "convite" para o agressor e a abertura de inquérito.

Entretanto, Dona Fátima insistia em desconsiderar as medidas legais necessárias. Ela não queria entrar na justiça e nem "prender ele". Sob os olhares perplexos das policiais e das pesquisadoras ali presentes, Dona Fátima, com a roupa ainda manchada de sangue e o rosto parcialmente encoberto pelas ataduras, afirmava que "isso não vai resolver o meu problema".

De nada adiantou explicar-lhe que o fato ocorrido consistia em crime de ação penal pública. Dona Fátima, irredutível, não queria mais confusão. Afinal, ela procurou a polícia porque espera que a Delegacia da Mulher apresente outra solução : "obrigar o Vicente a pagar os dias que eu não posso trabalhar (eu não posso pegar poeira na orelha) e dar cinco latas de leite para minha filha".

A maior parte das queixantes procura as DEAMs mas não quer "fazer mal". Assim, "saber dos meus direitos", "dar um jeito nele", "chamar para conversar", "me dar uma ajuda nas despesas", "pedir orientação", "ter uma chance", "firmar a palavra na frente da autoridade", "dar um susto", "curar o vício da bebida", "fazer ele sair de casa", "devolver a minha geladeira", etc, aparecem nas falas das informantes como respostas mais imediatas e eficazes do que uma possível execução judicial.

Na verdade, para um conjunto expressivo da clientela atendida nestas Delegacias, a justiça oficial - com suas diversas instâncias e linguagem altamente técnica e especializada - apresenta-se como uma realidade distante, inacessível e até mesmo ininteligível. "Entrar na justiça" é algo ambíguo, misterioso porque, no limite, "você tem que estar muito certa do que você vai fazer, porque pode sobrar para todo mundo". Ora desconhecido, ora imprevisível, o mundo jurídico "pode prejudicar" pois nunca "se sabe direito como é que isso termina".

Indiferentes aos rigores conceituais, as mulheres entrevistadas[4] nas DEAMs fazem uso da palavra "justiça", ou melhor, da expressão "fazer justiça" como uma espécie de moeda ordinária, prática cujo cálculo da equivalência se realiza através de um jogo de compensações morais. A "Justiça" é também uma expectativa que pode se concretizar na "providência divina", "nas coisas do destino", no "jeito correto de levar a vida", "no merecimento pela obrigação cumprida" e , às vezes, na própria polícia.

É curioso notar que as agências policiais são objetos com o sistema judicial, destes sentimentos de desconfiança. Entretanto, elas são também reconhecidas como o espaço público disponível para a resolução de conflitos. O arbitramento extra-oficial convive, ao mesmo tempo que destoa das práticas discricionárias da polícia, tradicionalmente exercidas contra a clientela que solicita os seus serviços. No exercício "ilegal" de negociação de litígios, a polícia, ao contrário do que ocorre nas suas ações repressivas, conta com a cumplicidade voluntária dos demandantes[5].

De fato, os sentimentos de desconfiança e incerteza em relação à justiça não constituem um fenômeno recente na realidade brasileira[6]. Sidney Chaloub, em seu estudo sobre as ruas no Rio do Janeiro, no início do século XX, revela que "o sentimento de desconfiança dos populares [da cidade do Rio de Janeiro] em relação á justiça era sem dúvida bastante profundo e generalizado" (apud Junqueira, 1993:144).

Observemos o que diz o Editorial do jornal Correio da Manhã, de 26 de janeiro de 1905:

"[ A ] falta de confiança na imparcialidade da Justiça é, não há duvidar, um sentimento profundamente enraizado na alma popular. Os tribunais são considerados, geralmente, o inferno dos pobres e humildes, que encaram a má solução dos seus pleitos e dos seus processos como resultância pura e simples da miséria e da ausência de proteção" (Chaloub,1986:190).

Sobre estes sentimentos acerca da justiça Joaquim Nabuco proferiu o seguinte alerta à elite política da época:

"[O]u organizais a justiça, pública, verdadeira, real, completa, ou legitimais a vendeta popular. Não tendes escolha: é preciso organizar a justiça pública" (apud Vianna, 1949:v.2,242).

Se por um lado as percepções correntes sobre a justiça reiteram os altos custos sociais de acesso ao sistema judiciário, por outro, parecem acenar para a incapacidade deste mesmo sistema de responder adequadamente às demandas formuladas pela população. Constata-se que o Estado Brasileiro, próximo à virada do século XXI, não conseguiu monopolizar a produção e distribuição da justiça: desde o Império a justiça não tem se apresentado como o locus privilegiado de resolução da conflitualidade.

A lógica-em-uso do nosso ordenamento jurídico tende a desterritorializar os conflitos na medida em que os abstrai da arena onde estão inseridos. Conforme observa Mariza Corrêa, a respeito dos processos judiciais relativos a homicídios e tentativa de homicídios envolvendo casais, no período de 1952 a 1972, em Campinas:

"... no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde quase toda sua importância e o debate se dá entre os atores jurídicos, cada um deles usando a parte do real que melhor reforce o seu ponto de vista. Neste sentido, é o real que é processado, moído, até que se possa extrair dele um esquema elementar sobre o qual se construirá um modelo de culpa e um modelo de inocência" (Corrêa,1983:40).

A conseqüente autonomia da justiça em relação ao universo social dos litigantes e a proposição de soluções exclusivamente "técnicas" e "objetivas" são interpretadas pelo imaginário jurídico brasileiro como garantias necessárias à aplicação imparcial, neutra e universal da lei. Resulta daí que uma parte significativa dos litígios que compõem o vasto mapa da conflitualidade social não desagua nas instâncias judiciais. Isto parece ocorrer não só em virtude de uma atuação historicamente seletiva e excludente da justiça[7], como também pelo fato de que certos litígios não são reconhecidos como delitos pelo "mundo jurídico"[8].

A nossa legislação possui determinadas limitações provenientes tanto da sua estrutura, quanto das exigências regimentais para a sua aplicação. Apesar da incorporação de "novos direitos" civis e sociais pela atual constituição - direito do consumidor, reconhecimento das uniões consensuais, etc - e das atualizações realizadas nos Códigos Penal e Civil, o nosso universo legal está longe de contemplar as demandas jurisdicionais que há muito se fazem presentes na vida brasileira.

Estas limitações podem ser percebidas em algumas situações concretas, sobretudo em boa parte dos casos de violência doméstica denunciada. Não me parece arriscado afirmar que os litigantes, quando solicitam a arbitragem exercida extra-oficialmente pelas DEAMs, esperam um tipo especial de julgamento, que ultrapasse o modelo da adjudicação[9] proposto pelo mundo jurídico oficial.

Ora, as instituições policiais, em virtude de suas próprias atribuições legais, são menos cerceadas pela lei do que o judiciário. Em outras palavras, elas estão mais abertas à utilização de práticas informais - coativas ou não - no processamento do conflito do que a própria justiça. Segue-se que a atuação judicante não-oficial da polícia pode introduzir o acordo informal entre as "partes", onde a lógica jurídica formal - dadas as suas restrições legais - apenas poderia oferecer como solução a condenação ou absolvição do réu. Em seu estudo sobre as práticas judiciais da polícia quando confrontadas com pequenos casos de natureza penal protagonizados pelas classes populares no Grande Recife, Luciano Oliveira esclarece que...

"(...) ao que tudo indica, a polícia, ao tratar dessas questões (...) está cumprindo o papel exato que dela esperam os que a procuram. Dito de outro modo: a mulher que apanha do seu companheiro não procura o comissário para que ele processe o seu agressor, e sim para que ele lhe aplique um corretivo...

Pouco importa, no caso, que ela não se valha do Judiciário porque desconheça o direito oficial - certamente desconhece - ou porque não possa pagar a prestação jurisdicional - certamente não pode. O que importa (...) é que ela vai até a delegacia ou posto policial para buscar prestação jurisdicional aí mesmo, num desses locais, e não para que seja feito um inquérito que instruirá uma futura ação penal no Judiciário" (Oliveira, 1984: 44,45).

De fato, este tipo de arbitramento especial oferecido pelas instituições policiais só parece poder ser implementado através da aplicação de princípios não-judiciais : é importante frisar que, do ponto de vista da demanda, seus litígios não seriam resolvidos satisfatoriamente pela justiça, uma vez que as soluções requeridas - e até mesmo certos conflitos - não teriam lugar no interior do direito oficial e suas práticas processuais.

Eis aqui uma interessante questão. Segundo os princípios gerais da Legislação Penal, um ato para ser considerado legalmente crime no Brasil deve ser previamente definido pela lei, isto é, deve se encontrar "tipificado" pelo Código Penal Brasileiro[10], que determina no seu "artigo nº 1" :

Anterioridade da lei.

"Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

* com redação determinada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984". ( Ed. Saraiva, 1988, 26ª edição).

Note-se que a teoria jurídica brasileira estabelece que "o que não está na lei não está no mundo"[11]. De acordo com esta perspectiva, se um certo evento não se enquadra no universo previsto pela lei, ou melhor, se um determinado fato não pôde ser "tipificado" é porque ele não existe na linguagem jurídica e conseqüentemente não pode também ser resolvido pelas agências jurídicas formais. Entretanto estes mesmos casos, desconhecidos pela ordem legal, fazem parte da realidade social e são, portanto, vivenciados como litígios e demandam resoluções que, em muitos casos, ultrapassam o recurso da administração privada.

Se, por um lado, este intervalo entre a ordem real e sua "tradução" legal aponta para constrangimentos de natureza social (a impossibilidade de conversão integral e automática da vida social em racionalidade jurídica[12]), por outro lado, evidencia a existência de obstáculos e casuísmos históricos presentes no diálogo entre o estado e a sociedade.

Tenho a impressão que este diálogo pode ser melhor equacionado através da constituição, ampliação e implementação dos espaços públicos informais de negociação de conflitos. No Brasil, o movimento de informalização e desregulamentação da justiça é discreto[13]. E apesar do processo de democratização ter introduzido algumas iniciativas nesta direção, as lacunas existentes têm sido historicamente preenchidas pelas instituições policiais[14].

De certo modo, a polícia tem atuado como um filtro, uma espécie de elo intermediário entre a vasta demanda dos litigantes e o restrito sistema jurídico. Mas que elementos provindos ora da natureza da demanda, ora da prática das atribuições legais, contribuem para o exercício de funções não instituídas ?

* DEAM, um exemplo de delegacia que chama para conversar.

As Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher começaram a ser implantadas no Estado do Rio de Janeiro em 1986. No curso destes 8 anos elas vem assumindo funções extraordinárias nem sempre previstas pelas suas atribuições legais[15]. O arbítrio nos conflitos da intimidade e vizinhança constitui um bom exemplo da expansão e adequação dos seus serviços às especificidades da clientela ou de seus problemas.

Experiência inédita em todo mundo, as DEAMs são um passo importante na direção do reconhecimento público da violência doméstica presente na sociedade brasileira. Elas vêm contribuindo, decisivamente, para a explicitação e ordenação de uma demanda antes dispersa e oculta.

Entretanto, não se pode falar da existência de um consenso acerca da sua eficácia na prevenção e combate à "violência contra a mulher". A atuação das DEAMs é alvo de inúmeras discordâncias tanto de certos setores do mundo policial quanto de alguns segmentos do movimento feminista. A precariedade material de suas instalações e equipamentos, a escassa dotação de recursos, a pouca especialização das policiais e, principalmente, o "desvirtuamento" de suas funções são algumas das críticas freqüentemente realizadas[16].

O ponto central da controvérsia sobre sua atuação incide sobre a prática usual no meio policial de negociar litígios. A mediação de interesses não aparece nas estatísticas policiais porque segue um percurso alternativo à expectativa oficial de "tipificação" penal dos fatos, produção de registros de ocorrências e subseqüente instrução de inquéritos[17]. Para alguns policiais as DEAMs são vistas como "Delegacias de Papel" porque "não prendem" e só "chamam para conversar"[18].

Observe que um tipo de apreciação, exclusivamente voltada para as atividades formais das DEAMs, deixa de considerar uma parte importante dos serviços prestados por estas delegacias: a arbitragem extra-oficial tende a ficar confinada à invisibilidade das denúncias não registradas. Contudo, é precisamente neste universo, à primeira vista inexistente, que parecem residir aquelas atuações que produzem respostas alternativas e práticas à demanda difusa das "ofendidas".

Conforme já mencionei, a rotina numa delegacia da mulher é, basicamente, preenchida por "queixas" provenientes das redes de sociabilidade que envolvem parentes, afins e conhecidos. Uma vez que, na maior parte dos casos, os delitos denunciados apresentam uma matriz interativa, é bastante provável que as DEAMs se encontrem mais atreladas às solicitações dos litigantes que outras agências policiais.

Mas uma certa abertura para o exercício de práticas não-oficiais não se explica apenas pelas características da demanda e seus interesses específicos e emergenciais. Ela também se reporta à interpretação policial de suas atribuições oficialmente instituídas.

Kant de Lima (1994) chama atenção para os dilemas e paradoxos existentes na organização e prática policiais que favorecem as atuações ilegais. As funções policia Civil no Brasil são oficialmente divididas em duas partes: a atividade administrativa diz respeito aos trabalhos de vigilância da população para a prevenção da criminalidade, e a atividade judiciária - definida como um braço auxiliar da justiça - consiste nos expedientes de investigação criminal. Enquanto o desempenho das chamadas funções administrativas pressupõe uma razoável liberdade de ação, a função judiciária, em harmonia com o sistema judicial, goza de liberdade limitada.

Nota-se que a instituição policial, tal como acima caracterizada, aparece enclausurada dentro de duas lógicas formais não necessariamente convergentes. O autor esclarece que, na rotina policial, estas atribuições acabam se misturando porque a polícia "contamina" sua atividade judiciária com seus métodos e critérios de vigilância.

Se isto de fato procede, qualquer ação policial vai estar, em algum nível, arranhando a lei. A combinação de atribuições administrativas e judiciárias na experiência policial viabiliza a produção de resultados paradoxais. Na atuação arbitral da polícia pode-se ver, mais claramente, um dos muitos efeitos desta combinação:

"Se a polícia recusa formalmente arbitrar esses conflitos estará obedecendo à lei mas está abdicando de suas funções de vigilância, que dão apoio à sua autoridade no seio das classes mais baixas da população; se a polícia afirma sua autoridade, exercendo seus poderes de vigilância, está agindo em desobediência à lei: seus poderes de vigilância devem ser exercidos unicamente sobre os fatos criminosos "potenciais", não sobre fatos criminosos reais. Diante de fatos criminosos reais a polícia tem de encaminhá-los ao judiciário e agir como quem recebeu delegação do judiciário, usando as práticas e princípios do judiciário" ( 1994: 111,112).

Como se pode observar, as atividades policiais parecem se equilibrar na fronteira entre o legal e o ilegal. Se a função judiciária deve se limitar àquelas condutas previamente tipificadas pela lei, a função administrativa deve "prevenir" o crime através de conjecturas a respeito da conduta social dos indivíduos. A convergência necessária desta dupla atribuição faz com que a polícia, no próprio cumprimento dos seus poderes delegados, inaugure espaços de interpretação e aplicação autônomas da lei, adequando o rigoroso universo da legalidade às singularidades das práticas e experiências policiais.

Em síntese, os próprios fundamentos legais parecem contribuir para que as agências policiais (e em especial as DEAMs) se convertam numa espécie de híbrido institucional mimetizador de funções e práticas regimentais distintas. Nas "Delegacias da Mulher", os métodos de vigilância e investigação ajustados ao atendimento de uma demanda volumosa e extremamente diversificada viabilizam a exótica composição de princípios que regem diferentes sistemas de julgamento. Na prática, as DEAMs conjugam procedimentos do Direito Civil (onde o acordo é legalmente possível) com dispositivos do Direito Criminal. A utilização de um amplo estoque de recursos na negociação extra-oficial, que vai da singela sugestão de "usar um atraente babydoll vermelho para animar o marido" até a enfática ameaça do "teje preso", é uma clara demonstração deste tipo de composição.

Assim, não é incomum que as DEAMs, acatando os interesses das partes, atuem em certos litígios como se estes não constituíssem um "crime de ação pública"[19]. É preciso destacar que nesta modalidade de crime o acordo não é judicialmente permitido[20] e, uma vez realizada a denúncia na delegacia, apenas o juiz, mediante insuficiência de provas, tem competência legal para ordenar o arquivamento dos autos[21]. Como possuidora somente de "poderes delegados", cabe à polícia, então, agir nos trabalhos de investigação criminal sob estrita supervisão do sistema jurídico: sua função judiciária - é importante insistir - restringe-se à tarefa de coligir provas e circunstâncias relacionadas à notícia-crime e a instrução de inquéritos[22].

A esta altura do texto parece evidente que a atividade não-oficial da polícia na regulação de litígios amplia as ambigüidades já existentes no cumprimento de suas atribuições legais. Todavia, se é possível afirmar que este tipo especial de julgamento revela uma aliança sutil entre a autoridade policial e sua clientela "contra" a lei, é também necessário esclarecer que para estes atores os serviços de mediação não são interpretados como atividades propriamente ilegais. Ao contrário, elas são percebidas como acordos legítimos que pertenceriam ao mundo da legalidade porque "fazem justiça" e porque têm a chancela da polícia. Para os litigantes que solicitam a mediação das DEAMs nas "brigas de marido e mulher", nas "confusões com o vizinho", nas "disputas pela posse da mesinha de centro e pelo guarda-roupa duplex", etc, a autoridade policial aparece como a manifestação mais efetiva e concreta da legalidade: "a Dr.ª Delegada é autoridade e tem diploma de advogado". "Ela sabe da lei".

Um outro aspecto importante a ser evidenciado é que através de "atalhos" ilegais o arbitramento policial acaba auxiliando o judiciário[23]. As mediações policiais, mesmo que contrariando ostensivamente a lei, aliviam o sistema judicial, na medida em que têm se mostrado capazes de absorver uma parte expressiva da conflitualidade social[24]. Em outras palavras, a negociação extra-oficial praticada nas delegacias ajuda a desafogar um sistema judiciário menos congestionado pela incorporação de direitos emergentes, e mais paralisado pelo excesso de formalismos e expedientes altamente burocratizados[25].

Em virtude do que foi acima exposto é razoável afirmar que as agências policiais, no "desvirtuamento" de suas funções, mantém uma relação de complementaridade com o tradicional modelo jurídico brasileiro[26]. Entretanto, apesar de uma certa garantia de "funcionalidade" desta relação, o resultado prático de espaços públicos improvisados para negociação de conflitos não resolve a crise institucional que envolve as agências policiais e jurídicas. A utilização exclusiva das agências policiais como instrumentos de mediação, sem a necessária contrapartida da estrutura judicial - sua informalização e desregulamentação -, pode contribuir para a ampliação do grau de incerteza, principalmente sobre o sistema jurídico.

Ao atender o caráter social e coletivo dos conflitos que não são ou que não podem ser resolvidos dentro dos limites estreitos do ordenamento jurídico atual, a instituição policial acaba por substituir a legalidade pela legitimidade de suas decisões, pois estas mesmas decisões se encontram respaldadas pelos interesses emergenciais da demanda. As instituições policiais - agências estatais sem poder judicante - desconfirmam a própria ordem legal, na medida em que fazem aparecer um outro direito no interior do direito estatal oficial. Mas que outras juridicidades e percepções de direitos são colocados em prática pelas DEAMs e a sua clientela ? Que tipo de normatividade resulta da adequação do mundo legal à concreção dos casos?

* O direito de todos e outros direitos.

Do ponto de vista do direito legal brasileiro e de sua lógica-em-uso, as relações, acordos, transações realizados nas DEAMs seriam ilegais ou, no mínimo, juridicamente nulos. O tipo de normatividade que ali se processa encontra-se, sob o ângulo da legalidade, à margem do campo jurídico oficial. Conforme já foi mencionado, esta normatividade aparece como "legal" e legítima para aqueles que dela participam. Assim, a despeito do "desvirtuamento" de suas funções, as DEAMs vêm se transformando gradualmente num "fórum jurídico" em torno do qual têm se desenvolvido uma prática e um discurso jurídicos muito peculiares. Mas é possível classificá-los como uma forma de exercício do direito, mesmo que extraordinária? A extensão das qualificações de "direito" e de "legalidade" a certas práticas não previstas pela lei comprometeriam o sentido e a aplicação destas noções ?

À primeira vista a idéia de pluralismo jurídico parece se restringir à constatação da existência de outras formas de normatividade existentes em sociedades outras cujo modelo de organização social e política difere substantivamente da nossa. Os estudos antropológicos sobre as chamadas "sociedades tribais" constatam a utilização de formas distintas de produção jurídica e, por conseguinte, a concepção de diferentes sistemas de processamento de conflitos[27].

Como observa Boaventura de Sousa Santos em seus trabalhos sobre sociologia jurídica, o conhecimento etnológico sobre a realidade sócio-política de outras culturas faz com que a ciência antropológica contrarie o pensamento jurídico ocidental e amplie o universo das concepções jurídicas. Reconhecendo a existência de outros direitos, a perspectiva antropológica constrói uma noção operativa, adequada às exigências empíricas. Assim, esclarece o autor, a figura do direito é expandida e inclui...

" [Um] conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados justiciáveis num dado grupo, que contribuem para a criação e prevenção de litígios e para a resolução destes através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada" (Santos:1988,72).

Apesar de não pretender esgotar a problemática inter-disciplinar sobre os princípios e proposições que circunscrevem as noções de direito, legalidade, legitimidade, processos decisórios, etc, ordenadoras do nosso mundo jurídico-formal, a perspectiva antropológica coloca em evidência uma importante questão. A constatação da existência de mais de um direito ou a caracterização da realidade jurídica como plural confronta-se com os pressupostos do estado moderno, que delegam à ordem estatal o monopólio da produção do direito. Se, por um lado, cabe à ordem estatal-legal o privilégio constitucional de garantir a soberania do "Estado de Direito", por outro, a vida social parece produzir outras juridicidades até mesmo contrárias ou concorrentes[28].

Mas a questão do pluralismo jurídico pode ser entendida sem prejuízos para a afirmação da ordem estatal-legal. É preciso compreender de que maneira ele se deixa observar nas chamadas sociedades complexas.

Não se pode negar que diferentes ordens legais e "ilegais" de produção de direitos convivem na modernidade, não somente em setores diferenciados da realidade social, mas dentro de um único cenário - até mesmo institucionalizado - como é o caso do poder judiciário[29] e, em particular, da negociação de conflitos nas DEAMs.

Observe que não se trata aqui de defender ou converter ingenuamente as legalidades denominadas "paralelas" e "alternativas" em legalidade oficial, até porque nem a ordem legal tem autoridade simbólica para excluir do real outras formas reativas ou espontâneas de juridicidades, nem a susposta ordem jurídica informal tem força suficiente para substituir - mesmo que pelo uso da violência - a ordem legal.

O que parece relevante não é, portanto, a tentativa retórica de formalização mecânica de "direitos achados na rua"[30]. Inversamente, o que se pretende neste texto é mostrar a convivência, e até certo ponto a conivência, entre as formas de percepção dos direitos oficial e informal.

Afinal, não se pode esquecer que aqueles que procuram as DEAMs estão solicitando - mesmo que através de atalhos e inúmeras adequações - o direito de todos e não o simples reconhecimento de seu outro direito. As pessoas que solicitam os serviços de mediação informal das "Delegacias da Mulher" já ultrapassaram o limite das resoluções privadas de seus interesses e parecem ter elegido uma agência pública como terceira parte. Elas procuram a agência policial para ter acesso ao direito oficial: "Eu vim aqui para saber dos meus direitos".

Na realidade das sociedades de mercado, complexas, constata-se uma espécie de polissemia semântica que faz aparecer múltiplos eixos de significados, ou seja, espacialidades no interior do campo significacional do mundo jurídico. Estas espacialidades internas ao direito são porosas e se interpenetram. Os diferentes direitos oficiais e informais, apesar de não serem sincrônicos, estabelecem um dialogo num corte horizontal :

"(...) as configurações de sentidos jurídicos que pomos em ação nos diferentes contextos da nossa prática social são freqüentemente complexas misturas de concepções jurídicas discrepantes e de normas de gerações diferentes, umas novas, outras velhas, umas emergentes outras em declínio, umas nativas, outras importadas, umas testemunhais, outras impostas. Talvez mais que em nenhuma outra época, vivemos num tempo de porosidades e, portanto, também de porosidade jurídica, de um direito poroso constituído de múltiplas redes de juridicidade que nos forçam a constantes transições e transgressões" (Santos, 1990:36).

Em outras palavras, a vida sócio-jurídica, nos tempos da modernidade, apresenta-se como um lugar de cruzamento entre diferentes fronteiras jurídicas. É precisamente esta intersecção, um tipo de manifestação fenomenológica do pluralismo jurídico, que se pode qualificar de interlegalidade.

A idéia da interlegalidade, tal como foi acima apresentada, aparece como uma razoável possibilidade de ultrapassar uma possível leitura etnocêntrica da noção de "direito". Sem correr o risco de descaracterizar o mundo jurídico formal, esta noção incorpora a "desfuncionalidade" presente na vida moderna e permite que outras práticas de negociação e resolução de litígios possam ser investigadas e adjetivadas como "jurídicas". Uma outra virtude que merece ser evidenciada é que esta perspectiva, ao iluminar as juridicidades informais, contribui para o esclarecimento dos problemas que obstacularizam a relação entre a justiça e a população.

Entretanto, ainda restam algumas perguntas a serem feitas. A produção de juridicidades outras resultaria apenas e exclusivamente da distância objetiva e subjetiva em relação ao mundo jurídico oficial? No caso específico da mediação informal de conflitos das DEAMs, estaria ali se processando um "direito alternativo" ?

É fato que a cultura jurídica brasileira[31] não reconhece a desigualdade social e o caráter excludente de nossa cidadania[32]. Na prática, a lógica-em-uso da justiça realiza uma triagem daqueles conflitos que podem ser justiciáveis. Observa-se, que esta função seletiva da ordem jurídica é exercida, principalmente, no Direito Processual Civil[33].

Parece, então, evidente que a justiça brasileira, com sua atuação elitista e distanciada, contribui para que litígios ou disputas de natureza pública sejam, em alguns casos, apenas processados através de recursos normativos privados e ilegais.

Todavia, o exercício privado da justiça não deve ser entendido apenas como uma resposta social àqueles contextos onde a lei falha, tarda ou é inexistente. Não se pode esquecer que certas práticas judicantes informais - o tradicional arbitramento policial, por exemplo - antecedem historicamente as leis penais em vigência. A violência como instrumento normativo de resolução de conflitos também tem se mostrado uma prática tradicional na sociedade brasileira[34]. Ela aparece traduzida na histórica alegação da "justiça feita com as próprias mãos", na legitimidade moral da "defesa da honra" e em outros mecanismos sutis, no entanto, não menos violentos. As diversas modalidades de violência interativa[35], nas quais se incluem os altos índices de violência doméstica, constituem claras demonstrações de que a violência aparece como uma "possibilidade real e concreta de manifestação da sociedade brasileira" (Da Matta, 1982).

Na verdade, estas evidências anunciam a desconstrução simbólica da lei enquanto elemento ordenador do espaço público[36]. De todo modo, é importante relativizar esta discussão, procurando compreender porque o sistema jurídico não conseguiu se impor frente a essa realidade[37]. É através desta perspectiva relativizadora que procuro interpretar o tipo de normatividade processada nas "Delegacias da Mulher".

A juridicidade que ali se constitui é um direito não-oficial que conjuga os princípios do direito de todos, instituído pelo estado, e um outro direito, instituinte, cuja origem está no universo valorativo da clientela que solicita os serviços das DEAMs. Não se trata, apenas, de um "uso alternativo" do direito oficial, no sentido de um simples ajustamento da norma legal aos interesses das partes. Mais que isto, este direito apresenta-se como uma interação jurídica plural, entre formas distintas de percepção do mundo das regras.

Neste direito que passo a chamar de interativo, assiste-se a uma complexa operação de convergência entre vários sistemas classificatórios não necessariamente coincidentes, como os sistemas simbólicos do mundo policial, da vida ordinária e da instância jurídica. O desafio que se coloca é, precisamente, fazer coincidir estes planos da linguagem. Em outras palavras, a pretensão deste direito parece ser a de traduzir os atos reais em fatos legais, sem permitir a autonomização da função jurídica e a conseqüente objetificação dos litigantes e suas demandas.

Assim, o direito interativo mantém uma relação de homologia com o direito oficial. Ele incorpora de maneira seletiva e criteriosa tanto as normas e procedimentos que regem as atribuições jurídicas e administrativas da instituição policial, quanto o quadro valorativo que ordena a experiência ordinária. Produzido no interior de uma agência pública - a delegacia de polícia -, este direito interativo, mesmo que informal, não pode prescindir de tomar de empréstimo alguns dos expedientes do direito oficial. De certo modo, ele se encontra à margem da justiça, mas não à margem das outras agências estatais responsáveis pela manutenção da lei e da ordem.

* No Plantão de Atendimento.

Quando a DEAM é chamada a resolver um conflito, quase sempre entre cônjuges, parentes e conhecidos, é acionada uma dinâmica flexível capaz de absorver o caráter heterogêneo e descontínuo da demanda.

Sua clientela é basicamente composta de homens e mulheres provenientes das regiões periféricas da cidade e inseridos numa ampla faixa etária. Os baixos níveis de instrução e a baixa especialização profissional indicam que se trata de um segmento cuja renda mensal é pouco significativa[38].

O volume e a multiplicidade de serviços solicitados faz com que as DEAMs realizem uma triagem dos casos durante o atendimento; pois, além da mediação dos litígios de natureza civil e criminal, outros serviços extraordinários são incorporados à rotina das Delegacias da Mulher, tais como solicitações de viatura para a remoção de doentes e transporte de parturientes, pedidos de informação sobre outras agências públicas, etc.

No que diz respeito às atividades informais de negociação, os casos são também diversificados. Segundo os relatos das policiais mais antigas, as DEAMs recebem toda sorte de situações atípicas. Algumas destas histórias foram coletadas durante o trabalho de campo. Para efeito de ilustração, apresento um caso atendido na DEAM-NITERÓI.

A SAGA DA VIÚVA DE ELVIS PRESLEY[39]

Quarta-feira, 8 de dezembro de 1993. Esta não é a primeira vez que Dona Jurema vai à DEAM dar queixa "daquele perneta safado que casou com a Miriam Rios". Cristina, a detetive de plantão, explica-me que ela sempre aparece para saber sobre o problema da sua aposentadoria: "Eu dei assunto e ela acabou voltando mais vezes". Muito atarefada, a detetive pede que eu "pegue o caso". Convido, então, a queixante para me acompanhar até a sala da Assistência Social.

Dona Jurema é uma senhora de 63 anos de idade. Seu semblante transmitia um ar de tranqüilidade e sobriedade. Apesar dos seus poucos dentes, das rugas e dos trajes modestos, ela aparentava ter sido uma mulher muito bonita quando jovem. Enquanto preencho a petição, pergunto-lhe sobre a razão de sua queixa. Chorosa, ela me explica que sua aposentadoria não tem sido paga desde a década de 70: "os funcionários do INSS estão me enganando, eles ficam com o meu dinheiro". Segundo Dona Jurema, eles "não agem sozinhos". Conta-me que os maiores interessados em seus minguados proventos são "dois homens muito importantes" - Roberto Carlos e Silvio Santos.

Roberto Carlos aparece na narrativa como o principal vilão da história. Ele é descrito como alguém que não mede esforços para prejudicá-la. Dona Jurema afirma que tudo que ele tem é roubado. Seu iate Lady Laura, por exemplo, foi adquirido através de meios ilícitos: ele procurava saber quem eram os donos dos iates e depois mandava os capangas dele matar. Depois de matar os donos, ele passava os iates para o nome dele. E foi assim que ele conseguiu as coisas.

Indago-lhe sobre como teria obtido informações sobre estes negócios ilegais? Dona Jurema, muito circunspecta, revela-me que tomou conhecimento dessas imundices por intermédio das primas de Roberto Carlos que moram num barraco perto de sua casa. Diante do meu espanto sobre a situação de abandono dos parentes do Rei, ela comenta que aquele ali não liga para ninguém.

Silvio Santos, assim como Roberto Carlos, usou de práticas desonestas para construir sua fortuna: foi tudo roubado. Como também pretendia prejudicar Dona Jurema, ele uniu-se ao Rei. A esta altura, minha informante já enraivecida desabafa: Os dois vivem me perseguindo!

Uma das atrocidades cometidas por Roberto Carlos e Silvio Santos foi o assassinato de seu primo, o ex-Beatle John Lennon. Indagada sobre a motivação do crime, Dona Jurema com os olhos baixos e a fala trêmula respondeu - para me prejudicar. Mas "John" não foi a única vítima da conspiração de Roberto e Sílvio. Seu marido Elvis Presley, com quem teve uma filha de nome Anne Marie, também foi assassinado: ele morreu envenenado, eles puseram um negócio na bebida dele.

Outro membro ilustre da família de Dona Jurema é o Papa João Paulo II. Quando esteve no Brasil, o pontífice presenteou-a com um lindo anel de ouro. Conta-me que foi visitá-lo em sua casa ao lado do Cristo Redentor. Eu já fui na casa dele. É bonita!

Seu relato termina com um abrupto e demorado silêncio. Agradeço-lhe o depoimento e a encaminho de volta à sala de atendimento. Cristina, com um simpático sorriso, informa-lhe que o seu caso continua sendo investigado e marca uma nova visita para o mês seguinte, no dia de seu plantão.

Dona Jurema despede-se satisfeita e promete retornar. Após sua saída, Cristina comenta que o atendimento de Dona Jurema faz parte das "recomendações do médico" e que sua filha havia procurado a delegacia para informar a delicada saúde de sua mãe.

A história de Dona Jurema é, sem dúvida, um exemplo radical do tipo de demanda que chega às Delegacias da Mulher. Esta vasta coleção de episódios singulares exige que as DEAMs ofereçam um atendimento flexível e diversificado. Mas, naqueles casos que apresentam algum litígio, o atendimento segue uma determinada rotina.

No plantão de atendimento, a "parte"[40] ofendida apresenta uma denúncia que, na maior parte das vezes, coincide com a sua própria história de vida: a descrição do fato que propiciou a "queixa" aparece dissolvido no interior da narrativa.

Enquanto a queixante é auxiliada no preenchimento da petição[41] - rito preliminar que antecede a elaboração do registro de ocorrência -, a detetive plantonista "ouve a parte", isto é, realiza uma breve inquirição de modo a certificar-se da "materialidade"[42] do fato, da possibilidade de tipificação[43] jurídica da queixa, da natureza e "seriedade" do litígio e, por último, da competência para resolvê-lo.

"Testar a parte para saber se ela não está inventando tudo isso" através da prática do interrogatório faz parte da rotina policial. De acordo com as policiais é necessário confirmar a relevância da queixa no intuito de coibir intenções desonestas, movidas pela "vontade de vingança" ou pelo "desejo de só prejudicar". A experiência de longa data adquirida para resolver estas "brigas de marido com mulher" é de tal forma valorizada, que aparece como um dos elementos mais importantes para a aceitação da denúncia. Segundo a "psicologia prática" das policiais:

"a gente aqui tem que ser psicólogo, assistente social, para dar conta dessa gente. Quando eu me aposentar acho que vou abrir um consultório sentimental."

Uma vez aceita a queixa, a outra parte é então "convidada" a comparecer "para ter uma conversa na Delegacia", numa data fixada, para "tratar de assunto do seu interesse". Em virtude das precárias condições materiais e de pessoal destas delegacias, o "convite"[44] não é entregue por um policial e sim pela própria queixante.

Na rotina da delegacia, cada dupla de plantonistas[45] possui a sua "pasta de casos". Segue-se que a acareação - rito policial onde se processa a negociação - deve, sempre que possível, ser conduzida pela própria policial que realizou o primeiro atendimento. No intuito de garantir uma melhor eficiência nos trabalhos de mediação, a delegada titular toma ciência dos fatos ocorridos no balcão de atendimento e devolve o expediente para os plantonistas. Assim, somente aquelas situações que apresentam extrema gravidade são transferidas para os "chefes de seção".

O comparecimento das partes no dia marcado para a acareação, por vezes, mostra-se problemático e várias medidas costumam ser adotadas para assegurá-lo. Novos convites são enviados e, nos casos considerados mais urgentes, são efetuadas diligências.

As partes quase sempre aparecem acompanhadas por amigos, parentes e vizinhos que podem ou não participar ativamente da discussão. Além da acareação, podem ocorrer outras audiências consideradas necessárias para a produção de acordos ou a sua confirmação[46].

Como "todo mundo tem vez para falar" nas audiências, as discussões costumam ser animadas e calorosas, cabendo à policial orientá-las e proferir a decisão - um tipo de compromisso moral assumido pelos presentes que estabelece as obrigações que devem ser cumpridas reciprocamente.

Durante as negociações, os litigantes são, sucessivas vezes, esclarecidos sobre o conteúdo da decisão a ser tomada, questionados sobre a convicção de suas posições, informados sobre o desagradável expediente de "ficar sujo na polícia" e alertados sobre a importância do compromisso firmado e da seriedade da "palavra empenhada na frente de uma autoridade policial". Uma vez confirmada a decisão, a policial convoca a parte ofendida a assinar o "Termo de Desistência" da queixa e reafirma solenemente os termos da reconciliação. Antes de serem dispensados, os litigantes são informados de que em virtude do acordo firmado passarão algum tempo sendo observados pela polícia[47].

* Direito Interativo, a elaboração discursiva da decisão.

Uma das características fundamentais da juridicidade produzida na acareação consiste no fato de que as decisões processadas não emergem da aplicação unilateral das leis aos casos concretos. Ao contrário, elas se apresentam como produtos da utilização seletiva e reversível de dispositivos retóricos que conjugam elementos discursivos das linguagens jurídico-policial e do senso comum.

O campo discursivo do direito interativo abre espaço para a instrumentalização de pontos de vista e opiniões previamente sabidos e comumente aceitos. Os elementos estruturantes deste discurso são extraídos da ampla agenda de valores que pauta a experiência ordinária. Os "lugares comuns", os "princípios morais", etc, emolduram e dinamizam um tipo de normatividade que vai se tornando persuasiva à medida que se aproxima, pelo jogo argumentativo, da dimensão concreta do conflito em questão.

O ASSÉDIO DE SEU FRANCISCO[48]

No banco de espera, duas mulheres: uma muito jovem, segurando uma criança nos braços; outra baixa, loura, muitas rugas. Chama-se D. Maria.

D. Maria anda nervosamente de um lado para outro, esperando um "safado" para a acareação. De repente, surge um senhor de mais ou menos 70 anos, de aparência discreta e humilde, que passa pelo corredor cumprimentando a todos. Neide, amiga de D. Maria, vai até o balcão e avisa à plantonista: " o safado já chegou".

A policial-mediadora convoca as partes e acompanhantes a se encaminharem para a sala da Assistência Social, onde será realizada a audiência. Dando início à acareação, a mediadora, dirigindo-se a todos os presentes, indaga sobre as razões do conflito. D. Maria, exaltada, diz-lhe que está sendo perseguida pelo Sr. Francisco, que ele a importuna freqüentemente. Convites para saírem juntos, presentinhos, confissões de amor. Basta seu marido "virar as costas" para começar a "perturbação". Logo com ela, que é "mulher direita", "casada há muitos anos", "mãe de família". D. Maria, inconformada, questiona: "O que a vizinhança vai falar?" "Já está todo mundo falando", acrescenta Neide, testemunhando a "sem-vergonhice do velho".

O nervosismo de D. Maria é plenamente visível: suas mãos tremem, sua voz embarga ao dizer que está sendo perseguida por quem tinha "grande consideração", amigo não só dela, mas de seu marido. "Ante tal amizade e estima" não poderia acreditar, nem tão pouco aceitar, que o Sr. Francisco "visse ela como mulher", a desejasse. Sr. Francisco ouve as queixas calado. Neide, incomodada com o seu silêncio, comenta com a mediadora: "Está vendo, aqui ele não diz uma palavra. Velho sem-vergonha!"

D.Maria revela que Sr. Francisco ameaça "contar tudo" a seu marido. E foi este "tudo", que D. Maria alega não saber, que este "velho cismado" foi contar a um de seus filhos: "Um filho desprezou a própria mãe", lamenta D. Maria. Sr. Francisco conseguiu fazer com seu filho o que ela teme que seja feito com seu marido - todo o seu passado "jogado fora". Ela suplica:

-" Sr. Francisco, pelo amor de Deus, eu sou uma mulher honesta, me deixe em paz!"

Sr Francisco, então, fala pela primeira vez. Pede que D. Maria não seja ingrata: "E os presentes que eu te dei? Do radinho você gostou! E quando a gente íamos pros matagais fazer amor?" D. Maria, interrompe abruptamente a fala do Sr Francisco e desmente a "pouca-vergonha". Diz que "simplesmente já não agüenta mais". Nos últimos quatro anos, Sr. Francisco vem transformando sua vida "num verdadeiro inferno". A policial mediadora intervém:

-"O Sr, Seu Francisco, não pode fazer isso. D. Maria é mulher casada, mãe de família. O senhor não vê que ela já está com problemas de nervos por causa das suas atitudes? Isto não é coisa de homem decente. Isto não é papel de homem de bem!"

Sr. Francisco, indignado, coça a cabeça e descruza as pernas. O que ele pode fazer se os dois se amam? Olhando nos olhos de D. Maria ele exclama: "Isso eu quero ver ela negar!". D. Maria se cala e desvia o olhar.

A intervenções compreensivas da mediadora volta e meia cedem lugar as ameaças de prisão. Mas a referência ao recurso da prisão não é feita de forma exclamativa ou imperativa, mas indagativamente: "O senhor, dessa idade, quer ser preso? Já pensou, Seu Francisco, um homem na sua idade na cadeia?" A velhice é acionada como um importante coibidor moral. "Toma Vergonha na cara, um homem da sua idade sem juízo? Por que o senhor está fazendo isso, perseguindo a mulher?"

Sr Francisco começa, então, a narrar a sua versão. Com um ar sério, responde: "Eu não tô perseguindo ninguém. Faço isso porque gosto dela". De acordo com o seu "entendimento", "tudo" começou há 7 anos. O que, no início, era pura amizade foi se transformando numa ardente paixão. Ele sabia que D.Maria era "uma mulher direita, trabalhadora". Mas, ao invés de afastá-lo, tais atributos o seduziam ainda mais, ao ponto do Sr. Francisco começar a fazer "qualquer coisa para ficar perto dela". D. Maria tentou resistir, mas "o amor da gente foi mais forte". A paixão eclodiu:

_" a gente fica esperando o marido dela ir para a obra, para se encontrar. Ele não é homem para ela. Puxa da perna...Às vezes a gente vamos prum terreno que eu tomo conta. Se eu tiver com dinheiro, levo ela prum motel. Ela é muito carinhosa, é uma coisa bacana os encontros da gente... Ela é uma mulher legal, eu gosto dela..."

A policial mediadora interrompe e argumenta:

_ "O senhor é homem, ela é mulher. O que aconteceu entre vocês dois não é pra sair comentando por aí. Que coisa feia, Seu Francisco...faltando com respeito pela mulher que o senhor diz que gosta. Difamando! Vê se toma vergonha na cara. Seja homem, Seu Francisco!"

Sr. Francisco não parece gostar muito da advertência da policial:

-"Eu sou católico, temente a Deus. Mas, a Doutora sabe, eu não sou o primeiro, nem o último a deitar com mulher dos outros. Deus existe para perdoar".

Mesmo "temente a Deus", Seu Francisco não pode, pois, deixar D. Maria. Eles se amam demais, apesar dela continuar negando. Ele também é um "homem correto", trabalhou duro numa companhia de eletricidade, onde sofreu diversos choques e acidentes, tendo perdido, inclusive, alguns dentes. Criou e educou os filhos e enteados, e "hoje cada um tem seu rumo na vida". Mas, fazer o quê, "se o amor não tem idade"?

A policial insiste: "O senhor também vai tomar um rumo, né Seu Francisco? O senhor tem que cooperar. Isto não pode ficar assim. Ela não quer...quando um não quer, dois não brigam! O senhor sabe que isto não está direito."

Sr Francisco, surpreso com a recusa de D. Maria, promete para a "doutora" que vai "se endireitar". Como "todo bom filho de Deus" ele tem "discernimento das coisas". Quando a detetive comunica que todos estão "dispensados", Sr. Francisco ensaia um sorriso e pergunta se não vai ser preso. A policial responde secamente: "por enquanto, não".

Sr. Francisco se despede de todos. Puxa um saco de balas do bolso e oferece à policial; ela "obviamente" não aceita. Mais uma vez ele cumprimenta os presentes e sai, acompanhando, à distância, os passos de D. Maria."

As noções de justeza e cooperação caracterizadas nos atributos de boa mãe, do bom vizinho, do ótimo marido, as imagens da responsabilidade (falta de juízo, cumprimento da obrigação), da honestidade (andar na linha, ter decência, ser trabalhador), da integridade e dignidade (não fica bem uma pessoa como o Sr. fazer uma coisa dessa), da honra, etç, são freqüentemente acionadas no jogo retórico, sobretudo, pela policial-mediadora. Na maior parte dos casos, estes princípios morais são utilizados segundo o tipo de conflito em questão, os rumos da negociação e o nível de persuasão que eles podem exercer sobre os litigantes.

Como se pode notar, apesar destes dispositivos serem operacionalizados com um razoável grau de liberdade, eles não são acionados de forma aleatória ou indiscriminada. Inversamente, eles obedecem à economia discursiva do direito interativo e suas estratégias coercitivas para a construção da decisão. Inicialmente genéricos, estes recursos morais ampliam sua força persuasiva na medida em que vão se adequando as situações vividas.

Aliás, é a possibilidade mesma de trafegar de um plano mais geral a uma dimensão estritamente particular que confere eficácia simbólica a estes artefatos da sabedoria popular. Os provérbios, as máximas morais, etc, carregam e transmitem um tipo de saber cotidiano que se adapta aos constrangimentos impostos pelos desafios da vida prática. Ora, um mesmo lugar comum pode ser aplicado às situações mais diversas. Isto porque eles se reportam a um repertório valorativo previamente sabido, do mesmo modo que não excluem da sua composição a força das metáforas afetivas e imagens não-racionais[49].

Tenho a impressão que o objetivo tático destes expedientes retóricos é, num primeiro momento, aproximar a distante e abstrata realidade do mundo jurídico da concreta realidade dos fatos. Num segundo, fazer aparecer - passo a passo e por diversos ajustes - argumentos que sejam aceitos pelas partes e pelo auditório; ou que, mesmo quando não aceitos, sustentem uma carga moral suficiente, capaz de convidar os litigantes a permanecerem na dinâmica discursiva.

Souza Santos (1988), em seu trabalho sobre a produção informal de juridicidade na Associação de Moradores, numa conhecida favela carioca, constata que no "Direito de Pasárgada" as remissões ao mundo jurídico oficial revesam sua importância estratégica com os lugares comuns, produzindo uma interação sutil entre instrumentos formais e informais. O mesmo pode ser observado no processamento de conflito nas DEAMs. O uso extensivo de princípios morais articula-se com freqüentes e perspicazes referências às leis.

Entretanto, nas delegacias da mulher, a utilização de recursos coativos é mais efetiva e evidente. O emprego regular destes dispositivos - alguns deles violentos - torna mais preciso o contraste entre os direitos oficial e interativo. Sua utilização é, a princípio, monopólio da policial mediadora e um dos seus propósitos parece ser o de desmantelar instrumentos coercitivos concorrentes, acionados entre as partes.

Citações formais e solenes aos Códigos Penal e Civil acompanham as exortações ao "poder de polícia". E os lugares comuns se misturam aos esclarecimentos sobre artigos e penas . Do conjunto dos elementos coativos disponíveis, os mais utilizados no jogo argumentativo são a ameaça de abertura de inquérito e a prisão:

..."Eu estou aqui gastando o meu tempo com vocês...Se não quer conversar, eu vou logo despachar para o cartório. Vai ou não vai conversar? Se o Sr. continuar a engrossar, a carceragem é aqui no 1º andar."

MOSTRANDO A PETIÇÃO : "por enquanto está na minha mão, eu estou segurando, quebrando um galho. Se vocês não querem chegar a uma conclusão, eu vou colocar na mesa da Delegada, eu vou levar ao conhecimento da Delegada."

Não obstante, outras manifestações do "poder de polícia" participam da retórica da mediação. Os procedimentos rotineiros de "reconhecimento" ou identificação policial são também acionados no decorrer da argumentação. Expressões como "Eu acho que te conheço", "Eu já te vi em algum lugar" deixam transparecer os riscos de "ficar manjado" pela polícia ou de apresentar um comportamento intolerante na negociação.

No entanto, estas insinuações seletivamente empregadas não decidem mecanicamente os acordos. Eles parecem funcionar na teatralidade da ordem discursiva. Como parte integrante da argumentação, estes dispositivos retóricos coativos reiteram a importância da "presença da autoridade" policial e a legitimidade da mediadora, isto é, sua vinculação à lei, ao "governo", e por conseguinte, ao mundo público. Na verdade, eles contribuem para criar uma ambiência de oficialidade, considerada relevante pelas partes, na medida em que inscrevem uma moldura institucional que reforça os objetivos conciliatórios e empresta ritmo às linhas do discurso no percurso para a decisão. Isto significa dizer que as referências constantes aos procedimentos da prática policial podem ser entendidas como dispositivos de recuo e aceleração, a serviço da implantação persuasiva da normatividade.

Mas além dos princípios morais e dos elementos formais, a normatividade desenhada no direito interativo faz uso de outros elementos retóricos com estrutura muito semelhante aos lugares comuns. Ditados populares, provérbios, máximas morais, clichês, trechos bíblicos e demais alegorias enriquecem as performances discursivas da mediadora e dos litigantes.

Eis aqui uma das marcas distintivas do direito interativo em relação ao direito oficial. As propriedades semântica e moral destas alegorias tornam mais amplo e flexível o campo discursivo deste direito. Estes artifícios da linguagem ordinária operam simbolicamente como elementos detonadores do discurso, ou seja, como válvulas distribuidoras que emprestam múltiplas direções e sentidos à engrenagem discursiva da decisão.

Por um lado, estas alegorias permitem a constituição de uma normatividade estável, assentada na força moral consentida dessas mesmas alegorias, por outro, motivam reações e posicionamentos singulares que fazem do processo decisório um discurso aberto e em movimento.

Uma dinâmica discursiva regida pela linguagem ordinária é, sem dúvida, uma dinâmica suscetível às influências de discursos afins. Conforme esclarece Souza Santos (1988), o uso extensivo de lugares comuns e similares tende a revestir as juridicidades informais de uma coloração ético-social que impossibilita que a cada momento do jogo argumentativo ocorra insulamento ou autonomia da sua dimensão jurídica. Para o autor, a estrutura tópico-retórica destes direitos não-oficiais se converte num freio eficaz ao "legalismo"[50].

Uma outra característica a ser mencionada refere-se ao fato de que neste tipo de campo retórico a palavra é franqueada a todo auditório. O uso exclusivo da linguagem técnica jurídico-estatal, ultra-especializada, cede lugar, no direito interativo, para a atuação de uma linguagem que emoldurada pelo senso comum, é por todos compartilhada.

É, pois, nesta linguagem ordinária, não-profissional, que se pode fazer circular a palavra. O jogo argumentativo, aberto e flexível, engloba a participação de integrantes não-especialistas e os sustenta como sujeitos de seu discursos e intérpretes de seus litígios.

Ora, isto é o mesmo que dizer que a própria constituição do campo retórico é negociada. Não se observa na construção retórica da decisão o nítido abismo linguístico entre profissionais e leigos, comum no direito oficial[51]. A dissolução deste abismo contribui para minimizar o impacto da diversidade das demandas, uma vez que facilita sua tradução jurídica no interior do fórum informal.

O modo pelo qual se processa a circulação da palavra torna fluida a rígida divisão do trabalho jurídico oficial. No direito interativo, a ausência de uma atuação padronizada, impessoal, exclusivamente referida aos princípios e normas da racionalidade jurídica, diminui o grau de institucionalização da sua função jurídica e aproxima os participantes. A contiguidade semântica entre o suposto agente monopolizador do discurso (a policial mediadora) e os litigantes, promovida pela linguagem ordinária, faz com que no processo de negociação possam ocorrer sucessivas inversões de papéis.

Em certos momentos do jogo decisório não é incomum que a mediadora ou qualquer outro integrante da negociação sente no "banco dos réus" e os demais encenem provisoriamente o lugar de juízes:

(...) A esta altura da audiência, Suely, policial responsável pelo caso e "chefe de secção", com um ar visivelmente cansado, levanta-se da cadeira e desfere um soco na mesa, interrompendo abruptamente a calorosa discussão do auditório:

"Parem com essa brigaria... O que que vocês estão pensando? Isto aqui é uma delegacia de Polícia! Eu convidei vocês para conversar...Aqui vocês vão ter que conversar feito gente...Nem homem e nem mulher põe banca na minha frente...Eu sou policial! Já passei pela homicídios, pela entorpecentes...eu já sou rodada. Aqui, comigo, tem que ser na conversa.

(...) Problema, todo mundo tem. Agora, para tudo nessa vida tem um jeito. Eu não fiquei dependendo de homem não, eu fui à luta. Dificuldade todo mundo passa ... eu corri atrás. Eu tentei colaborar...se não deu para segurar [o casamento], o negócio foi partir para outra. Eu fui buscar: fiz concurso para polícia e estou aqui, levando a minha vida do jeito que eu acho que tem que levar.

Agora, tem que ter vontade...Não caiu nada do céu para mim não, eu fui buscar... Voces precisam é tomar um rumo, desse jeito não vai dar para continuar, não."

Dirigindo-se à pesquisadora, Suely desabafa...

"Agora, olha para mim: você acha que eu consegui isto aonde? Só este ano eu ganhei mais 10 Kgs. Sabe o nome disso? O nome disso é preocupação, o nome disso é responsabilidade.

Diante de um silencioso auditório, Suely conclui:

"Agora, dorme com uma responsabilidade dessa na cabeça!"[52]

De certa maneira, todos os presentes dramatizam a possibilidade de ser árbitros dos outros e de si mesmos. Estas inversões momentâneas não parecem colocar em risco o lugar destinado aos participantes, à autoridade arbitral, que continua conferida com seus recursos coativos à mediadora. Ao contrário, permite, por meio da teatralidade, a constante relativização dos pontos de vista e a redefinição de posições iniciais.

Por oposição à arquitetura discursiva sistemática, assiste-se à confecção de uma retórica jurídica cíclica, que se deixa invadir pela possibilidade permanente de acidentes de percurso, na medida em que progridem as negociações. Aqui parece ser permitido "começar tudo de novo", "voltar à estaca zero" ou mesmo "falar o que ainda não se disse". Os recuos, os desvios de rota, os atalhos, as recusas, etc, encontram uma tolerante e razoável acolhida no interior do direito interativo.

Face ao exposto pode-se dizer que no direito interativo a própria "sentença" é também processada, isto é, construída na negociação. O acordo que dali emerge é, simultaneamente, o produto do discurso e o discurso pretendido pelos atores envolvidos - polícia e litigantes.

Este é um dos mecanismos que imprime eficácia aos acordos instaurados entre as partes. Note-se que este tipo de artimanha do discurso exerce uma tal força reativa sobre os participantes que, durante o processo decisório, é possível romper fronteiras e visitar províncias consideradas íntimas ou sigilosas em relação, tanto às regras do mundo legal, quanto aos critérios morais da vida ordinária.

Testemunhos da intimidade conjugal, revelações de prazeres secretos, avaliações sobre o comportamento sexual dos envolvidos no litígio, informações sobre as práticas anti-conceptivas usuais, etc, podem fazer parte da narrativa apresentada sobre o conflito.

A construção discursiva do acordo não se restringe, pois, aos procedimentos e expedientes legais. Assim, no jogo argumentativo entra toda sorte de intervenções estranhas ao mundo jurídico formal: flashs da intimidade, dramatização de fatos presentes e passados, testemunhos, recortes biográficos e projetos de vida misturam-se à contabilidade impessoal dos indícios e provas. No campo retórico da decisão, encontra-se lugar para que elementos alheios à tipificação do delito sejam incorporados ao processo de decisão.

É evidente que o tipo de acordo que o direito interativo faz aparecer não resulta da aplicação exclusiva do modelo jurídico da adjudicação. Mesmo que uma das partes possa ser reconhecida, em certos momentos, como mais "vencedora" do que a outra - afinal, o suposto "agressor" começa a negociação em desvantagem moral -, o acordo processado não se caracteriza como um resultado do tipo soma-zero. A estrutura da mediação acionada inscreve, desde o início da acareação, uma mecânica de concessões e ganhos recíprocos[53].

O modelo da mediação parece melhor adaptar-se ao tipo de resolução demandado pela clientela que solicita as DEAMs. Esta correspondência pode ser esclarecida quando se observa que na maior parte dos casos atendidos, os litigantes encontram-se enredados em densas vinculações, isto é, em relações múltiplas onde a continuidade dessas mesmas relações, sejam elas estruturalmente conflituosas ou harmônicas, se impõe como um valor que parece ultrapassar as razões imediatas da denúncia.

A primeira vista parece razoável supor que o processamento público de um litígio, mesmo que informal, conduza "naturalmente" a rupturas na ordem da intimidade. Todavia, a adesão irrefletida a esta perspectiva tem provocado erros de avaliação sobre a violência doméstica tanto por parte de certos setores feministas, quanto de algumas policiais das Delegacias da Mulher. Na prática, a expectativa de que a formulação pública da denúncia acarretaria necessariamente a cisão radical dos laços de afinidade parece não poder ser generalizada. O desconforto em relação ao fato de que, no processamento dos litígios, os interesses das partes possam caminhar no sentido da redefinição de pactos domésticos[54], tem alimentado preconceitos e posturas conservadoras quanto aos propósitos conciliatórios dos litigantes e das agências mediadoras[55].

Entretanto, é importante observar que os níveis de proximidade e convivência entre os participantes do conflito fazem com que o contexto da decisão incorpore a malha interativa desses atores. E isto de tal modo que o suposto objeto que motivou a queixa se reduz a uma atualização simplificada, empobrecida de relações de longa data antagônicas entre familiares, vizinhos e conhecidos[56].

A capacidade do sistema de mediação informal de assimilar as redes interativas permite dissolver, parcialmente, a separação existente no direito formal entre o conflito processado e o conflito real, que costuma economizar a expressão jurídica da conflitualidade social. No processo de negociação, as linguagens dos autos, provas, depoimentos, códigos, petições confundem-se com as idiossincrasias da experiência ordinária. Como a litigiosidade envolve atores próximos e afins, a intervenção mediadora da autoridade policial aparece como condição de distanciamento necessário e provisório entre as partes e, ao mesmo tempo, como recurso de reaproximação através da redefinição das alianças no interior do processo decisório.

* O conflito e o seu objeto.

A demanda das Delegacias da Mulher pode ser ordenada a partir dos tipos de litígios mais frequentes. Os conflitos propriamente conjugais, envolvendo sociedades de fato e de direito, são os que mais se destacam na rotina policial. Mas, além das chamadas "brigas de marido e mulher", as DEAMs atendem àqueles conflitos que emergem, ora da ruptura das expectativas em relação à interpretação dos códigos normativos que regem as relações cotidianas, ora da disputa pela posse de bens no interior destas redes de sociabilidade.

De fato, a natureza interativa destes conflitos contagia a mecânica do seu processamento. No direito interativo, o objeto da queixa não é determinado no início da audiência. Ao contrário do que acontece no Fórum Jurídico oficial, ele vai alterando sua forma, extensão e conteúdo à medida que a negociação avança.

Durante os trabalhos de mediação uma queixa de "abuso sexual" pode ser convertida numa "história de amor", assim como uma denúncia de espancamento pode se transformar num caso de possessão ou "pertubação espiritual". Segue-se que, no jogo retórico, as intervenções da policial-mediadora e dos litigantes podem tanto caminhar no sentido da restrição, quanto da ampliação da queixa inicial. A sua primeira apresentação pelas partes envolvidas constitui apenas um momento preliminar que marca a abertura das negociações.

O que parece ser importante neste primeiro estágio é emprestar voz e propriciar a catarse coletiva, isto é, criar um espaço inaugural no interior do campo retórico para a dramatização e o mapeamento das múltiplas alegações que, do ponto de vista dos atores, justificam e conferem sentido às suas hostilidades.

Este tipo de licenciosidade consentida faz aparecer o campo moral e afetivo da conflitualidade, da mesma forma que entrega inicialmente o controle do discurso às partes envolvidas no litígio.

O momento é delicado e sensível: seu ritmo é pontuado pelas desmesuras, despropósitos, enfim, toda sorte de performances emocionais. Os ânimos ficam exaltados e todos falam ao mesmo tempo, disputando a atenção silenciosa da mediadora. Os gritos se misturam às súplicas, as "crises de nervos", aos choros, às picuinhas e às acusações, preenchendo de intensidade o início do processo decisório.

A primeira impressão que se tem é que se está diante de uma ruidosa manifestação babélica incapaz de fazer prosperar qualquer tipo de resolução. Rosane, uma das policiais-mediadoras, comenta a importância dos momentos iniciais da negociação:

(...) "o trabalho não é moleza, mas você se acostuma com o movimento. É o jeito deles...Você tem que ter muito jeito para lidar com os problemas dessa gente. Para conseguir alguma coisa deles, você tem que deixar eles desabafarem, tem que fazer eles se acalmarem".

Penso que esta forma performática de reconstruir o objeto do conflito, ao invés de inviabilizar a desejada conciliação, parece maximizar as possibilidades de produzir o acordo final, já que reconhece as relações e seus atritos como cenário da discussão. Segue-se que o fato-denúncia tende a ser ampliado, chegando a se confundir com o próprio campo de sociabilidade dos atores: no curso da argumentação, o contorno do objeto do litígio se confunde com sua matriz interativa.

Na prática, a conversão da queixa em objeto de conflito é, através da negociação da palavra, objeto de acordo entre os participantes. As proposições da policial-mediadora não necessariamente coincidem com as alegações e os interesses das partes e dos demais presentes. E o jogo retórico que daí emerge faz com que a matéria em discussão vá sendo fechada e reaberta, até o final da negociação.

Em função do grau de amplitude do campo retórico do processamento informal de litígios, não se pode observar a existência de um único critério que distinga, com precisão, o que será considerado relevante ou irrelevante no curso da decisão. Em várias situações pode-se observar que o tratamento do conflito ocupa-se de questões que não foram expostas anteriormente pelas partes, mas trazidas ao debate pela mediadora. Num certo momento da resolução de um caso de disputa pela posse de bens domésticos, a policial Cristina, testanto o marido da queixante, faz a seguinte pergunta:

(...)"Tem quanto tempo que o Sr. não procura a D.Neide ? Seu Isaías, O Sr. anda comparecendo? O Sr. tem que procurar a D. Neide, isto é obrigação do marido e da mulher. A Sr.ª está ouvindo D. Neide? O casal tem que viver bem, tem que ter aquela união."

Do mesmo modo, o jogo argumentativo pode priorizar episódios narrados que, a princípio, foram considerados secundários, acidentais ou inconsistentes pela mediadora ou pelos participantes. Observa-se, então, que o forum informal das DEAMs faz um uso extremamente flexível dos princípios do "caso julgado" e dos prazos de prescrição, comuns ao sistema jurídico estatal. As questões já discutidas podem retornar ao debate, se no curso das negociações estas mesmas questões forem consideradas importantes pelos participantes.

Sousa Santos (1988), ao descrever o "direito de pasárgada", chama atenção para o fato de que este tipo de procedimento se estende àquelas situações vivenciadas antes da instauração do conflito. Assim, um episódio vivido num tempo passado (mesmo que narrado com imprecisões) pode ser incorporado como "objeto do processo". Sua anterioridade histórica em relação à queixa não aparece como razão suficiente para o acionamento automático da prescrição.

Os fatos passados são, pois, reeincenados, ou melhor, reiventados no processo de resolução de conflitos. Talvez se possa dizer que o campo retórico da decisão informal possibilita uma espécie de verticalização semântica da cronologia dos eventos acionados: a temporalidade do fato-denúncia é de tal maneira esgarçada que se confunde com a própria biografia dos litigantes[57].

A mesma imprecisão que se faz notar entre as matérias consideradas relevantes e irrelevantes, reaparece na distinção formal entre as questões explícitas e implícitas. Se o mundo jurídico oficial desconsidera formalmente o discurso implícito, o fórum informal das DEAMs faz uso dos lugares invisíveis da linguagem, isto é, incorpora tudo aquilo que é colocado no jogo retórico sem ser dito.

Contagiado pela linguagem do senso comum, o direito interativo delega um lugar estratégico à dimensão implícita das narrativas ali apresentadas. O não-dito é partilhado e manipulado pelos presentes e sem ele a parte visível, falada do discurso torna-se incognoscível. Sua produção, distribuição e consumo no interior do campo retórico orienta o processamento do sentido das intervenções e os rumos da discussão.

Aqui o não-dito adquire um carater normativo. Ele fala, remete para algum lugar, "tem uma intenção" e, por conseguinte, quer dizer alguma coisa porque sempre pode haver "algo por trás escondido". Pausas, respirações profundas, hesitações, silêncios abruptos, refletem, censuram, consentem, alimentando a dinâmica da produção do acordo[58]. De certa maneira, o uso extensivo dos recursos implícitos da linguagem se reporta, por um lado, aos graus de identificação e proximidade entre os participantes, por outro, aos níveis de adesão destes mesmos participantes ao próprio processo discursivo através do qual se desenvolve a negociação[59].

O revesamento entre as intervenções implícitas e explícitas durante o processamento dos litígios, articula-se com a produção da "verdade". Tal como no direito oficial, o direito interativo também se ocupa de construí-la, no entanto, ele a elabora de uma maneira peculiar.

Para as pessoas que procuram os serviços de mediação a idéia da verdade aparece associada à materialidade dos atos, ou melhor, à concreção das histórias narradas. O forte apelo à "honestidade" da descrição é, na verdade, uma reverência à própria palavra negociada.

Na instituição do direito interativo, a palavra não é apenas um substituto instrumental da coisa em si. Ela se apresenta como a própria coisa. A linguagem é o ato e vice-versa: os fatos e as palavras são percebidos como uma mesma e única realidade e, às vezes, tem-se a impressão que discursam através dos seus protagonistas.

A verdade, portanto, não aparece como uma entidade abstrata cuja produção é exterior ao que é contado. Ao contrário, ela parece fazer parte da própria narrativa. Na frente da autoridade policial conta-se "tudo". As cenas relatadas, os episódios descritos concorrem entre si não como simples versões relativas, mas entram no jogo retórico como peças concretas que se juntam na reconstituição da realidade. Assim, os atores não interpretam, eles testemunham suas histórias de vida.

Não resta dúvida que o caráter informal do direito interativo amplia o espaço de argumentação. A dimensão acessível de sua linguagem ordinária, a flexibilidade nos procedimentos, a generosidade na distribuição da palavra permitem uma maior participação na produção do acordo.

Em outros momentos deste texto chamei atenção para o modo pelo qual este tipo de juridicidade se apropria das formas e procedimentos do direito estatal. O uso genérico destes dispositivos formais ajusta-se à flexibilidade da dinâmica informal do direito ali processado: a falta de cumprimento de uma formalidade ou de um requisito processual não parece prejudicar o jogo decisório, ainda que algumas vezes estes mesmos dispositivos sejam - conforme já afirmei - estrategicamente acionados como fundamento da decisão.

De fato, não se observa na variedade de casos atendidos nas DEAMs, uma uniformidade na utilização dos mecanismos formais. Sua aplicação varia em função da sua instrumentalidade em cada situação, isto é, segundo a própria dinâmica da negociação[60]. Contudo, esta falta de padronização não significa uma abertura retórica para o caos. Ela é consequência das exigências normativas internas que vão se definindo no curso do processo de prevenção ou de resolução dos conflitos.

Apesar das diferenças existentes entre os direitos oficial e interativo, pode-se reconhecer que alguns princípios são por eles compartilhados. O formalismo do direito interativo também confirma a relação de assimetria entre a palavra oral e escrita. Se a mediação informal valoriza a oralidade em virtude da sua capacidade de adaptar-se aos diversos tipos de público e demandas, ela do mesmo modo reafirma a força moral da palavra escrita. Tanto as partes quanto a mediadora percebem a palavra escrita como revestida de uma carga maior de compromentimento. Ela reforça a ambiência de oficialidade no interior da negociação informal. A palavra escrita aparece como o lugar privilegiado do registro, uma espécie de exílio da memória que atesta a legitimidade e a suposta "legalidade" do acordo produzido. O "escrito" atesta o "cumprimento do dever" e o não esquecimento da materialidade e da "verdade" que , segundo os participantes, a palavra contém.

Tratando da distinção entre as linguagens oral e escrita, é evidente que a relevância conferida à palavra escrita encontra-se previamente garantida. A mediação informal de conflitos ocorre numa agência estatal oficial - a Delegacia de Polícia, onde faz parte da rotina produzir e "levar documentos". Todavia o "valor do papel" e sua manipulação pelos participantes adquire um significado bastante singular no rito de acareação. Os papéis manipulados durante a negociação não se restringem aos documentos oficiais produzidos pela polícia[61]. Além das petições, registros de ocorrência e V.P.I.s[62] são incorporados outros tipos de "comprovantes" que na maior parte das vezes possuem apenas efeito simbólico. Recibos de luz, bilhetes, carnês da previdência, fotos da família, notas fiscais de eletrodomésticos, antigos crediários quitados, extratos de poupança, notinhas de supermercado, receitas médicas, confundem-se com as certidões e carteiras de identificação oficiais (quando existentes), compondo um vasto leque de "documentos" espontaneamente apresentados pelos litigantes no curso do processamento do conflito[63]. No interior do direito interativo, estes comprovantes adquirem uma força normativa menos em função de seus conteúdos singulares e mais por serem peças escritas e, por isso mesmo, percebidas como oficiais[64].

Pode-se argumentar que esta excessiva importância emprestada aos "comprovantes", é uma espécie de reflexo do modo pelo qual a tradição burocrática e autoritária do estado brasileiro tem dialogado com as classes menos favorecidas que, rotineiramente, tem que "mostrar os documentos".

De todo modo, é importante salientar que esta cidadania atestada pelos papéis além de apontar para a exclusão objetiva do mercado dos direitos, pois "sem os documentos a gente não faz nada, a gente não é nada", revela um procedimento singular de ordenação da memória e de diferenciação da identidade no interior do próprio grupo.

O "gosto popular" pelos registros, comprovantes, certificados, etc, parece indicar que os "papéis" operam tanto como instrumentos através dos quais as histórias de vida são contadas e contabilizadas, quanto como signos de distinção e prestígio[65]. Assim, além de denunciar a vontade de reconhecimento e legitimidade, eles constituem um patrimônio moral que confere ao portador dignidade, respeito e consideração[66]. Às vezes, fica-se com a impressão de que os documentos constituem uma realidade em si mesma, auto-referida substituindo o próprio sujeito. Aquilo que é registrado, carimbado, parece adquirir vida própria na medida em que ganha autonomia em relação às vontades ou interesses que lhe deram origem[67].

* As Coisas e sua conversa.

Além da circulação da palavra, das alegorias, dos recursos de dramatização, etc, o campo discursivo da mediação de litígios empresta voz aos objetos - as "coisas", que podem ser classificados como dispositivos promotores de normatividade e enunciadores de conflito.

Na gramaticalidade do direito interativo o mobiliário, os murais, os carimbos, os formulários, as placas indicativas, etc, são interpretados como instrumentos acessórios na geração de ordem. Isto porque no processamento retórico da negociação, estes "objetos oficiais" anunciam o prévio distanciamento entre a instância policial - terceira parte, instituidora de normatividade - e as vontades privadas das partes.

Pode-se dizer que a convocação do espaço oficial para resolução de disputas particulares resulta da aceitação desta distância impressa concretamente nas "coisas" que compõem, por exemplo, uma delegacia. Ora, do plantão de atendimento à carceragem estes objetos se fazem presentes, anunciando a manifestação virtual da lei e a pertinência da ordem. A organização administrativa do espaço, assim como os elementos que singularizam os usos e sentidos de cada divisão física, informam que se está diante de uma "Repartição do Governo", ou melhor, de uma Agência Pública.

De certo modo estes objetos operam simbolicamente como separadores mecânicos que alertam a clientela de que "dar entrada" na Delegacia significa ultrapassar a esfera da administração privada dos litígios.

A própria autoridade policial, personificação da normatividade solicitada, é parte deste necessário e desejado afastamento. Sua legitimidade para o arbitramento informal está secundada pela referida distância formal da instituição, e por conseguinte, pela concordância em relação ao modo pelo qual os conflitos são ali processados.

Cumpre observar que a adesão da clientela às regras informais do jogo decisório, revela um tipo de identificação entre a demanda e os serviços de mediação cujo substrato é o próprio distanciamento existente entre a instituição policial e os litigantes. Se por um lado o Fórum Jurídico das DEAMs é uma espécie de configuração sócio-política das expectativas dos demandantes, por outro lado, deles deve se diferenciar no intuito de executar o arbitramento dos seus conflitos. Em outras palavras, o exercício da mediação pressupõe que este Fórum produza um mínimo de alteridade em relação às partes[68].

Assim, os objetos oficiais parecem, então, anunciar esta estratégica descontinuidade, atestando o deslocamento da ordem privada para a instância pública. A máquina de escrever, os arquivos, os papéis timbrados, os carimbos assim como a sala de investigação, o gabinete da delegada, o cartório, etc, são, na verdade, objetos fomentadores de estranhamento. Através destas "coisas" oficiais, experiências, episódios descritos, histórias vividas são metamorfoseados em confissões, petições, denúncias, enfim, em instrumentos retóricos de negociação que ultrapassam as vontades privadas que lhe deram origem: as situações vividas e narradas no fórum informal migram do controle exclusivo das partes para a dimensão informal, entretanto pública da mediação[69].

Mas se no mundo policial os objetos trazem normatividade, no universo dos litigantes as "coisas" ensejam contendas. No interior das redes de sociabilidade os objetos aparecem como a expressão concreta e pontual do litígio. Eles constituem, pois, a presença virtual do conflito. É através da disputa pelas "coisas da casa" que os dilemas intersubjetivos e as rupturas de expectativas nas interações cotidianas são, na maior parte das vezes, dramatizados.

A geladeira, a mesinha de centro, a televisão, o guarda-roupa, a água potável retirada do poço, o disco do Elimar Santos, os brinquedos da criança, o aparelho de som, o enxoval, etc, apresentam-se como entidades motivadoras de conflitos na gestão da vida familiar.

Observa-se que uma parte significativa dos casos atendidos nas DEAMs dizem respeito à regulação da partilha ou a definição da posse e regulamentação do uso dos bens domésticos.

No mundo jurídico oficial estas "coisas" podem ser classificadas como bens antifernais, se forem doações do marido à mulher antes do contrato conjugal; bens aqüestos, quando adquiridos na vigência do matrimônio e, principalmente, bens parafernais se no regime dotal do casamento, constituem propriedade da mulher e encontram-se sob sua administração e gozo.

É importante salientar que a parte especial do Código Civil Brasileiro sobre o "Direito de Família", estabelece no art. 263 os bens que são excluídos do contrato conjugal. As "roupas de uso pessoal", os "livros", documentos, aliança de casamento, "instrumentos de profissão", retratos da família, enfim, toda sorte de bens reservados[70] não constituem, salvo exceções previstas na lei, objetos de comunhão ou de partilha entre os contratantes. Entretanto, estas mesmas parafernálias aparecem como elementos de disputa entre os litigantes.

Pode-se dizer que as "coisas" da vida doméstica ocupam a centralidade do discurso daqueles que procuram os serviços de mediação das DEAMs. Na verdade, através das disputas pelas coisas pode-se observar o modo pelo qual os litigantes constroem sua percepção sobre o "direito".

Nota-se que no seu imaginário a categoria "dever" é substituida pela idéia de "obrigação". As obrigações são uma espécie de repertório de juízos pragmáticos que, a princípio, orienta a convivência social: deve-se "honrar a palavra", ser boa mãe, ser bom marido, ganhar a vida honestamente, "chegar junto", "tratar bem os vizinhos", "servir o marido", etc.

O mundo das obrigações é, pois, um conjunto de premissas morais cujo conteúdo tende a ser naturalizado na prática da experiência interativa. Ele é percebido como um patrimônio coletivo, isto é, como algo que previamente se sabe e que, por isso mesmo, dispensa ser formalmente conhecido. O mundo das obrigações é, portanto, interpretado como uma realidade perene que deve ultrapassar a temporalidade e os riscos das ações individuais.

É, precisamente, com base neste "mundo das obrigações" que os contratos sociais são efetuados e cumpridos. Portanto, é também aqui que se pode gerar conflitos. Observa-se que as disputas, os litígios, os desencontros nas expectativas são vivenciados como rupturas de compromissos moralmente assumidos. Segue-se que neste tipo de concepção, não é um direito adquirido e violado que deve ser restabelecido, e sim as chamadas "obrigações" firmadas.

Se a ordem política estatal concebe o cidadão como sujeito de direitos, a percepção ordinária daqueles que freqüentam fórum informal das DEAMs revela que esses direitos não aparecem como um atributo inalienável dos indivíduos.

Para a clientela das Delegacias da Mulher, o direito de todos é uma realidade a ser conhecida, isto é, a ser instituída no ato mesmo da negociação ou no restabelecimento das obrigações. Ora, isto significa dizer que o "estado de direito" tal como é definido pelo mundo da legalidade é reconhecido como uma demanda que antes de ser restaurada, primeiro precisa ser concretamente estabelecida.

Numa relação de complementaridade com o mundo das obrigações, os "direitos" são percebidos como entidades tão provisórias e vuneráveis quanto as coisas colocadas em disputa. Este modo de interpretar o direito emerge de uma realidade que parece estruturar-se na precária e frágil imagem da posse.

A estabilidade dos bens sugerida pela idéia formal propriedade é, no universo dos litigantes, uma expectativa. Segue-se que, a percepção dos direitos aproxima-se do destino conferido aos objetos domésticos: os direitos solicitados podem perecer, perder a serventia ou simplesmente mudar de dono[71]. Simultaneamente concreto e efêmero, o direito aparece transvestido nas próprias coisas. Ele é, portanto, disputado, pretendido e partilhado assim como o fogão, o liquidificador, anel de noivado, etc.

Esta idéia do direito como emergente do jogo conflituoso parece indicar que ele é não só um "bem" a ser adquirido, como também objeto de acordo no processamento dos litígios. O direito que se institui no fórum informal possui uma natureza interativa na medida em que é instituído através da negociação entre os participantes.

Se por um lado, este tipo de percepção retrata o distanciamento de certos segmentos da sociedade em relação ao mercado dos direitos, por outro lado, revela um modo singular de aquisição de cidadania. A prestação informal de serviços jurídicos realizada pelas DEAMs, ao trazer as disputas de interesses para esfera pública, está, de alguma maneira, encurtando a distância existente entre a legalidade e os interesses dos demandantes.

Os trabalhos de mediação, aconselhamento e conciliação das partes constituem, na prática policial, uma tarefa pedagógica que se desdobra em duas direções: o fórum das DEAMs transpõe para o mundo jurídico os conflitos, ao mesmo tempo que traduz para os litigantes as normas e princípios do mundo legal.

***

As atividades das DEAMs, como fórum jurídico, consistem na ratificação de acordos estabelecidos entre as partes e na resolução das disputas ou litígios emergentes. As Delegacias da Mulher, no exercício extraordinário de funções judicantes, fazem aparecer um tipo de "legalidade" cuja característica básica é a constituição de uma oferta de serviços jurídicos compatível com as singularidades da demanda.

O direito instituído na reunião das partes, não parece constituir uma juridicidade paralela ou uma declarada recusa à ordem legal. Ainda que distinto, este direito faz um uso intenso e complexo da prática jurídica oficial. Conforme foi demonstrado, a normatividade construída no ato mesmo do processamento dos litígios, subordina a utilização dos princípios jurídicos formais às necessidades do jogo argumentativo.

Nota-se, então, que os mecanismos de resolução dos conflitos acionados no direito interativo, revelam uma dinâmica flexível, reversível e extremamente seletiva. O campo retórico estruturado na linguagem ordinária, a baixa especialização jurídica dos policiais em relação aos litigantes, a participação ativa do auditório no processo decisório, a incorporação da malha interativa na definição do litígio, etc, são algumas das características do discurso jurídico processado nas DEAMs.

A informalidade resultante destas adaptações nos expedientes formais, assim como a presença de um padrão de arbitramento centrado na mediação das partes aproxima o "ilegal" Fórum Jurídico das DEAMs do tipo de prestação jurídica oferecida pelas "Juntas Conciliatórias" oficiais. Guardadas as devidas cautelas, é possível afirmar que a eficiência das atividades de conciliação desempenhadas pelas Delegacias da Mulher, constitui uma valiosa demonstração, assim como outras experiências não-oficiais, da necessidade premente de se viabilizar um acesso democrático à justiça no Brasil.

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Direitos da Mulher, O Que Pensam os Parlamentares. Brasília. CFEMEA, 1993.

Participação Político-Social 1988, vs. 1, 2 & 3, PNAD 88 . Rio de Janeiro. IBGE, 1990.

ANEXO I

Modelo de Petição

ILMª DRª DELEGADA DA DEAM-NITERÓI.

PETIÇÃO____________913-02/94.

Eu,_________________________,Nacionalidade__________,EstadoCivil_______________,

Idade_____, nascida em_________, filha de ________________e ______________________,

nº de identiadade_______________, profissão___________, endereço do trabalho___________

___________, telefone__________, residente_______________________, telefone________.

Venho expor a V.Sª e ao final requerer providências.

Estou sendo_______________pelo Sr. ________________, nacionalidade___________, natural do________, Estado Civil ___________, Idade_____, nascido em ___________,

filho de ____________________e______________________, nº de identidade_____________,

profissão_____________, endereço do trabalho_____________________, telefone__________,

residência___________________, telefone__________, pelo seguinte fato:________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

TESTEMUNHARAM O FATO:

Sr.(a)_________________________________telefone_____________________________

Residente_______________________________________________________________

Sr.(a)__________________________________telefone__________________________

Residente_______________________________________________________________

Declaro não possuir meios para prover a custas do processo, por ser pobre.

Niterói,_____ de ____________ de 1994.


[1] A pesquisa que resultou na elaboração deste texto, faz parte da linha de pesquisa sobre Violência e Criminalidade do Núcleo de Pesquisa do ISER, coordenada pelo professor Dr. Luiz Eduardo Soares. Sua supervisão foi realizada pela Antropóloga Barbara Musumeci Soares e contou com a participação das pesquisadoras Bianca Freire, Luciana Villela, Márcia Skaba e Patrícia Teixeira. Registro nossa gratidão pela generosidade das Delegadas e demais funcionários que, nas Delegacias, nos recebeu, prestou informações e nos introduziu a seus respectivos arquivos.

[2] A Pesquisa sobre Violência contra Mulher foi desenvolvida no âmbito do Núcleo de Pesquisa do ISER . O trabalho procurou combinar os procedimentos tradicionais de análise quantitativa com as técnicas de investigação qualitativa. Em julho de 1993, demos início às nossas atividades de pesquisa. Nesta primeira etapa, foi realizado um levantamento dos Relatórios Mensais das Atividades das DEAMs/RJ e uma pesquisa por amostragem nas "fichas de atendimento" referentes ao ano de 92. Realizamos também uma aproximação comparativa destes dados com as informações nacionais reunidas pela C.P.I da Violência contra a Mulher e as tabelas produzidas pela PNAD-1988 sobre vitimização. Este primeiro esforço de sistematização das fontes disponíveis resultou na publicação do relatório "Violência contra a Mulher: levantamento e Análise de dados sobre o Rio de Janeiro em contraste com Informações Nacionais". A segunda etapa deu seqüência ao trabalho de mapeamento das fontes e incluiu incursões ao campo. No período de setembro de 1993 a fevereiro de 1994, a equipe realizou visitas semanais regulares nas duas Delegacias selecionadas para o trabalho de campo.

[3] Esta história foi coletada na DEAM Caxias, em janeiro de 1994. A síntese apresentada neste texto foi inspirada no diário de campo da assistente de pesquisa Márcia Skaba.

[4] Durante o trabalho de campo, além dos depoimentos informais, foram registradas 48 histórias de vida através de questionários abertos.

[5] Para as chamadas camadas populares a polícia se constitui na autoridade local conhecida. Mas a proximidade da polícia com a população pobre pode ser compreendida pelo fato de que muitos policiais são provenientes dos setores pobres e parecem estar mais próximos do modo pelo qual eles interpretam e resolvem seus conflitos. Tanto Luciano de Oliveira (1984) quanto Kant de Lima (1994) observam que os bordões da polícia são extraídos do "imaginário popular" e promovidos a categorias classificatórias da ação policial.

[6] O suplemento especial "Justiça e Vitimização" da PNAD-88 revela que, no Brasil , do total de pessoas que estiveram envolvidas em conflitos nos últimos cinco anos, 45% entraram com ação judicial e 55% não utilizaram a justiça.

[7] A respeito da mentalidade jurídica no Brasil e sua lógica em uso, confira Junqueira, 1993.

[8] É importante salientar que a própria legislação brasileira dispõe de instrumentos legais para resolver as falhas e lacunas existentes no tratamento objetivo da lei. Nas situações consideradas atípicas a justiça pode fazer uso das fontes indiretas (costumes e doutrina jurídica) para proferir sua decisão. O recurso formal ao conjunto de sentenças transitadas e julgadas pelos Tribunais Superiores às questões de direito é conhecido no mundo jurídico como "Jurisprudência". Este dispositivo permite a interpretação reiterada de casos concretos submetidos a julgamento, ou seja, abre espaço formal para que decisões judiciais anteriores reiterem futuras decisões. Para uma discussão sobre as Fontes do Direito e a interpretação das lacunas e falhas do Direito objetivo, ver Nader, 1988.

[9] O termo adjudicação, em seu sentido técnico, designa um sistema de decisão que se caracteriza pela imposição de uma determinação, normativamente fundada, que favorece uma das partes com exclusão das restantes. Confira Sousa Santos (1988).

[10] O Código Penal ainda em vigor no Brasil é um Decreto-Lei do Estado Novo - Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

[11] Ver Acosta, 1974:22.

[12] Na "Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal", Lei nº 7.209 de 11-7-1984, o então Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel reconhece no 5º parágrafo que : "Apesar desses inegáveis aperfeiçoamentos, a legislação penal continua inadequada às exigências da sociedade brasileira. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como resposta básica

ao delito, a rejeição social dos apenados e seus reflexos no incremento da reincidência, a sofisticação tecnológica, que altera a fisionomia da criminalidade contemporânea, são fatores que exigem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de contenção do crime, ainda os mesmos concebidos pelos juristas na primeira metade do século."

[13] Sobre os Movimentos Críticos do Direito e as iniciativas de informalização da Justiça no Brasil, ver Junqueira , 1993.

[14] A arbitragem policial representa ainda uma atividade tradicional da polícia brasileira. "Desde o séc. XIX as pessoas acusadas de determinados crimes eram submetidas a uma modalidade especial de julgamento no Brasil. Um desses crimes era a já mencionada vadiagem, hoje classificada como contravenção penal pela legislação brasileira. O código Penal Imperial de 1830 arrolava tanto a mendicância quanto vadiagem como crimes (arts. 295 e 296). O código Penal Imperial de 1832 atribuía o julgamento desses crimes - juntamente com prostituição e desordem - ao juiz de paz (art.12, parágrafo 2 e 7; arts 121 e 122). Contudo, na reforma processual que reforçou o papel da polícia no sistema judicial, esses crimes passaram a ser julgados pela polícia (art.3, parágrafo 4; arts. 111 e 193, Regulamento 120, 31 de dezembro de 1842)" ( De Lima, 1994:99).

[15] No mural da DEAM-NITERÓI criada em 1987, o "Boletim de Serviço" informa:

"Art. 4 - A DEAM-NITERÓI, com atuação restrita ao Município de Niterói, conhecerá, concorrentemente com as Delegacias Policiais sediadas no aludido Município, os crimes de lesão corporal (dolosa), aborto provocado por terceiro, abandono de incapaz, maus tratos, constrangimento ilegal, ameaça, estupro, atentado violento ao pudor, corrupção de menores, sedução, rapto, sequestro e cárcere privado e realizará todas as medidas de polícia judiciária pertinente.

* 2º. Os Titulares das unidades policiais sediadas no Município de Niterói, até o dia 25 de cada mês, remeterão à DEAM-NITERÓI cópia dos Registros de Ocorrência dos casos verificados na respectiva circunscrição envolvendo ofendida, para controle e análise dessa unidade especializada."

[16] A clássica crítica feminista às DEAMs consiste na alegação de que estas delegacias se distanciaram de sua vocação e se transformaram num "consultório sentimental". Para uma apreciação histórica das perspectivas feministas ver Grossi, 1994.

[17] De acordo com as informações coletadas nos Livros-Tombo, nestes oitos anos de atuação das Delegacias da Mulher, foram instruídos um total de 8.519 inquéritos. A distribuição destes inquéritos numa série histórica oscila segundo o ano de implantação, no estado do Rio de Janeiro, das cinco delegacias especializadas:

1986*

1987**

1988

1989

1990

1991***

1992

1993

256

960

833

738

1072

1155

1696

1809

* ano de implantação da DEAM Centro-Rio.

** ano de implantação das DEAMs Niterói e Caxias.

*** ano de implantação das DEAMs Nova Iguaçu e Campo Grande.

[18] Durante o trabalho de campo era comum ouvir toda sorte de observações sobre a "Delegacia da Mulher". Segundo certos policiais "ficar ali era um castigo" para aqueles que não tinham prestígio dentro da corporação, porque "aqui você trabalha muito e não vê o resultado". Já para uma boa parte das policiais o "trabalho é bonito e de responsabilidade", mas deveria também "ser feito por assistentes sociais e psicólogas".

[19] A história das "Cinco latas de Leite" é um bom exemplo deste tipo de resolução.

[20] Segundo a legislação criminal o acordo só é legalmente permitido em situações específicas, isto é, quando

os interesses são considerados "privados. É o caso dos "Crimes de Ação Penal Privada" onde o processamento

da ação depende da iniciativa da parte que se considera lesada.

[21] A restrita liberdade de atuação dos juízes criminais dificulta a aplicação de "penas alternativas".

[22] O Código de Processo Penal de 1941, ainda em vigência, restabelece o sistema de duplo inquérito instituído pela primeira vez no Brasil em 1870 . Este sistema é composto de um inquérito policial preliminar que pode ou não ser incorporado ao inquérito judicial ou processo. A "Exposição de Motivos" da referida legislação justifica a necessidade do sistema de duplo inquérito esclarecendo que a proximidade e o possível comprometimento emocional com os crimes apurados possibilita erros na avaliação policial que devem ser corrigidos pelo judiciário. Observe que este tipo de sistema viabiliza, na prática, a competição entre as fontes pela melhor verdade. Como parece não existir um conjunto de regras que possa decidir onde está a verdade,

a decisão reduz-se a uma questão de autoridade e não de regra. Para uma rica análise histórica das atribuições judiciárias da polícia brasileira ver Lima, 1994.

[23] Oliveira (1984) e Kant de Lima (1994) apresentam uma valiosa contribuição sobre paradoxos e contradições existentes entre a lógica-em -uso na justiça e os procedimentos policiais.

[24] Pode-se imaginar que se todos os casos que chegam às delegacias fossem submetidos a rigorosa

obediência da lei , seria materialmente e politicamente impossível o já sobrecarregado sistema jurídico resistir à falência.

[25] Junqueira, 1993.

[26] Lima, 1994.

[27] A bibliografia antropológica sobre formas não-ocidentais de decisão de conflitos é razoavelmente

extensa. "Structure and Function in Primitive Society" de Radcliffe-Brown, "Crime and Custom in Savage Society" de B. Malinowski, "The Nuer" de Evans-Pritchard, "The judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia" e "Law and Ritual in Tribal Society" de Max Gluckman, "Justice and judgment among the Tiv" de P. Bohannan são apenas algumas das obras dedicadas ao estudo da realidade jurídica das sociedade "exóticas".

[28] Este parece ser o caso dos poderes paralelos do jogo do bicho, do "patronato", do "coronelismo", das organizações criminosas que, em contextos e momentos distintos, ambicionam concorrer com a ordem pública.

[29] Boaventura de Sousa Santos (1988) adverte sobre a existência de vários pólos de produção jurídica à medida que se adicionam novos contextos. É neste sentido que o autor faz uso da noção de interlegalidade. Este conceito é pensado a partir da definição de quatro eixos básicos de produção formal de direito: o universo doméstico, o da produção, o da cidadania e o global (mundialidade). Todos eles correspondem a quatro modos de legalidade, isto é, a diferentes espacialidades e temporalidades a que os sujeitos estão submetidos.

[30] A expressão Direito Achado na Rua, refere-se às normatividades produzidas por grupos sociais marginalizados. Ela foi construída por Roberto Lyra Filho, fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira - NAIR, para sistematizar a sua proposta de um humanismo dialético, ou seja, uma filosofia jurídica que permita transformar o direito em instrumento de libertação.

[31] Segundo Junqueira (1993), a teoria do direito brasileiro, herdeira da tradição liberal clássica, ainda não incorporou as transformações ocorridas no próprio pensamento liberal. Se, para o modelo liberal clássico, a sociedade é constituída somente por indíviduos com suas carências e interesses, na perspectiva "neoliberal",

a vida social é também composta por ações coletivas, isto é, além de indivíduos existem grupos distintos competindo por recursos escassos.

[32] Santos, em seu livro "Razões da Desordem"(1993) realiza uma rica análise sobre os altos custos de participação política-social no Brasil e o consequente acesso desigual ao mercado da cidadania.

[33] Uma parte significativa dos litígios processados nas agências policiais e societais referem-se a conflitos de natureza civil.

[34] A privatização de conflitos e o uso informal de recurso coativos são também encontrados nas relações de trabalho no mundo rural.

[35] Ver Soares (1993a e 1993b).

[36] Para Roberto Da Matta, o Brasil vive uma espécie de dilema estrutural entre as éticas igualitária e hierárquica que favorece a produção de um "espaço social relacional" através da interpenetração das ordens pública e privada.

[37] Luciano de Oliveira (1984) observa que, na relação entre justiça e sociedade, um dos grandes desafios é

procurar entender porque o sistema jurídico não tem se mostrado capaz de monopolizar a produção, distribuição e circulação do direito na sociedade brasileira.

[38] Raríssimas vezes os litigantes respondiam com precisão sobre sua renda. Alguns demonstravam uma certa vergonha quando perguntados sobre suas remunerações. Parte expressiva das pessoas que procuram às DEAMs pertencem ao mercado informal. De todo modo, através de outros indicadores, tais como vestuário, comportamento, linguagem, etc é possível, resguardando as possíveis imprecisões, caracterizá-los como provenientes das "camadas populares".

[39] Esta história foi editada a partir do diário de campo da assistente de pesquisa Patrícia Teixeira.

[40] As policiais das DEAMs preferem utilizar o termo técnico "parte" do que os qualificativos "vítima" e "agressor". Elas esclarecem que enquanto o termo "parte" é um atributo neutro, as palavras "vitima" e "agressor" sugerem uma versão dos fatos que pode não ser a verdadeira . Acompanhando mais de perto a sociologia das policiais, observa-se que a idéia de parte remete à imagem de pertencimento ao todo e, mais propriamente, à idéia de inclusão numa rede de relações. Note-se que a rede de sociabilidade é acionada no discurso dos informantes como o lugar do conflito. Pode-se dizer que a queixa proferida não se reduz a apresentação de um delito. Ao contrário, o que parece ser denunciado é a própria história de vida.

[41] Segundo as explicações que me foram fornecidas, a "petição" só se faz necessária nos casos de ação privada.

Na petição devem constar os dados da "vítima" e do "agressor", um breve histórico do litígio e uma declaração de que a parte ofendida não tem recursos para custear uma futura ação judicial. Não se pode deixar de comentar que o modelo da petição e, sobretudo, da antiga ficha de atendimento (suprimida em algumas delegacias no 2º semestre de 93) pressupõem que o agressor seja homem e que seja conhecido da vítima. Segue em anexo o modelo da petição utilizada na DEAM-NITERÓI.

[42] O termo "materialidade" pertence ao bordão jurídico-policial e se refere à avaliação policial sobre a consistência e objetividade das provas e indícios sobre o ocorrido. Na fala dos informantes o sentido desta categoria é acionado com relação à veracidade das histórias narradas.

[43] Conforme já foi mencionado, a classificação técnica das denúncias é chamada de tipificação. "Tipificar" consiste em ajustar o fatos trazidos ao conhecimento policial a algum tipo legal, previamente definido por lei como delito. A tipificação pode se alterar no curso da investigação policial, assim como na própria instrução do inquérito.

[44] As notificações policiais são chamadas de "convites". Assim, enquanto a polícia convida as partes a prestarem esclarecimentos, a justiça ordena o comparecimento no tribunal. Esta distinção se justifica pelo fato de que o não atendimento à intimação do juiz pode ocasionar consequências legais, o que parece não acontecer no caso da notificação policial. Entretanto, para os litigantes, um convite da polícia adquire a força de uma ordem judicial.

[45] Em todas as delegacias de mulher, o plantão de atendimento funciona com dois policiais - uma mulher e um homem. As delegadas e as policiais alegam que a presença masculina no atendimento "ajudar a impor respeito".

[46] É comum estas audiências acontecerem antes do registro de qualquer ocorrência policial de natureza criminal.

[47] No final das negociações, a policial-mediadora costuma informar aos participantes que as fichas, petições, registros, etc, só permanecerão arquivados mediante cumprimento do acordo. Uma vez rompido o pacto estabelecido, os "papéis voltam a correr".

[48] História baseada no material de campo de Bianca Freire e de Patrícia Teixeira.

[49] Certamente esta discussão acerca da retórica ordinária, sua gramaticalidade e estratégias discursivas pode tornar-se mais rica e complexa quando incorporar a perspectiva hermenêutica., tal como me foi sugerido pelo Prof. Dr. Luiz Eduardo Soares.

[50] Segundo Sousa Santos (1988), a "Ideologia do Legalismo" consiste na emergência de uma forma arbitrária de eliminar a complexidade moral e social dos conflitos, reduzindo-os a um número de parâmetros bem definidos. Para o autor, o legalismo é uma espécie de efeito perverso da excessiva especialização das funções jurídicas.

[51] Lembro que, em função do alto grau de especialização e das complexas conceitualizações, a linguagem jurídica oficial costuma ser interpretada pelo senso comum como uma linguagem indecifrável.

[52] Trecho de uma acareação, realizada em Niterói. O motivo da queixa consistia na venda da "geladeira das crianças" para um vizinho, realizada pelo marido "viciado em cachaça".

[53] Certas assertivas como "nós estamos aqui para defender a mulher, mas o Sr. tem o seu direito também" ou "isso aqui é uma delegacia da mulher, mas eu estou disposta a ouvir o Sr." evidenciam o modo pelo qual o conflito será processado.

[54] Esta possibilidade de interpretação foi incialmente apresentada por Soares (1993a).

[55] É comum nos meios policiais ouvir comentários jocosos tais como "as mulheres gostam de apanhar", "elas vem aqui dão trabalho e depois retiram a queixa", "as delegacias da mulher são uma fachada", etc.

[56] Do conjuto de histórias de vida coletadas nas DEAMs, um número significativo dizia respeito a relações cujo tempo de existência ultrapassava cinco anos.

[57] Apesar da ausência de rigidez na qualificação das matérias ao longo da negociação, o direito interativo não destrói integralmente a distinção entre objeto real e objeto processado, presente no direito estatal. Mesmo relativizada, esta distinção pode ser acionada, a qualquer momento, conforme as necessidades argumentativas da mediadora, por exemplo, o reforço da autoridade policial.

[58] Um ponto importante a ser ressaltado é a articulação entre os discursos explícito e implícito, que marca a temporalidade interna do jogo argumentativo. Durante o processamento do litígio observa-se a constituição de direfentes ritmos. Estes ritmos são como bússolas de condensação, redefinição e distribuição das múltiplas intervenções feitas pelos participantes ao longo da negociação.

[59] Não se pode deixar de comentar que o imaginário policial confere um expressivo destaque à face oculta dos discursos, uma vez que concebe a realidade como repleta de regiões secretas e práticas escondidas.

[60] Estes elementos estão a serviço da implantação persuasiva da normatividade.

[61] Estes documentos nem sempre se fazem necessários para dar início ao processo de resolução de conflitos.

[62] Na rotina policial, a V.P.I é o primeiro trabalho de investigação chamado "Verificação de Procedência de Informação".

[63] Segundo o levantamento da PNAD-88, da população de mulheres residentes na região sudeste,com idade igual ou superior a 18 anos, 68,69% não possui conta bancária; 36,25% não tem cadastro de pessoa física -CIC; 13,54% não tem título de eleitor; 43,56% não possui certidão de nascimento; 24,21% não possui carteira de identidade; 28,24% não tem carteira de trabalho e 82,76% não tem carteira de motorista.

[64] Este "gosto" pela oficialidade dos papéis talvez possa indicar uma espécie de crença na figura do contrato e um desejo de conferir legalidade aos acordos informais.

[65] Com razoável frequência os litigantes relatavam que certos documentos como certidões de nascimento e casamento eram plastificados, emoldurados e pendurados na parede.

[66] No universo popular outras práticas valorizam a palavra e seu registro. No jogo do bicho, por exemplo, "vale o escrito".

[67] Levi-Strauss (1986: 295), a respeito do surgimento da escrita faz o seguinte comentário: "Aparentemente parece que a sua aparição não deixaria de determinar modificações profundas nas condições de existência da humanidade; e que essas transformações deveriam ser principalmente de natureza intelectual. A posse da escrita multiplica prodigiosamente a aptidão dos homens para preservarem os conhecimentos. Concebê-la-íamos de boa vontade como uma memória artificial, cujo desenvolvimento deveria ser acompanhado por uma melhor consciência do passado, portanto, por uma maior capacidade para organizar o presente e o futuro".

[68] Não se pode deixar de comentar que estes movimentos de aproximação e afastamento dizem respeito ao fato de que neste tipo de processamento informal de litígios constata-se não só o uso não exclusivo da tecnologia conceitual específica do mundo jurídico, como também a baixa especialização dos atores institucionais.

[69] Observa-se que as coisas geradoras de normatividade fazem parte dos dispositivos coativos acionados no processamento do conflito. O borrão para "fichar", o revólver, a indicação do xadrez, etc, pertencem a um conjunto de medidas normativas utilizadas teatralmente para desmantelar os jogos de poder interno aos participantes.

[70] Segundo o Capítulo III, "Dos Direitos da Mulher", entende-se por bens reservados o produto do trabalho exercido e os bens com ele adquiridos.

[71] Espressões como "Esse direito é dela", "Eu estou no meu direito.." , "Eu vou te dar esse direito", "Esse direito aí é meu", etc, são extremamente comuns durante a negociação.

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